15.4.08

Cais elege o bem comum para discutir os excluídos

José Miguel Gaspar, in Jornal de Notícias

Frenk e o seu cão Rock o sem-abrigo está há oito anos em Portugal, é alcoólico, ex-toxicodependente


O sem-abrigo é um espectro com a cara de Frenk "Não tenho casa, não tenho emprego, não tenho dentes, não tenho nada". Frenk ("Frenk com 'e'; sou alemão") é a fisionomia do vazio num país que não sabe quantos sem-abrigo o habitam entre si. "Vou fazer o quê? Vou acreditar em quê. Devo acreditar em Deus?".

A partir de hoje, a Cais, associação de solidariedade social nascida em 1994 com missão de apoio à reinserção social dos sem-abrigo, organiza o 7.º congresso. Durante três dias , na Fundação Luso-Americana, em Lisboa, vai discutir, com dezenas de intervenientes, entre filósofos, sociólogos, juristas, antropólogos, economistas, o grande tópico "Bem comum Para além do público e do privado". Henrique Pinto, director-geral da associação, esclarece que objectivo é tornar o Bem irrestrito: "A Cais pretende ir além do que se tem por público e privado, numa afirmação do Bem que une a raça humana e do seu incondicional incremento, feito através do acesso a bens comuns e no respeito sempre franco e aberto pelo património da humanidade".

Partindo do princípio de que "aquilo que somos, somo-lo em relação a um património que nos precede e à sua constante negociação", como diz Henrique Pinto, aquilo que somos esbarra naquilo que Frenk for 39 anos, alcoólico, há quase mil dias a desintoxicar de heroína - "continuo agarrado, mas agora à metadona"-, é um ser humano que não existe sequer como número anónimo da estatística que põe Portugal com 18% de residentes em risco de pobreza (INE, Janeiro de 2008).

Sem documentos desde que chegou, numa fuga de liberdade condicional que meteu tráfico de estupefacientes e o obrigou a desaparecer socialmente da Alemanha, Frenk está há oito anos em Portugal, há cinco no Porto, e é já habitual da casa Cais, centro de dia comunitário.

É por aqui e por ali, sem lugar, que Frenk se agarra à rotina do vazio dorme num carro abandonado na cercania da esquadra de Cedofeita, almoça na igreja esmolada da Trindade, janta no albergue dos Mártires da Liberdade. Durante o dia mexe-se por onde há tráfego e trocos, sempre só, ele e o Rock, o manso rafeiro que há um mês o segue de cauda espetada para todo o lado.

"Não ter papéis é o menor dos meus problemas", diz a cara salmonada de Frenk, uma cara franca de rugas e covas cavadas muito para lá dos 39 anos. "Continuo a ser alcoólico e para mim, beber 40 ou 50 cervejas não é um problema. O problema é que já tentei quatro desintoxicações. E estou farto, muito, muito farto".

Não é para ele, nem para outros como ele, que a Cais desafia a ousadia do impossível; é para nós e para outros como nós "Sim, temos que acreditar que todos podem viver condignamente", conclui Henrique Pinto. "O que hoje consideramos ser um bem e um bem comum não é apenas sinónimo da comunidade onde podemos estar inseridos, ou do país que herdámos, mas da realidade que o cuidado de uns com outros tem valorizado".