27.2.08

Dia-a-dia feito de coisa nenhuma na casa dos clandestinos

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Apoio psicológico também falha no espaço de acolhimento de estrangeiros com ordem de afastamento do território nacional


Sobra ansiedade - sobretudo quando a inexistência de documentos torna o desfecho incerto. E a tensão não baixa com as horas vazias, os dias sempre iguais, as semanas feitas de espera. A escassez de actividades, a opacidade das janelas, as falhas no apoio médico e psicológico constituem os pontos fracos da Unidade Habitacional de Santo António, no Porto. Não é tudo mau. Muito pelo contrário. A avaliação externa - feita por uma equipa do Centro de Estudos Transdisciplinares da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro - é globalmente positiva. Desde logo, conclui pela existência das "condições físicas indispensáveis ao acolhimento de pessoas de ambos os sexos, em termos de qualidade de vida, respeito e dignidade". E destaca "o excelente padrão de relacionamento humano".

Gerido pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), com a colaboração da Organização Internacional para as Migrações e do Serviço Jesuíta aos Refugiados (que assume o apoio social e coordena voluntários e mediadores culturais), o espaço de acolhimento de estrangeiros com ordem de afastamento do território nacional foi criado a 24 de Fevereiro de 2006. Com ele, libertavam-se as instalações aeroportuárias para "inadmissíveis" e punha-se fim ao uso de cadeias comuns para "ilegais" a aguardar afastamento.

As refeições respeitam os credos e as práticas religiosas de quem ali se encontra detido. Dentro desta mesma lógica, aos muçulmanos é permitido conservar os seus relógios para que possam "cumprir os horários de oração prescritos pelo seu credo".
"Não há registos, sequer indícios de maus tratos, de uso de violência, nem de hostilidade aberta e continuada", indica o relatório. "Dentro das suas possibilidades, e excedendo muitas vezes o que estão obrigados profissionalmente, todos os funcionários procuram satisfazer e resolver os problemas" dos estrangeiros ali detidos.

Como aos utentes não é permitido trabalhar, de forma voluntária ou remunerada, "a ocupação dos tempos livres fica dependente das alternativas lúdico-recreativas, educacionais e outras, oferecidas/disponibilizadas pelo centro". E é aqui que os problemas começam.

Mediante a escassez de oferta, é em frente aos televisores que transcorre a maior parte do dia dos clandestinos, em particular o dos oriundos do Brasil. O período fixado para o jantar "desagrada à generalidade das brasileiras" precisamente por coincidir com um pico de telenovelas. Já os detidos de outras nacionalidades não revelam grande interesse por este género de programas. Ali, na sala de convívio, africanos e asiáticos ocupam longas horas com jogos de cartas. Poucos tentam ler. Os jornais e as revistas pecam por desactualizados. A um canto, numa estante, há apenas alguns livros em português e em russo.

Lá fora, no átrio, mora uma disputada mesa de pingue-pongue. "Em teoria, a unidade oferece também um conjunto de actividades lúdico-desportivas, que incluem a ginástica e o ioga". Na prática, estas funcionam "de maneira algo errática, ao sabor da disponibilidade de quem as ministra". Mais regular é a ida de um padre católico, uma vez por semana, para um encontro de reflexão.

"A generalidade dos detidos considera que o seu dia-a-dia se faz de "não fazer nada"." Tal "inércia física e mental concorre, inevitavelmente, para o aumento da tensão psicológica". Quando se lhes pergunta o que fariam para melhorar o centro, referem a necessidade de actividades ocupacionais. Como desporto, pequenos trabalhos de jardinagem e agrícolas.

Os investigadores indicam a "não ocupação" de tempos livres como "uma das principais debilidades" da unidade e imputam-na "à dependência do voluntariado". "Parece dominar um entendimento do voluntariado como uma prestação sem outras obrigações, regras ou compromissos senão os que encaixem e se ajustem à disponibilidade e à "vontade" de quem o pratica."

O problema repete-se no apoio psicológico - prestado por uma "licenciada em Psicologia, que ali trabalha desde o início de 2007". Os atendimentos "vão acontecendo em função das disponibilidades que outros afazeres e ocupações pessoais lhe deixam". O relatório sugere a contratação de um técnico a tempo inteiro, que teria um papel relevante e activo também no "planeamento e na coordenação das actividades de ocupação de tempo dos detidos".

No que concerne aos cuidados de saúde, o SEF assinou um protocolo com a organização não governamental Médicos do Mundo, que ali desloca uma equipa uma vez por semana. Quem necessita de cuidados urgentes é encaminhado para um hospital. De qualquer modo, "a falta de acesso efectivo dos utentes a tratamentos dentários pode implicar situações de dor aguda e prolongada", o que a equipa responsável pela avaliação classifica de "inaceitável, sobretudo se se tiver em conta que muitos deles podem permanecer na unidade por 60 dias". De resto, os estrangeiros queixam-se das janelas - vedadas por grades exteriores, vidro à prova de bala forrado com película aderente opaca. O fecho e a opacidade, "além de impedirem uma ventilação permanente dos espaços, produzem uma sensação muito forte de claustrofobia". E o "repúdio aumenta à medida que aumenta o número de dias de estada".

A prisão, "embora frequentemente equacionada como probabilidade, é, por regra, recebida com surpresa, mesmo por aqueles que são reincidentes, ou seja, pelos que registam já processos anteriores de identificação como ilegais e não deram sequência à notificação para abandono voluntário". Sobretudo nos que estão em Portugal há mais tempo, a reacção é de choque.

Mas não se declaram derrotados. A maior parte (91 por cento) dos detidos na Unidade de Santo António afirma pretender voltar a tentar emigrar - metade (51 por cento) para Portugal.

Entre Março e Junho de 2007, uma equipa do Centro de Estudos Transdisciplinares da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro inquiriu 42 utentes, entrevistou funcionários, membros das organizações parceiras, prestadores externos de serviço. Dois elementos ficaram ali, como que a fazer vida de utente, "em dois períodos não coincidentes, perfazendo quase duas semanas".

Os estrangeiros chegam vindos de todo o país, sobretudo de Lisboa e Algarve. Atendendo à amostra, o utente tipo será um homem (69 por cento), solteiro (78 por cento), de 20 a 40 anos (71 por cento).

De resto, predominam cidadãos com baixos índices de escolaridade (apenas dez por cento declaram ter formação superior), provenientes de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento (com destaque para o Brasil, com um peso de 36 por cento). Metade (47 por cento) tinha entrado em Portugal nos três anos anteriores: seis há mais de sete.

566 é o número de estrangeiros que já ali passaram desde a abertura: 236 cidadãos
em 2006, 310 em 2007, 20 este ano