5.1.23

“A pobreza leva a más decisões, comportamentos destrutivos, problemas de saúde mental e mais pobreza: é uma pescadinha de rabo na boca

Joana Ascensão, Jornalista, Nuno Botelho, fotojornalista, in Expresso

Faltar dinheiro no final do mês coloca as pessoas à mercê de um contexto psicológico que as limita na resolução de problemas. A “mentalidade da escassez” explica como dificuldades económicas conduzem à indisponibilidade psicológica – e a psicóloga Edite Queiroz sabe como o combate a uma pressupõe o fim da outra

Conduzir durante uma tempestade. A atenção não se dispersa. O olhar recai sobre aquilo que se dispõe imediatamente em frente. E mesmo a vista da estrada poderá ser dificultada pela chuva. A metáfora, ainda que imperfeita, foi usada por Eldar Sharif para ilustrar a própria teoria da “mentalidade da escassez”, explicada no livro “Tirania da escassez: porque é que tão pouco significa tanto!”.

O professor de ciências comportamentais da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, e ex-consultor da Casa Branca no tempo do presidente Barack Obama, explica como a perceção de escassez, seja ela financeira ou de outra ordem, leva as pessoas a um estado psicológico em que a “largura de banda” da máquina de dois quilos que vive dentro do crânio deixa de saber lidar com assuntos considerados secundários naquele momento.

Esse mindset, que, sem melhor tradução, é definido como mentalidade, compromete a resolução de problemas, a capacidade de avaliar as opções disponíveis e até de tomar boas decisões. Quem o diz é a psicóloga Edite Queiroz, numa entrevista ao Expresso que tenta escrutinar em que é que a escassez pode afetar a saúde psicológica e, por consequência, como é que a falta desta corrobora a situação de escassez, numa simbiose que se prolonga no tempo e afunda desigualdades. E a psicóloga grita: já não chega só ajuda psicológica. Há que eliminar a pobreza.

As pessoas com recursos mais escassos vivem com menos disponibilidade psicológica para se dedicarem a assuntos não imediatos?
Quando se vive numa situação de escassez económica crónica, uma situação de grande precariedade que se prolonga no tempo, todos os recursos das pessoas, inclusivamente os cognitivos, são dedicados e concentrados na resposta a essas urgências. De tal forma que tudo o que exceda a resposta a essas urgências - que podem ser comprar comida, pagar a renda, pagar o empréstimo ou acertar contas atrasadas - deixa de ser relevante para elas, acaba por ficar secundarizado e depois até esquecido. Fazendo uma analogia com a categorização das necessidades de Maslow, é como se todos os nossos recursos mentais fossem dedicados à satisfação do primeiro nível da pirâmide, à base, e faltassem recursos para aceder aos outros níveis.

O esquecimento de questões consideradas acessórias, a longo prazo, tem um comprometimento sério?
Sim. Quando esse mindset de escassez se instala, a pessoa passa a ter um pensamento enviesado no que diz respeito à resolução de problemas e à tomada de decisão – e pode, inclusivé, tomar más decisões e ter comportamentos destrutivos.

A relação entre a pobreza e a saúde mental é complexa e bidirecional: uma pescadinha de rabo na boca.

Que comportamentos são esses?
Por exemplo, ser menos produtivo ou vítima daquela representação social de que não tem tanta disponibilidade para trabalhar. Pode ter mais dificuldades no exercício da parentalidade, tomar más decisões financeiras, como contrair créditos, ou exibir comportamentos menos saudáveis. Outro exemplo clássico, que é muitas vezes uma discussão frequente em conversa, é o das pessoas com menos recursos que têm um telemóvel topo de gama.

Ou as pessoas que vão tomar o pequeno-almoço todos os dias fora.
Exatamente. Ao mesmo tempo que isto acontece, as próprias crenças sociais sobre si mesmo também se vão alterando. As pessoas deixam de sentir que são capazes, que têm os recursos necessários para sair da situação. Isto tudo junto provoca uma espécie de afunilamento das perspetivas de futuro, um pouco como se a ponta da pirâmide do Maslow [a da autorrealização] fosse esquecida.

