29.4.08

O novo rosto da fome

Paulo Ferreira, Subdirector, in Jornal de Notícias

Um responsável do Banco Mundial chamou-lhe "tsunami". A directora do Programa Alimentar Mundial da ONU (Organização das Nações Unidas) definiu-a como "o novo rosto da fome". A crise gerada pela escalada de preços dos cereias é grave e está mesmo à nossa frente. Mas, como ainda não nos atingiu severamente (quase) negamos a sua existência.

Os sinais aconselham a que lhe prestemos toda a atenção, para não sermos surpreendidos quando a crise se fizer sentir a sério nos nossos bolsos. A França acaba de anunciar que as suas reservas de trigo estão esgotadas. O Brasil (o maior produtor de arroz do Mundo, juntamente com o Vietname) ameaça deixar de exportar. Nos EUA, cadeias como a Wal-Mart começaram a racionalizar as vendas de arroz e farinha. Um susto, portanto.

De onde vem a crise? Da especulação e dos paradoxos que a modernidade sempre gera. Países como a China e como a Índia passaram a ter dinheiro suficiente para satisfazer bem mais do que as necessidades básicas. A mudança dos hábitos alimentares dos chamados "países emergentes" fez aumentar a procura para níveis que a oferta não consegue satisfazer.

Por outro lado, a crise cai em cima de uma das principais apostas de muitos estados em todo o Mundo - os biocombustíveis. O disparo dos preços do petróleo justifica, cada vez mais, a abordagem a fontes de energia alternativa. Sucede, porém, que é difícil, senão mesmo impossível, explicar à opinião pública a necessidade de continuar neste trilho, quando o número de pessoas seriamente afectadas pela escassez de alimentos não pára de crescer. A mancha dos protestos alastra. E faz mortes. A questão moral que aqui se coloca é, por isso mesmo, tremenda.

Finalmente, a especulação. Para os investidores, os cereais são, nesta altura, puro "ouro". O preço do arroz já chegou a subir, num só dia, mais de 30 por cento! Até quando se manterão os especuladores no mercado é, para já, uma incógnita.

Como se vê, não faltam sinais de preocupação. Que os não queiramos ver releva apenas da distância com que costumamos olhar para as tragédias que não se passam à porta das nossas casas. Esta, contudo, é daquelas que não pedirá licença para entrar.