A esmagadora maioria das 344 crianças que vivem em condições precárias é forçada a lavar-se com água fria em alguidares à porta da barraca.A curiosidade encheu de vida um pequeno núcleo da comunidade cigana que há décadas ocupa um terreno na freguesia de Santa Clara do Louredo, nos arredores de Beja.
Naquela manhã de Janeiro,
Anselmo Prudêncio, técnico na EAPN/Rede Europeia Antipobreza, e Prudêncio Canhoto, presidente da Associação dos Mediadores Ciganos de Portugal (AMEC), chegaram cheios de perguntas – queriam saber quantos residem naquelas seis barracas, todas ocupadas por membros da mesma família. Numa fracção de minutos, adultos e crianças concentraram-se para responder ao “recenseamento”: quantas barracas, quantos adultos, crianças e jovens ali vivem?
A conclusão dos Censos 2021, que classifica as barracas e as tendas, entre outros, como “alojamentos não clássicos”, foi que em Beja existem 75 habitações precárias deste tipo. Assim, porquê este esforço, tão pouco tempo depois do recenseamento nacional, de voltar a contar tendas e barracas? Anselmo Prudêncio adiantou ao PÚBLICO que esses números “pecam por defeito”. O levantamento que as duas organizações estavam a efectuar em várias freguesias do concelho de Beja propunha, precisamente,
demonstrar o equívoco dos Censos 2021. E o balanço final apontou de facto para valores superiores: em todo o concelho de Beja, estão instaladas 853 pessoas, entre elas 344 crianças, em 122 barracas e tendas, ou seja, mais 47 habitações precárias do que as apontadas nos Censos.
Contados os membros das seis famílias residentes em Santa Clara do Louredo, concluiu-se que na pequena comunidade residem 27 pessoas, 11 adultos e 16 crianças e jovens. “São todos filhos e netos” da matriarca Arlete, que faz hemodiálise, dia sim, dia não, e se arrasta agarrada a uma bengala com problemas de ossos e pede, “por amor de Deus”, uma casa de banho para se lavar e limpar.
“Não temos casa de banho para as crianças” que têm de chegar lavadas à escola, senão as outras crianças afastam-se delas porque “cheiram a cigano e, coitadinhas, tomam banho de água fria", queixam-se as mães.
Um pormenor chamou a atenção do técnico da EAPN: em frente de uma das precárias habitações construídas com restos de chapas zincadas, madeiras e plástico, num estrado que agora é uma mesa, brilhavam, quando o sol conseguia romper o denso nevoeiro que cobria a região nesta manhã de 6 de Janeiro, panelas e tachos impecavelmente limpos. Não é tarefa fácil manter hábitos de asseio e higiene pessoal quando se tem de ir buscar água a uma fonte que fica a meio quilómetro e se cozinha com lenha. Têm energia eléctrica, mas também muita lama quando chove. No Verão, é o pó que tudo cobre.
Arlete queixa-se de que o dono da terra quer que a família saia dali. "Mas este terreno é como se fosse nosso”, diz a matriarca, explicando que o marido fugiu da Guerra Civil espanhola e veio para ali, "onde morreu com 86 anos”.
A equipa que realizava o “recenseamento” seguiu depois para a freguesia de Mombeja e deparou-se com uma situação idêntica: a comunidade é formada por uma única família que se divide por seis barracas, todas construídas em chapa zincada, uma solução que é seguida em Espanha, mas com uma diferença significativa. Enquanto no país vizinho as casas têm isolamento térmico interior, estas, quando chega o Verão, não permitem que ninguém esteja lá dentro até à madrugada. "É um calor que a gente não aguenta”, contou ao PÚBLICO Vítor Graça Barão, pai de seis filhos que, entretanto, formaram família e vivem ali todos juntos: 10 adultos e 12 crianças e jovens.
Anselmo Prudêncio explicou que Mombeja, onde já foi presidente da junta de freguesia, “sempre teve ciganos à volta da aldeia”. No entanto, a água que os seus agregados familiares consomem continua a ser recolhida de uma fonte a 200 metros porque a Câmara de Beja “sempre proibiu a instalação de rede pública”.
Dias melhores virão
Numa das barracas, um grupo de jovens e adultos assistia, nesse dia 6 de Janeiro, através da televisão, ao debate na Assembleia da República sobre o teor do projecto de resolução do partido Chega que propunha a realização de um “estudo actualizado sobre a caracterização das comunidades ciganas”. Os argumentos dos deputados eram seguidos com exuberante satisfação quando a sua intervenção vinha em defesa da comunidade cigana, mas quando André Ventura, líder da bancada do Chega, intervinha, os comentários eram pouco abonatórios.
