13.4.08

A propaganda que incita à discriminação e à violência é matéria de índole política

Paula Torres de Carvalho e Sofia Branco,in Jornal Público

Os partidários da extrema-direita em Portugal "têm o direito de se exprimir" mas não
de provocar a violência, considera o novo presidente da Comissão dos Direitos Humanos


Em entrevista ao PÚBLICO, defende que os crimes contra a identidade cultural e contra a integridade pessoal, a actividade de propaganda que incita à discriminação e ao ódio, são matérias exclusivamente políticas.

PÚBLICO - A lei portuguesa garante a liberdade de expressão e associação, mas, por outro lado, prevê a proibição de organizações fascistas. Como se resolve esse conflito?

José Augusto Rocha - Não existe conflito nenhum. A Constituição proíbe esse tipo de organizações ou associações, mas não consente qualquer delito de opinião, por isso podem defender-se ideias fascistas, mas não constituir essas associações.
Questão diferente, ou mais específica, é a questão ligada à discriminação racial, religiosa ou sexual, essa sim, incriminada e proibida no artigo 240 do Código Penal. Mas mesmo aqui, este crime é um crime de actividade ou resultado, que não contende com a liberdade de pensamento ou expressão.

Fundar ou constituir organizações racistas ou xenófobas ou desenvolver actividades de propaganda organizada, isso pode constituir crime, se se verificar a intenção específica de as levar a cabo.

Mas, mesmo aqui, este crime é considerado um crime de actividade ou resultado. O que quer isso dizer?

Para que este crime rácico ou xenófobo se verifique, é necessário que existam os chamados actos de execução, que são aqueles que, dadas as circunstâncias em que são praticados, representam segundo a experiência comum, ou seja, segundo o critério da generalidade das pessoas, um empreendimento criminoso. Estes actos são tais que se espera que se lhes sigam outros idóneos a produzir, no caso, resultados de discriminação racial, religiosa ou sexual.

Uma das questões muito discutidas a este propósito é, por exemplo, a questão de saber se eu posso negar livremente crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade.

E pode?

A resposta é: posso, mas desde que o não faça com a intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar, em relação a pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, religião, sexo ou orientação sexual, porque aí serei incriminado.

Esta é uma questão que se discute muito pela Europa fora, a propósito da negação do holocausto, do problema dos neonazis na Alemanha e muito presente no conflito que opõe o Irão a Israel.

Ninguém deve ser perseguido pelo que pensa ou diz, devem ser proscritos os crimes de opinião. Mas estas questões ligadas à liberdade de expressão de pensamento têm de algum modo a ver com o problema de se pretender, neste âmbito de crimes, principalmente quanto ao chamado terrorismo, o direito penal passar a ser um direito penal de autor, que persegue mais as pessoas por aquilo que são ou pensam, do que propriamente pelos resultados do que fazem.

Concertos privados podem ser considerados uma forma de incitamento?

Depende. Os actos preparatórios de um crime, ou sejam, os actos externos conducentes a facilitar a execução de um crime, que não constituem ainda começo de execução, em princípio, não são puníveis. Para facilitar, posso perguntar: embora privado, o concerto foi publicitado? Quem lá esteve tem um passado de afirmação de ódio racial ou alguma incriminação anterior por esse motivo? Após o concerto, tiveram actividades públicas xenófobas? Estas e outras perguntas que o tribunal possa fazer, com eventual recurso à consideração da personalidade dos presentes no acto, certamente esclarecerá o significado executivo e criminalmente relevante do acto.

Como é que isso se prova?

Como disse, recorrendo a todas as circunstâncias que sejam relevantes ou idóneas, e avaliadas no contexto em que ocorreram, possam e pelas suas ligações se liguem à produção do resultado criminoso. Avaliar os factos e circunstâncias de um crime, é uma técnica, mas também uma sabedoria.

Por que motivo se entende habitualmente que estes crimes de discriminação racial são crimes de associação criminosa?

Porque normalmente estes crimes são violentos e têm na sua base ideias e doutrinas que congregam pessoas e as consertam para a realização dessas actividades criminosas, normalmente com expressão de ajuntamentos ou reuniões públicas.

É possível falar de contornos políticos no tratamento judicial e na avaliação jurídica deste tipo de processos relacionados com acções racistas, de extrema-direita?

Não podemos fugir às palavras nem à realidade. É evidente que os crimes contra a identidade cultural e contra a integridade pessoal, o problema de organizações que desenvolvem actividade de propaganda que incitam à discriminação, ao ódio e à violência são matérias de índole política. Não se trata de crimes de homicídio simples, nem de roubos, nem de umas bofetadas, nem de ofensas corporais. Trata-se de crimes altamente qualificados, que põem em causa os valores da paz, da liberdade, da convivência entre os seres humanos. Isto não quer dizer que os julgamentos sejam políticos e os critérios de avaliação fora do que é comum. Como se sabe, muitos destes crimes conhecem a complementaridade das jurisdições nacionais com a das internacionais.