Os tempos são propícios a este mindset?
Nós estamos a viver num tempo em que o impacto dos determinantes socioeconómicos na nossa saúde mental é de tal forma evidente que a psicologia tem de insistir nesta necessidade de não pensar a saúde mental como algo apenas pertencente ao indivíduo, mas também à sociedade.

A Organização Mundial da Saúde prevê que a depressão possa ser a doença mais prevalente no mundo, em 2030.

Se quisermos abordar o problema de forma economicista, será também aquela que mais custos económicos vai trazer aos países. Numa altura em que os problemas de saúde mentais tomam proporções epidémicas, não podemos perder de vista que a relação entre a pobreza e a saúde mental é complexa e bidirecional: uma pescadinha de rabo na boca.

Edite Queiroz é psicóloga, com especialidades em Psicologia Clínica e da Saúde e em Psicologia do Trabalho, Social e das Organizações. Trabalha na Ordem dos Psicólogos e é autora do blogue 'Câmara Subsjetiva'.

Então, podemos dizer que a pobreza vai condicionar mais pobreza e mais desigualdade? É inevitável?
Sim. Quando dizemos que a relação da saúde mental com a pobreza é bidirecional, estamos a dizer exatamente isso. Ter poucos recursos económicos ou viver numa situação de escassez é um fator de risco para ter problemas de saúde mental. Por outro lado, estes problemas quando instalados e agravados comprometem ainda mais as competências da pessoa para sair da pobreza.

É evidente que nós hoje somos uma sociedade mais doente do que éramos há três anos, quando começou a pandemia?
Do ponto de vista psicológico é bastante evidente. Há dados que corroboram isso. No que diz respeito aos problemas de saúde mental mais comuns - a depressão e a ansiedade -, temos um aumento de 25% na incidência durante o primeiro ano da pandemia. De uma forma clara, os problemas de saúde mental aumentaram em todo o mundo, ao mesmo tempo que, por insuficiência dos serviços, tornou-se mais complicado ter acompanhamento durante a pandemia.

Em que ponto este aumento não tem que ver com maior disponibilidade para detetarmos os problemas?
Eu diria que há uma componente disso, no sentido em que a saúde mental de facto ganhou uma visibilidade muito grande no período pandémico. Mas, mais uma vez, é uma pescadinha de rabo na boca. Por um lado, as pessoas começaram a exibir mais problemas a este nível, o que tornou necessário que este tema começasse a ser falado. Isso teve um reverso positivo, porque diminuiu um pouco o estigma associado a estas questões. Agora, lentamente, as pessoas estão a conseguir aceitar que qualquer um de nós, em função das suas circunstâncias, pode vir a ter um problema de saúde mental. Paralelamente, o aumento da literacia em saúde psicológica aumenta também a disponibilidade para procurar ajuda adequada. As pessoas sentem menos o dedo apontado.

E há ajudas disponíveis?
São muito parcas. Ainda temos um longo caminho a percorrer a esse nível. Em Portugal, no Serviço Nacional de Saúde, há números muito abaixo do que seria desejável. Ao todo, existem pouco mais de mil psicólogos. E quem não tem dinheiro não consegue ir ao privado.


Ter poucos recursos económicos ou viver numa situação de escassez é um fator de risco para ter problemas de saúde mental. Por outro lado, estes problemas quando instalados e agravados comprometem ainda mais as competências da pessoa para sair da pobreza.

E são cada vez mais os que não têm dinheiro.
Exatamente. Isto associado à crise económica e ao facto de as pessoas não terem recursos para responder às necessidades básicas, como falávamos há pouco, acaba por secundarizar a saúde mental.

