25.7.17

Eu já tive namoradas de todas as cores

Por Francisco Louça, in Público on-line



Há um momento de viragem em qualquer debate sobre racismo, comunidades minoritárias ou culturas diferentes: é quando o último argumento de autoridade é que “eu até tenho amigos pretos”. É no que estamos na defesa do candidato racista do PSD em Loures. Mas já ouvimos essa escapatória muitas vezes, não é verdade?

Voltemos um pouco atrás. Este argumento dos “amigos pretos” não é o primeiro, ele tem de ser poupado para quando for desesperadamente necessário para restabelecer a normalidade do orador, sobretudo se se sentir suspeito de deriva envergonhante. Antes dessa evocação dos amigos fora de portas, veio a substância: os outros, os “pretos”, comportam-se de modo inaceitável ou têm hábitos ou atitudes que contrastam com as “nossas” e portanto devem ser disciplinados.

Assim, o argumento, no início, é só que eles são diferentes. A norma não aprecia esse atrevimento da diferença e o nosso argumentador amofina-se com o incómodo assim causado. Portanto, o estado natural da sociedade, que é só o que o nosso homem reconhece como padrão, poderia ser perturbado se alguém tivesse outra cor de pele, ou comesse de forma diferente, ou ouvisse música de forma diferente, ou rezasse a um deus diferente. A estranheza desses hábitos suspeitos só pode ser superada pela integração niveladora: eles devem passar a falar como nós, a rezar ao nosso deus e a ouvir a nossa música. Eles precisam de deixar de ser diferentes, pela razão mais elementar, isso chateia.

É aqui que aparece o “amigo preto”. Se o incómodo com os outros contrasta com a noção mais simples da vida humana, ou se descobrimos que estamos sempre confrontados com outros, que na mesma cor de pele há deuses diferentes e que nem se apreciam, que na mesma religião há cores de pele diferentes, que na mesma língua há gente que tem hábitos e culturas diversas, que no nosso prédio e na nossa família há modos de ser distintos – se a diferença se impõe porque é a vida, então é preciso lembrar o “amigo preto”.

A evocação desse amigo diferente é precisa por uma única razão: o problema é o argumentador, não é só o argumento. É ele que se sente com falta de legitimidade. Por isso, se for suficientemente hiperbólico, haverá quem, para defender o dito candidato do PSD, encha o peito e solte que “por ter crescido ali, tive e tenho amigos negros, mulatos, muçulmanos, tive namoradas de todas as cores. Só não tive namoradas ciganas porque os irmãos tinham a tendência para contra-argumentar com a navalha.” Há nisto um macho-alfa que não deixa de ser encantador, ele já teve “namoradas de todas as cores”, fez a colecção completa no álbum das cores. Mas faltam-lhe as “namoradas ciganas”, num indiscreto plural, e não é porque elas não quisessem, é por causa das navalhas dos irmãos. Fecha-se o ciclo do “amigo preto” com as “namoradas de todas as cores” e a excepção vergonhosa das ciganas, coitaditas.

O discurso do “amigo preto” e das “namoradas ciganas” é a voz da ralé política da nossa sociedade. Ignora tudo: ignora a discriminação histórica, ignora o desprezo cultural, ignora a exploração das comunidades imigrantes, ignora a degradação económica e a marginalização dos nómadas. Mas, pior, ignora quem se esforça: ignora os mediadores ciganos que respeitam a identidade da comunidade e transformam a sua vida, ignora os professores que ensinam e protegem as crianças, ignora os casamentos por amor, ignora quem prosseguiu os seus estudos, ignora quem assumiu responsabilidades no país.

Um cigano que joga na selecção nacional de futebol faz mais pela nossa democracia do que todas as paletes de candidatos xenófobos e os seus advogados namoradeiros.