Ana Cristina Pereira, in Jornal Público
Ida a reuniões reforça a crença de que as respostas que o toxicodependente em recuperação precisa estão dentro de si e não dentro de uma garrafa ou seringa
Há os novatos e os veteranos. Uns a tentar aprender um modo de vida que os mantenha livres de todas as drogas, outros a tratarem de aguentar-se nele. As reuniões semanais que acontecem um pouco por todo o país - como a 17.ª Convenção da Região Portuguesa dos Narcóticos Anónimos (NA), que ontem terminou no Parque de Exposições de Braga - vivem de partilhas. Como a de Jorge, "limpo" há nove anos, quatro meses e quatro dias.
O seu percurso é longo e acidentado. No 1.º ciclo já lhe acontecia apa-
recer bêbado nas aulas. Aos 14, 15 anos iniciou-se no haxixe. Não tardou a experimentar outras drogas. Decorriam os anos 80, o rock fervia e a heroína era uma novidade no solo nacional. Não havia, como hoje, espelhos nas ruas. E os pais portavam-se como muitos outros pais. "Ao princípio, não se apercebiam. Depois, não queriam perceber". A seguir, "tentaram ajudar". Sem êxito. Jorge gritava "independência", gostava de "dar nas vistas", sentia-se "o maior da Cantareira".
Só o precipício o sacudia: "Vi-me perto da morte várias vezes e isso confrontava-me com o meu problema". Ensaiou diversas tentativas de recuperação: consultas psiquiatras, tomas de metadona, mudanças de residência. Na sua última overdose, o médico alertou-o: ou morria ou ia para uma comunidade terapêutica. Tornara-se seropositivo. Era um farrapo. "Vivia na rua na mais completa degradação." Parecia "um cadáver. Pesava 40 e poucos quilos, tinha a pele esverdeada". Não queria persistir num modo de vida que o fazia "sofrer 23 horas e 52 minutos por dia".
Dentro da comunidade terapêutica, logrou sair "daquele estado lastimoso". Recaiu, mas o ciclo quebrara-se. Um dia, a desgostosa mãe deixou-lhe um folheto dos NA em cima da mesa-de-cabeceira: "Lembro-me de ler aquilo e de achar estranho, porque os gajos não queriam dinheiro, não queriam nada". Estava "a ressacar muito" quando entrou na primeira reunião. Acolheram-no "muito bem", até lhe deram "um cafezinho".
Era como se tivesse apanhado uma interminável tempestade de neve e, de repente, encontrasse uma casa com a lareira acesa e uma chávena na ponta de um sorriso: "Sentia-me tão mal e via aquelas pessoas contentes, satisfeitas, a rirem". Não queria regressar às temperaturas gélidas e aos ventos de 200 quilómetros/hora.
Ingressou noutra comunidade para iniciar o programa de 12 passos que lhe permitiriam cumprir, ao seu ritmo, o caminho da mudança: "Era o gajo mais fundamentalista que estava lá dentro. Levei aquilo muito a sério". E hoje é "um gajo feliz". Não é feliz 24 horas por dia, ninguém é. Vai nos 42 anos, trabalha, vive um dia de cada vez. Há pouco, a mãe ofereceu-lhe a chave de sua casa...
A toxicodependência não desaparece. O processo de recuperação é um contínuo. As reuniões dão-lhe algo "vital" para prosseguir "limpo": a prática de partilha de sentimentos. Os novatos podem aprender com a sua experiência, ele também pode aproveitar a experiência dos novatos. Ao ouvi-los, afasta tentações, lembra--se do que já passou, reforça a crença de que as respostas de que precisa, quaisquer que sejam, estão dentro de si, não dentro de uma garrafa ou de uma seringa.