24.1.23

Oito histórias da habitação jovem em Portugal, em que o “medo do futuro” e a “ansiedade financeira” se traduzem em “desespero”

Margarida Coutinho, in Expresso

A última sondagem do ICS/ISCTE revela um consenso no país: estamos perante uma crise de habitação. Os mais jovens não só concordam como sofrem as consequências na pele. Os altos preços das casas e a falta de apoios adequados contribuem para situações de habitação precárias e para o crescimento da “ansiedade financeira”. O Expresso foi ouvi-los – dos que procuram casa aos que conseguiram apoios do Estado (e mesmo assim não conseguem garantir estabilidade)

O preço das casas em Portugal atingiu um novo “máximo histórico” em 2022 – um crescimento de 13,2% entre o primeiro trimestre de 2022 e o mesmo período do ano anterior, segundo os dados do INE. A estes valores somam-se os rendimentos médios quase estagnados, a escalada da inflação e o aumento generalizado dos bens essenciais. Tudo isto contribui para solidificar uma ideia: estamos perante uma crise de habitação. Os jovens são das faixas etárias que mais sofrem com a situação atual. A maioria não consegue habitação própria e os poucos que conseguem correm o risco de mergulhar numa situação económica insustentável. Do norte ao sul do país, os jovens pedem ação governativa imediata, que vai do investimento em habitação pública à definição de tetos máximos para o valor das rendas. Entre as várias vozes, há sentimentos comuns a todas: ansiedade e receio do futuro.

Na sondagem feita pelo ICS/ISCTE para o Expresso e para a SIC, 91,7% dos jovens entre os 18 e os 35 anos “concorda totalmente” ou “concorda” que há uma crise de habitação em Portugal. Na restante população, a percentagem desce apenas ligeiramente, fixando-se nos 89,8%. “[Nos resultados do estudo] o mais surpreendente é as opiniões dos jovens não se distinguirem da população em geral. Há padrões de concordância muito altos”, nota Alice Ramos, uma das investigadoras responsáveis pela sondagem. As vozes dos mais novos juntam-se às dos mais velhos também nas medidas defendidas para lidar com a situação da habitação. Soluções que passam pelo investimento público (90,1% dos jovens “concorda totalmente” ou “concorda”, face aos 88,5% da restante população) ou pela redução dos impostos sobre o arrendamento (88,4% dos jovens “concorda totalmente” ou “concorda”, face aos 86,3% da restante população).

A crise de habitação é visível em Lisboa, mas não fica por aqui. Do Porto ao Algarve há cada vez menos casas a valores compatíveis com os rendimentos e cada vez mais jovens ansiosos, frustrados e com a emigração como a única solução à vista. Fomos conhecer os seus argumentos.

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ESTUDOS, EMPREGO, POUPANÇAS. NADA PARECE SER “SUFICIENTE”

Ao contrário daquilo que acontecia há umas décadas, ser bem-sucedido na educação e no emprego não é suficiente para garantir um futuro com património. A "geração mais qualificada de sempre" continua com salários precários, especialmente quando comparados aos preços praticados no mercado imobiliário. “Tenho um salário talvez acima da maioria dos jovens, supostamente tenho todas as condições para pedir um crédito à habitação e o melhor que me conseguiam oferecer eram prestações de 800 ou 900 euros. Uma coisa absolutamente incomportável”, partilha Gonçalo Gomes, de 29 anos. O jovem, natural do Algarve e a viver em Lisboa desde os 18 anos, procura casa para comprar há cinco anos, mas desiste sempre que é “confrontado com os preços”. “Não estamos a falar de um T1 no Chiado, estou a procurar na zona de Almada e nem assim é possível. Estudei, arranjei um trabalho estável, o que é preciso fazer mais para conseguir arranjar casa?”.

Também Maria do Ó e Enrique Martinez, de 27 e 25 anos, encontram-se na mesma situação. O casal lisboeta, com casamento marcado para este ano, continua sem conseguir encontrar uma casa adequada aos seus rendimentos. “Temos trabalhos estáveis com ordenados razoáveis e mesmo assim não é possível”, diz ao Expresso Maria do Ó. Uma das maiores dificuldades apontadas é conseguir o capital para os “10% de entrada” que, neste momento, podem representar valores acima dos 20 ou 30 mil euros. “Ambos queremos construir família, mas o facto de não conseguirmos comprar casa pode atrasar essa vontade”, revela Enrique.

A mais de 300 quilómetros de distância, o cenário repete-se. “Estou desde setembro à procura de casa e é impossível. Os preços são para estrangeiros”, explica Rita Ferreira, de 35 anos. A nutricionista natural de Penafiel vê a situação habitacional do Porto muito semelhante à de Lisboa. Além dos valores incomportáveis das casas, a alta procura dificulta ainda mais a vida de quem quer comprar ou alugar casa. “Já apanhei fila para ir ver uma casa. Tira logo a esperança.”