A pandemia, a guerra e agora a crise colocaram-nos numa espécie de redoma espacial que tão cedo não vamos conseguir estudar. De que forma é que estas diferentes acontecimentos podem ter diferentes impactos?
Os acontecimentos são diferentes, mas o impacto psicológico que provocam não tem assim tanta diferença. Nós, no início da pandemia, vivemos uma situação desde logo provocada pelo stress e preocupação das primeiras notícias. Depois, foi todo o stress associado aos confinamentos, que não foi só ficarmos em casa impedidos de nos relacionarmos com os outros, mas foi também tudo o que isso provocou dentro de casa: disrupção das rotinas familiares e laborais, a introdução do teletrabalho, a educação à distância, o apoio a familiares mais velhos, a solidão, a própria doença e as consequências que isso teve, o luto. Tudo isto é uma caldeirada muito complicada.

E a guerra tem em nós um impacto semelhante?
A questão é não sabermos se houve sequer um período de recuperação. Na verdade, a pandemia foi-se atenuando, apesar de continuarmos a lidar com o vírus. Contudo, com ela veio um conjunto de problemas. Houve quem deixasse de trabalhar e outros, como os profissionais de Saúde, que passaram a trabalhar o triplo. Houve de tudo e nada foi positivo. O que não houve foi um período, depois da pandemia, que nos permitisse sarar de todas estas perdas e de todas estas situações. Continuamos a viver as consequências da crise económica que a própria pandemia tinha instalado, e que agora está a ser agravada por este contexto sociopolítico mais lato. Continuamos a viver num clima de incerteza. Estamos até a ter de nos habituar a uma espécie de mundo novo. Ainda não recuperámos, e é preciso ter em conta que nós já tínhamos problemas antes. Há um número que eu cito com frequência, porque é muito impactante: um terço das pessoas que trabalham em Portugal são pobres. É um dado absolutamente assustador. Um trabalho, por si, já não é condição para escapar a uma condição de escassez económica.

As pessoas deixam de sentir que são capazes, que têm os recursos necessários para sair da situação. Isto tudo junto provoca uma espécie de afunilamento das perspetivas de futuro

Por isso, o projeto 'Final à Pobreza', da Ordem dos Psicólogos?
Pois, a Ordem dos Psicólogos está a consultar os profissionais da psicologia para uma espécie de levantamento de estratégias e de boas práticas para fazer um combate à pobreza. É muito evidente que os psicólogos podem intervir a vários níveis.

E quais podem ser esses níveis?
Os psicólogos têm uma ação que começa no nível individual e vai até à consultadoria em políticas públicas. Podem trabalhar em educação psicossocial, nas escolas, ajudar decisores a estruturar medidas de combate à pobreza, podem promover ações de literacia direcionada para grupos específicos. Mas também não podemos esquecer que nada se faz sem garantir o acesso a serviços de qualidade que realmente consigam suprir as necessidades, algo que não temos em Portugal. Há que apostar na literacia em saúde psicológica, para as pessoas perceberem quais os riscos que correm quando estão em determinadas situações e conseguirem identificar mais facilmente os sinais e procurar ajuda atempadamente.

Quando chegamos a este ponto, podemos não conseguir resolver um problema individual só com intervenção psicológica?
Esse é o meu ponto fundamental. Não descurando do que a psicologia e os profissionais da psicologia podem fazer pela saúde psicológica das pessoas, temos de ter noção de que a resposta global não se faz apenas com isso.

Então?
Faz-se modificando os determinantes sociais e económicos que nos rodeiam e que impactam negativamente a nossa saúde mental. Tem de ser uma resposta em duas frentes. Ainda para mais, estamos a falar do contexto português, onde esta caldeirada cai sob um quadro em que uma em cada cinco pessoas já tinha um problema de saúde psicológica.

Podemos habituar-nos a viver sob esses condicionantes?
Nós habituamo-nos a viver com eles, mas o impacto que têm na nossa saúde progride sozinho.