14.4.08

"É mais fácil" praticar actos ilícitos nos bairros sociais

Ana Cristina Pereira e Carla Marques (Rádio Nova), in Jornal Público

O tráfico de droga não se instala num sítio por acaso. E até pode "cumprir um papel que o Estado devia cumprir e não cumpre"


Director do Centro de Ciências do Comportamento Desviante da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, Luís Fernandes estuda os fenómenos da droga em contexto urbano, do sentimento de insegurança, da marginalidade e da exclusão. Explica como a venda a retalho de droga se foi (vai) instalando nalguns bairros sociais do Porto.

Diz que os bairros sociais são os locais onde se sentem mais os efeitos da sociedade pós-industrial. Quem antes enchia a fábrica, a oficina ou o estaleiro está condenado à "inutilidade"?

A palavra inutilidade é muito forte. Agora, essa frase contém uma verdade. A perda do papel da fábrica na cintura das grandes cidades, à medida que vai sendo deslocalizada para outras zonas do globo, tem feito com que parte de gente que assegurava o trabalho operário entre em perda. Em perda económica, em perda face à cidade, face ao tecido produtivo.

Por isso é que o tráfico se foi instalando em alguns bairros?

Instalou-se, em primeiro lugar, porque há uma clientela disposta a comprar. Foi-se instalando, em segundo lugar, porque Portugal abriu as suas fronteiras. Em terceiro lugar, os mercados ilícitos necessitam de quem opere ao nível da rua sem grande medo da polícia, com mecanismos de protecção perante as invasões do controlo social. E isto faz-se normalmente em terrenos urbanos de mais difícil acesso, através de uma mão-de-obra recrutada entre quem teve outro tipo de perda ou ainda não entrou no mercado de trabalho nem tem grandes expectativas de lá entrar.

Mas há muita polícia nos bairros sociais...

Há mais até do que, se calhar, seria desejável, porque os bairros sociais são locais de residência de população "normal". Isto já denota uma situação de excepção nem sempre bem gerida pelas autoridades. O que acontece quando algum bairro começa a ganhar algum protagonismo mediático? Nalgum momento, as autoridades, às vezes até por pressão política, dizem: "Vamos para ali, porque ali é que está o foco." E vão. Quando vão para ali, o grosso do mercado sai dali e vai para acolá. E andam sempre num jogo do rato e do gato.

Há 20 anos, os bairros portuenses da Sé, do Aleixo e de S. João de Deus já eram "sítios da droga". O tráfico sai, volta, persiste.

O mercado das drogas não se fixa de modo aleatório, fixa-se por razões estruturais que se prendem com a tal crise da sociedade pós-industrial. Recruta mão-de-obra nos sítios onde a empregabilidade está em crise profunda, onde se esbateu o vínculo entre a escola e o trabalho. Para muitos dos nossos jovens, sobretudo os das camadas mais desfavorecidas, a escola é um destino que abre para parte nenhuma. Os bairros sociais tinham, já nessa época, uma certa fractura em relação à cidade, que nunca foi resolvida: continuam a ser sítios de margem, a manter um certo aspecto de fortificações onde é mais fácil desenvolver actividades perseguidas criminalmente. Nada de especial: as pessoas lançam mão das economias de interstício [como o tráfico de droga ou a venda de contrafacção] de que precisam para sobreviver.
Que solução para o tráfico dos bairros sociais?

Eu não queria que se passasse a ideia de que só se vende produtos ilícitos nos bairros sociais.

Nem que se trafica em todos...

Ainda tem mais essa. O Porto tem cerca de 40 bairros e só meia dúzia deles, no máximo dez, ganharam protagonismo à conta da droga. Os outros são só bairros populares, de gente que não teria dinheiro para pagar habitação própria, que passam ao lado dos grandes problemas. As drogas são um mercado com diferentes patamares, diferentes interesses e múltiplos agentes. Diria até que são o contrário do crime organizado, são o crime desorganizado. Ele vai para tantos lados, tem tantos agentes que não se conhecem uns aos outros que não podemos ter um modelo de pirâmide. Funciona muito mais em raiz, horizontalmente.

Como se resolve o problema do tráfico?

Não sabemos muito bem. Como se inverte o percurso da globalização? Como se inverte a deslocalização do tecido industrial? Há aqui processos em jogo a nível mundial. Mas o facto de não sabermos como se resolve não impede que saibamos que há coisas que não se devem fazer. Por exemplo, não se conduzia uma operação como a do S. João de Deus daquela maneira, não é assim que se desarticula um bairro problemático. E, sobretudo, talvez não valesse a pena demolir um bairro problemático sem alternativa para ele. Porque os problemas do S. João de Deus estão a ser transferidos para outros bairros.

Para o Cerco?

Sim, desde logo para o Cerco.