Nos poucos casos em que encontra casas a preços razoáveis, quem acaba por assinar o contrato é quem oferece “mais rendas”. “Não é possível para mim pagar quatro ou cinco rendas de uma vez, é mais de quatro ou cinco mil euros”. Apesar de se dividir entre o trabalho “no público e no privado”, Rita Ferreira não tem capacidade financeira para comprar casa ou até para manter a sua “independência”. O contrato de arrendamento do T1 onde se encontra vai sofrer um aumento, mas, até aqui, não surgiram soluções alternativas. “É o sentimento de que trabalhas, trabalhas e trabalhas e parece que nunca é o suficiente. É desesperante”.

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APOIOS SÃO “DESAJUSTADOS AO MERCADO”

Uma das formas de permanecer nos grandes centros urbanos, sem partilhar casa, é conseguir ser selecionado para um dos programas de apoio do Estado. “[Se não tivessem conseguido o apoio] seguramente não teríamos condições para estarmos num T2 como hoje estamos”, comenta João Matos, de 28 anos, a viver em Lisboa através do Arrendamento Acessível. Uma jovem de 24 anos, que preferiu não ser identificada, é dos poucos casos que garantiu não só o apoio do Arrendamento Acessível, como também o do programa Porta 65. “Com o programa Arrendamento Acessível, a renda é boa para Lisboa, mas continua a ser muito alta para um jovem conseguir construir um futuro", começa por contar ao Expresso. Com os dois programas – que sofreram alterações recentes para alargar o leque de beneficiários –, é finalmente possível a esta jovem viver em Lisboa sem pôr em causa a sua sustentabilidade financeira. “Estamos a pagar uma renda justa, um valor que nos permite poupar e pensar numa família.”

Apesar dos benefícios concedidos por estes programas, ambos os jovens identificam “problemas” na conceção dos mesmos. No caso do Arrendamento Acessível, o programa supõe que o valor da renda desce, tendo por contrapartida a isenção de IRS ou IRC para o senhorio. Contudo, os jovens garantem que a maioria dos proprietários prefere optar por inquilinos que não exijam essa “burocracia”. “Fazíamos as propostas para as casas já a dizer que só estaríamos interessados com arrendamento acessível. Quando chegava o momento da verdade, ninguém queria. Respondiam que já havia muitas pessoas interessadas pelo preço atual e que era muita papelada”, relembra a jovem de 24 anos.

Segundo os critérios do programa, “quase todos os jovens são elegíveis, o problema maior está no lado do senhorio”. João Matos concorda que, neste caso, a maior parte da burocracia “acaba por cair nos senhorios”. “Há senhorios que não querem integrar o programa por desconfiança para com o Estado ou porque preferem cobrar um valor mais alto, porque o programa inclui um teto máximo [de renda]”. Isto acaba por resultar num número menor de senhorios interessados e, consequentemente, menos jovens abrangidos pelo apoio. “[Este programa] não é a resposta mais eficaz neste mercado de selvajaria em que está a habitação em Lisboa”, conclui o arrendatário de 28 anos. A jovem concorda: “o apoio existe, mas é muito difícil pô-lo em prática”.

Estes apoios de habitação não parecem suficientes para garantir a permanência dos jovens nas grandes cidades. Os entrevistados não querem “pensar demasiado” sobre o momento em que os apoios vão chegar ao fim. “Depois destes cinco anos não vemos um futuro em Lisboa. A cidade não está pensada para os jovens portugueses”, desabafa a jovem de 24 anos. E conclui: “Agora é aproveitar a sorte que tivemos e depois é pensar em ir embora”.

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FALTA “LITERACIA FINANCEIRA”

A grande maioria dos jovens portugueses não tem capacidade financeira para comprar casa no cenário atual ou, se o faz, é graças à ajuda de familiares. Os poucos que conseguem comprar, fazem-no pondo em causa a sua estabilidade financeira. “Quando comprei casa fiquei totalmente descapitalizada. Tive de voltar para casa dos meus pais durante umas semanas e não lhes pedi dinheiro, mas pedi comida”, revela Bruna Bruno, de 28 anos. Depois de três anos à procura, a jovem, que trabalha na área tecnológica, conseguiu comprar casa em novembro de 2021, na zona de Carnaxide com os próprios rendimentos.

“Consegui juntar dinheiro para a entrada e para os impostos, que são altíssimos. Mas com a inflação, as prestações da casa aumentaram quase 400 euros”. Tal como a “grande maioria dos empréstimos em Portugal”, lê-se no site do Banco de Portugal, também Bruna Bruno optou pela taxa de juro variável. Com a inflação galopante, a jovem saiu de uma “taxa de esforço de 15% para 26%”. Parte desta decisão parte de um desconhecimento geral dos jovens acerca de temas como taxas de juro ou impostos. “Há falta de literacia financeira em Portugal. Os bancos confirmam que podes pagar hoje, mas não te dizem se podes pagar amanhã e ninguém te ensina a melhor forma de fazer isto”. Caso a inflação continue nesta escalada ascendente, Bruna Bruno será obrigada a pensar em formas de não entregar a casa ao banco. “Já pensei em alugar um quarto na minha casa, encontrar uma fonte de rendimento extra ou, em situações extremas, voltar para casa dos meus pais e pôr a casa a alugar”. Esta situação contribui para uma constante “ansiedade financeira” mesmo para quem consegue adquirir património.

