26.7.17

Filhos do vento e pais da flatulência

Marcello Sacco, in Diário de Notícias

É estranha a antipatia que muitos portugueses têm pelos ciganos. Na sua maioria, estes "filhos da estrada e do vento" (título de um velho livro de fotografias a eles dedicado) são portugueses e até são tidos por depositários da cultura mais castiça, como o fado nas suas formas mais populares. Acontecia o mesmo em Espanha, com o flamenco. García Lorca amava-os. Por cá, um artista da mesma geração, Almada Negreiros, usou-os como arma de arremesso contra o Dantas. É um cigano, pim! De nada vale relembrar os mortos no Holocausto, nem os golos do Quaresma. A palavra é sempre insultuosa e o eurodeputado socialista Manuel dos Santos atirou-a, via Twitter, à camarada Salgueiro, culpada de esquecer as raízes portuenses e votar a favor da candidatura (já arquivada) de Lisboa a sede de uma importante agência europeia.

A notícia entretanto foi varrida pelo fogo de Pedrógão e os antitanques de Tancos. Mesmo as últimas da Cova da Moura remetem para outros níveis de tensão racial, enquanto a politeness linguística, para muitos, não passa de um formalismo fútil. É moda fazer troça do "politicamente correto", como se fosse só um problema de etiqueta, a posição dos talheres num jantar de gala. A verdade é que muitos se dão mal com certas regras, porque o que lhes apetece mesmo é peidar-se à mesa e não percebem por que raio os outros convivas não apreciam (com a ressalva de se indignarem todos quando um cantor ameaça peidar-se em palco).

Tudo isto pensava ao ler os jornais portugueses de há um mês, quando passei aos jornais italianos e fiquei estarrecido. Nas mesmas horas desta escaramuça virtual, no Senado de Roma travara-se um combate à moda antiga, com feridos ligeiros e até uma ministra na enfermaria. Discutia-se uma nova lei da cidadania baseada não no ius sanguinis, princípio que permite obter a nacionalidade sem nunca ter posto os pés na dita nação (em nome do sangue dos tetravós), mas sim no ius soli, que reconhece a pertença à terra onde se vive, sem o qual, neste momento, cerca de 800 mil italianos que nasceram em solo nacional ou lá viveram grande parte das suas jovens vidas ficam apátridas (é um pouco como gritar "volta prá tua terra" a um rapaz nascido e criado na Cova da Moura, mas de forma institucionalizada).

A proposta de lei criou uma aliança de opositores que vai de Berlusconi a Beppe Grillo e passa pela Liga Norte, movimento ex-independentista, agora convertido ao nacionalismo lepeniano. A Liga é um partido que, graças à complacência assumida ou disfarçada de muitos, envenena o debate político desde 1992, ano em que entrou no Parlamento. Desde então teve ministros e secretários de Estado. Não se falava de "populismo" e a integração europeia, estando menos adiantada, talvez parecesse menos frágil. No entanto, a Lega já era o exemplo de uma integração imperfeita, numa Itália ainda a braços com as migrações internas (do Sul para o Norte) das décadas anteriores.

Um dos episódios mais caricatos, na pancadaria senatorial de há um mês, foi um Senador leghista gritando "terrone" ao presidente do Senado, o siciliano Piero Grasso. Terrone é, grosso modo, o "cigano" lá do sítio. É o labrego, o saloio do Sul, meio pacóvio e meio aldrabão. A palavra remete para a proximidade e pertença à terra, precisamente o ius soli que se quer descartar em prol da superioridade do sangue.

É fácil idealizar o que vai nas veias, pois não se vê. A terra, pelo contrário, suja; e, por muitos filhos da terra e do vento, haverá sempre uns tantos pais das flatulências mais venenosas que gostam de imaginar-se donos de castas mais apuradas de hemoglobina. Resta saber se este grau zero do pensamento fica confinado aos pipios do Twitter ou alastra pelos espaços institucionais. Em Itália, a velha e nova direita saiu reforçada das recentes autárquicas e já prepara as legislativas.

A Europa "esclarecida" - que nas últimas cimeiras de Tallinn e de Varsóvia recusou pôr mais portos na linha da frente do acolhimento a refugiados, como o governo Gentiloni pedia - fecha o cerco (e o nariz) e continua a comer.