Como funcionam os "vasos comunicantes" entre bairros?

Os bairros sociais não são independentes entre si. Fruto até de políticas sociais. Um indivíduo pode viver no bairro A, a família cresce, o filho casa-se e tem direito a habitação social no bairro B. Há relações de família, de vizinhança. Isto também funciona para os mercados, sejam de T-shirts na feira de Espinho, sejam de venda de produtos ilícitos. E felizmente que é assim. Quando o Estado-providência não funciona, há uma sociedade-providência. Vejamos a situação seguinte: pai e mãe a trabalhar na mesma fábrica, a fábrica é deslocalizada; de repente, ficam os dois desempregados, há cinco filhos menores. Se calhar, há um vizinho que os conhece há muitos anos e que até obtém os seus proventos da venda de drogas e que consegue suportá-los economicamente durante um tempo. Aqui o dinheiro da droga está a cumprir um papel que o Estado-providência devia cumprir e não cumpre.

Para muitos jovens, sobretudo para os mais desfavorecidos, a escola é um destino que abre para parte nenhuma.

Moradores dos bairros sem voz

"Isto não começou com Rui Rio"

Por que não se associam mais as pessoas nos bairros para defender os seus direitos?
Isto prende-se com o défice de associativismo. E, pelas próprias condições de grande dificuldade em que já estão, não sobra grande energia às pessoas para isso, se não forem ajudadas. Estão unicamente centradas na resolução das tarefas do dia-a-dia, da sobrevivência mais básica.

Também há alguma tendência para ridicularizar as lideranças [das associações de bairro].

Isso é verdade. De resto, os poderes autárquicos (e não só o poder deste momento, outros também) foram pouco interlocutores de estruturas associativas locais. Aponta-se muito o dedo à gestão de Rui Rio, que tem sido insensível, que não tem sabido dialogar. Os moradores dos bairros sociais não têm voz, mas isto não começou com ele. Ele é talvez o intérprete mais radical desta filosofia de que a voz de quem não tem voz não é para ser ouvida.

As pessoas pedem desdobramentos [de famílias que cresceram], para passar de um T2 para um T3 ou de um T3 para um T4. As reivindicações são muito limitadas a este tipo de questões.

Isso tem a ver, a meu ver, com a menorização a que foram submetidas há décadas. Passo aqui a comparação: se nós não tratamos como adulto alguém que devia ter estatuto de adulto, esse adulto comporta-se infantilmente. Para não ir mais longe, se não formos dando às nossas crianças cada vez mais responsabilidade e autonomia, nunca resolverão tranquilamente a passagem para a vida adulta. Eu digo o mesmo com populações desfavorecidas.

A hora do "guna"


Para saber, de forma empírica, o que alimenta hoje o sentimento de insegurança no Porto "era preciso haver alguém a observar isso, e não há", nota Luís Fernandes. O Observatório Permanente de Segurança foi extinto e o Centro de Observação de Problemas Sociais, criado no âmbito do Porto Feliz, "nunca pôs nada cá fora", comenta o director do Centro de Ciências do Comportamento Desviante da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Ainda assim, a avaliar pelos doutoramentos que está a orientar, "o grupo dos "gunas" começa a aparecer como a figura da ameaça".

O "guna" é o rapaz de brinco e boné, sapatilhas de mola, que se desloca em grupo, às vezes com um cão.

Os arrumadores de automóveis tinham "muito a ver com o sentimento de insegurança". Já não têm, na opinião de Luís Fernandes. "O arrumador, no início, inquietou", até por amiúde funcionar "como um extorsionista da moeda".

Com o tempo, quem se dedicava a tal actividade foi "percebendo que essa técnica não era boa". A relação com o automobilista tornou-se "mais amigável". O arrumador "hoje é uma figura da desordem, que é outra coisa". Como a prostituta de rua, compara Luís Fernandes.

O "guna" ganha terreno ao entrar no espaço público, ao ocupar uma esquina, uma praça, uma paragem de autocarro pouco iluminada. E, no fundo, funciona como aquilo que já é há muito "uma figura da ameaça nos Estados Unidos" - a dos grupos juvenis conotados com a delinquência.

Apesar desse irromper, o investigador está convencido de que o sentimento de insegurança terá mais a ver com "o clima geral de transformação". "Há, na Baixa do Porto, aquela sensação de que a cidade já não é a mesma, a nostalgia da cidade de há uma década e isso prende-se com o mau aspecto dos espaços públicos, com as casas devolutas", explica Luís Fernandes.

"A cidade vai-se despindo, vão ficando os velhos". E eles não confiam na rua, "sentem-se à mercê de qualquer coisa", conclui.

Os arrumadores de automóveis tinham "muito a ver com o sentimento de insegurança". Já não têm, diz Luís Fernandes.