Quando questionada sobre que conselhos deixaria a quem está, neste momento, à procura de casa, Bruna Bruno lembra a importância dos jovens se “informarem bem sobre o que querem”, de fazerem a melhor “gestão orçamental possível” e de tentarem “rentabilizar ao máximo os rendimentos”. “Consegui pagar os impostos da minha casa porque tinha investimentos como os certificados de aforro.”

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SITUAÇÃO DE HABITAÇÃO DÁ ORIGEM A “ANSIEDADE FINANCEIRA”

A situação de habitação precária dos jovens não só condiciona o futuro dos mesmos – atrasando a decisão de ter filhos, por exemplo – como também tem consequências para a sua saúde mental. “No final deste ano, fomos confrontados com uma situação de quase despejo que resultou no aumento da renda. Nessa altura tive uma crise de ansiedade, coisa que nunca tinha tido antes”, confessa Gonçalo Gomes. Para o algarvio, uma renda incomportável no cenário de preços atual pode precipitar numa mudança completa de vida. “Se ficar sem casa vou ter de me despedir e voltar para casa dos meus pais, no Algarve. Aí perde-se o estudo, a luta pelo emprego estável, todo um percurso de vida. Tudo isto está na minha cabeça em espiral.”

Esta situação de “stress mental” é partilhada com Susana Franco, de 30 anos. A jovem gerente de loja foi destacada para o Algarve, onde encontrou uma situação habitacional precária. “Estive um mês num hotel porque não conseguia arranjar casa. Os senhorios só aceitam arrendamentos até abril ou maio, para depois aumentarem as rendas no verão”, explica ao Expresso. Depois de viver numa “garagem adaptada”, a jovem do Bombarral conseguiu encontrar um quarto com aluguer anual por 400 euros mensais que “nem é no centro de Portimão, fica a mais de um quilómetro”. Até encontrar o quarto que considera ser “um achado”, Susana Franco deparou-se com quartos “sem contrato”, preços “absurdos” e “burlas” em grupos de Facebook.

“Há anúncios de pessoas que pedem 100 euros de caução só para ir ver o quarto e depois não devolvem esses depósitos”. Estas dificuldades não são exclusivas dos jovens, há também famílias inteiras a viver em situações de habitação pouco dignas. “[Perto da sua casa] há uma suposta loja arrendada a oito pessoas que dividiram a casa por cortinas e meteram colchões no chão. Estão há meses a viver assim”. E deixa o recado: “há muito desespero cá em baixo”. Assim como Gonçalo Gomes, também Susana Franco concorda que a constante iminência da subida das rendas e a falta de segurança no futuro habitacional deixam os mais jovens num “stress mental horrível”.

A estes dois jovens, junta-se Rita Ferreira, que vê os “amigos imigrantes” com menos constrangimentos financeiros e com a possibilidade de adquirir património. “Tenho amigos que imigraram e compraram casa, mas eu não queria imigrar. Se for é de coração partido”, partilha a penafidelense. No entanto, permanecer em Portugal é também sinónimo de continuar a adiar os objetivos que tem para o futuro. “Fica tudo on hold e isso dá-me ansiedade e perturba a minha saúde mental”.

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SOLUÇÕES? É PRECISO RESPOSTAS GOVERNATIVAS “JÁ”

Perante este cenário negro, os jovens exigem soluções ao Governo. Além de pedirem por apoios mais “ajustados” à situação atual, grande parte da geração mais nova acredita que a solução passa por um maior investimento na habitação pública. Mas não só. “Uma das soluções poderia passar por mais investimento em habitação pública a preços acessíveis. No entanto, isso não resolve o problema no imediato. É preciso uma solução agora e não daqui a cinco anos”, defende Gonçalo Gomes. Outra das soluções, apontadas tanto por Gonçalo como por Rita Ferreira, passa por um “aumento dos salários”. Para Susana Franco, há duas outras questões que devem ser reguladas pelo Estado: o valor das rendas e o número de depósitos pedidos no momento de fechar os contratos de arrendamento. “Devia haver limite de valor para cada tipo de casa e não deveria ser permitido pedirem três ou quatro rendas de uma vez. Um mês de renda [caução] já dá segurança ao senhorio”. O turismo é também um dos setores que sofre mais críticas e ao qual se pede maior regulação. “Se temos estrangeiros e nómadas digitais a conseguirem pagar estas rendas, é normal que os senhorios as continuam a praticá-las. É preciso haver intervenção do Estado”, argumenta Gonçalo Gomes. Para este jovem, esta é uma das medidas mais urgentes para “combater a especulação”. Resta saber se o recém-criado Ministério da Habitação, tutelado por Marina Gonçalves, irá conseguir responder a estes pedidos dos jovens – e respeitar os três meses exigidos por Costa.