Nos Estados de direito democrático, os neonazis e os skinheads devem ter o direito de se manifestar e de publicitar as suas ideias racistas?

A liberdade de pensamento é inerente à pessoa humana. E, portanto, quando do seu pensamento e expressão não resultem actos que neguem ou violem os princípios da comunidade e da convivência entre os povos e entre cidadãos de cada Estado, a liberdade de pensamento deve ser total, mesmo em relação aos grandes inimigos da democracia e do Estado de direito. Têm direito de pensar, mas não têm o direito de agir de modo a provocar violência.

O crime

Não há discriminação sem intenção


PÚBLICO - O dolo, a intenção, é determinante para a existência do crime de discriminação racial?

José Augusto Rocha - É muito importante. Este crime não se realiza sem dolo, sem querer os efeitos, os resultados. É preciso ver se há intenção específica de incitar à discriminação racial, de querer o resultado. E todo o direito penal é feito de prova. Para a verificação do crime exige-se, em primeiro lugar, a intenção do agente.

A directiva comunitária já transposta para a legislação nacional (directiva Raça) vai muito mais além porque considera claramente a discriminação racial como o acto que transmite uma informação em virtude da qual um grupo de pessoas é ameaçado por motivo de discriminação.

Isso é só uma definição, uma descrição dos elementos do tipo legal do crime. Os elementos subjectivos nunca se dispensam. Como diz o artigo 30.º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, ninguém poderá ser criminalmente responsável e punido por um crime, a menos que actue com vontade de o cometer e conhecimento dos seus elementos materiais. Mas é um crime essencialmente doloso.

Acha que devia haver tribunais especiais para julgar estes casos, como acontece em Espanha para a ETA?

Não, não devia haver. A jurisdição espanhola em relação à ETA é de conjuntura, para uma determinada situação histórica.

O facto de existirem tão poucas condenações por discriminação racial em Portugal explica-se por a lei ser muito tolerante ou porque é usada com muita parcimónia?
A lei não é muito tolerante, muito embora fique aquém do rigor de outras. A extrema-direita, em Portugal, não é muito expressiva, daí também que a verificação de manifestações de intolerância e ódio racistas não sejam abundantes.

Há legislação suficiente sobre discriminação racial em Portugal?

Julgo-as suficientes.

Crimes racistas aumentam

Há falta de dados sobre violência racista, com apenas onze dos 27 Estados-membros da União Europeia a fornecerem estatísticas específicas. Entre as que existem, verifica-
-se que, entre 2000 e 2006, período estudado no último relatório da Agência de Direitos Fundamentais, os crimes xenófobos aumentaram no Reino Unido, Alemanha, Dinamarca, França, Eslováquia, França, Polónia e Irlanda. Os índices na Áustria, Suécia e República Checa diminuíram no mesmo período.

"A violência e o crime racistas permanecem uma doença social grave em toda a Europa", conclui o último relatório sobre racismo e xenofobia da Agência de Direitos Fundamentais. Destacando que a directiva comunitária sobre igualdade racial já foi implementada em quase todos os Estados-membros da União Europeia (Portugal transpô-la para a legislação nacional em 2004), a Agência de Direitos Fundamentais realça, porém, que o número de queixas ainda é baixo e as sanções impostas ténues, aconselhando medidas que aumentem a consciencialização.

Em 1985, o Parlamento alemão aprovou uma lei que tornou a negação do Holocausto punível, não estando protegida pela liberdade de expressão. Desde então, tem havido um aceso debate em torno do negacionismo ou revisionismo, que, no caso alemão, só é punido quando se trata de declarações directamente relacionadas com os crimes do nazismo. Até ao momento, os tribunais do país têm negado o direito à liberdade de expressão daqueles que questionam a actuação do regime de Adolf Hitler.

A legislação espanhola também incrimina, com pena de prisão de um a dois anos, "a difusão por qualquer meio de ideias ou doutrinas que neguem ou justifiquem" delitos racistas ou fascistas que "pretendam a reabilitação de regimes ou instituições que amparem práticas geradoras dos mesmos". Porém, quando chamado a pronunciar-se sobre a penalização do "discurso do ódio", em Novembro de 2007, o Tribunal Constitucional considerou aquela disposição inconstitucional.

Já em Portugal, apesar de também o artigo 240.º da Constituição sancionar "quem, em reunião pública, por escrito destinado a divulgação ou através de qualquer meio de comunicação social ou sistema informático destinado à divulgação", "difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, (...) nomeadamente através da negação de crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade", o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, José Augusto Rocha, considera que "o legislador teve mais cautela e foi "muito equilibrado", submetendo a criminalização do "discurso do ódio" à existência de uma organização e à confirmação de intenção específica e de dolo.
"Está mais conforme ao discurso liberal, em que os governos têm de assumir neutralidade face às opiniões dos cidadãos", explicou.

11
Apenas 11 dos 27 Estados-membros da União Europeia fornecem dados e estatísticas sobre a violência racista