27.2.08

Lisboa com problema "sério" de pobreza

Nuno Miguel Ropio, in Jornal de Notícias

Idosos sem abrigo espelham cidade com média de pensões de reforma abaixo dos 315 euros mensais


Chega pelas 10.30 horas ao Centro de Apoio Social dos Anjos, em Lisboa. Aurora Azevedo é das primeiras na fila com centenas de pessoas que afluem diariamente à denominada "Sopa dos Pobres". Leva 29 anos na capital, grande parte dos quais vivida na rua, desde que rumou de Perafita (Matosinhos). Entre os sem-abrigo, indigentes, toxicodependentes e todo um universo de pobreza extrema que pinta aquelas escuras instalações da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Aurora é já vista como uma decano, numa espécie de estranha hierarquia que se estabelece, duas vezes por dia, no espaço existente entre o Centro de Apoio e a igreja dos Anjos.

"Têm-me muito respeitinho porque sabem que sou de Matosinhos e me passo da cabeça facilmente", atira Aurora, com 69 anos, que recentemente trocou vários anos de rua e marginalidade por um quarto no Bairro Alto, que lhe leva a maior parte da baixa pensão. Na escadaria da igreja, onde Aurora - tal como a maioria - repousa após o almoço, Fernando Fernandes e Alfredo Pinto, oriundos de Baião, preparam-se para regressar às arcadas da Praça do Comércio, onde há uma década pernoitam. Metros à frente, Paulo Amador, de 35 anos, lamenta-se do acidente vascular que lhe paralisou o lado direito do corpo e que o atirou para a pobreza.

A todo este quadro junte-se os nomes de Janine, Manuela, João, Nuno, António ou mais uma dezenas de outros que vão saindo da "Sopa dos Pobres" e que se apresentam apenas como parte de uma realidade para a qual alerta o 1.º Relatório do Observatório de Luta Contra a Pobreza na Cidade de Lisboa, apresentado ontem num seminário internacional no Hotel Radisson, organizado pela Rede Europeia Anti-Pobreza e Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (entidades que constituem o observatório).



Populações vulneráveis

Segundo aquele documento, a população menos qualificada, as famílias monoparentais ou os idosos são os que apresentam um maior índice de empobrecimento. A pobreza na capital tende a ser cada vez mais crónica e menos escondida, assinalando o relatório as freguesias de Marvila e Castelo como aquelas onde persiste uma maior incidência daquele fenómeno. "Este relatório permite-nos trabalhar com dados concretos e planear o nosso trabalho, percebendo a verdadeira dimensão da pobreza, um problema sério da capital", disse, ao JN, Odete Farrajota, adjunta da Provedoria da Santa Casa da Misericórdia.

O estudo qualifica os jovens dos bairros localizados na periferia, as crianças e as mulheres, principalmente aquelas que assumem a liderança do agregado familiar, como as populações vulneráveis a uma pobreza cada vez mais exposta e resultante de "novas formas de exclusão" toxicodependência e desaparecimento das tradicionais estruturas familiares. Por outro lado, há toda uma população em risco de cair "em situações de pobreza extrema" devido a factores que não consegue ultrapassar, tais como o desemprego ou doença crónica.

Bairros antigos

Estes cenários de miséria, não só, "tendem a concentrar-se nos bairros mais antigos, onde vive uma população abrangida pela pensão de velhice - cujo valor está abaixo do ordenado mínimo nacional -, assim como nas freguesias que mais receberam áreas de realojamento social.

"Não me parece que tenha, na minha freguesia, casos de pessoas cuja pobreza as obrigue a ir à "Sopa dos Pobres". O que existe é muita pobreza encoberta ", garantiu Carlos Lima, autarca do Castelo que, a par de Marvila, se destaca no relatório como uma das freguesias mais vulneráveis à pobreza. Ali, mais de 70% dos residentes estão aposentados. "Apesar de existirem cada vez mais novos residentes, com a requalificação do edificado, a verdade é que a maioria da população tem mais de 65 anos e vive isolada", confirma Carlos Lima, que a par do autarca de Marvila, lamenta os escassos recursos financeiros e humanos fornecidos pela Câmara Municipal de Lisboa no combate a este fenómeno.