“A Assembleia da República está do nosso lado”, acreditava um dos filhos de Vítor Barão, convencido de que dias melhores virão, sobretudo no acesso a uma habitação, dificuldade que António José Raul, residente na freguesia de Trigaches, superou comprando um terreno onde construiu a barraca onde vive. “Trabalhei 30 anos nas pedreiras de Trigaches e nos fornos de cal. Fui juntando uns dinheirinhos e comprei este pedaço de terra”, que não chega a um hectare, mesmo à saída da aldeia e junto à escola do ensino básico, que ainda não fechou “graças às nossas crianças”, refere uma das mães.
À medida que os seus filhos se iam casando, ia aumentando o número de habitações, e hoje vivem ali, em 13 “alojamentos não clássicos”, 65 pessoas, 22 adultos e 43 crianças e jovens, dados fornecidos pela EAPN e AMEC ao PÚBLICO. Mas não têm acesso à rede de esgotos nem de água, embora a rede pública passe a poucos metros da comunidade cigana. A falta de pagamento estará na origem do corte.
Vão buscar a água em bidons a fontes e poços. Tinham um bem perto de casa, onde se abasteciam, mas “meteram lá bichos mortos e até um balde com porqueira", revela António Raul, criticando o que classifica de comportamentos “racistas”.
O flagelo das Pedreiras
O levantamento dos “alojamentos não clássicos” assume outra dimensão no
Bairro das Pedreiras, que a Câmara de Beja instalou às portas da cidade, onde persiste e se avoluma um flagelo social que já tem dimensão internacional. É aqui que os números do “recenseamento” realizado pela EAPN e pela AMEC sobem exponencialmente: além das cerca de 500 pessoas alojadas em casas de alvenaria T2 em condições precárias, estão alojadas em 80 barracas 401 pessoas, 160 adultos e 241 crianças.
“Vivem nas barracas que ali foram sendo instaladas mais de 200 crianças num espaço que não tem um café, uma árvore, uma paragem de autocarros”, sublinha, desolado, Prudêncio Canhoto, criticando a ausência de soluções para um bairro onde as pessoas “vivem em condições desumanas” há 18 anos.
As condições de alojamento são tema mediático desde 2005, quando cerca de 250 cidadãos ciganos foram deslocados, sob vigilância do corpo de intervenção da GNR, de um aglomerado de barracas para novas habitações no Bairro das Pedreiras. O modo precário como foram alojadas justificou a condenação do Estado português, em Junho de 2011, por violação da Carta Social Europeia.
A situação das famílias que vivem em condições idênticas às que são observadas em acampamentos de refugiados
surpreendeu Ana Pinho, secretária de Estado da Habitação, quando em 2018 visitou o Bairro das Pedreiras: “Tinha informação sobre este bairro, mas o que vejo é muito pior do que aquilo que eu pensava”, comentou a ex-governante na altura.
Construído para receber 250 pessoas de etnia cigana, alberga actualmente cerca de 850 pessoas, grande parte em barracas. Ana Pinho advogou, na circunstância: “Estes casos, como o Bairro das Pedreiras, precisam de uma resposta estruturada, mas acima de tudo integrada.” Paulo Arsénio, que acabava de ser eleito presidente da câmara, disse ao PÚBLICO que a situação “obriga a um diagnóstico detalhado e a um plano de intervenção”, escusando-se a comprometer-se com datas para a resolução do problema.
Mesmo assim, o Governo e a autarquia prometeram, em 2018, uma “resposta articulada, com base numa nova política de habitação e em intervenções direccionadas às comunidades ciganas que habitam naquele bairro”.
Cinco anos depois e aprovado o programa para a
Estratégia Local de Habitação (ELH) para o concelho de Beja, o PÚBLICO voltou a questionar Paulo Arsénio, na última reunião do executivo municipal realizada em 11 de Janeiro, sobre uma eventual solução que colmatasse as situações mais graves de habitação na comunidade cigana. “A Estratégia Local de Habitação não vai responder às necessidades do Bairro das Pedreiras”, vincou o presidente da autarquia, frisando que a ELH prevê a construção de 84 novas habitações de raiz, 60 habitações resultantes de compra de imóveis devolutos que serão reabilitados, e no parque habitacional social do município de Beja serão efectuadas 162 recuperações nos fogos ali existentes. O Bairro das Pedreiras continua como está.