Natália Faria, in Público online
Famílias monoparentais e reconstituídas já são 27,3%. Ideia do “para sempre” foi transposta para os filhos, enquanto a conjugalidade se alterou, diz investigadora Sofia Marinho, sobre análise do INE.
As famílias portuguesas estão a encolher e a diversificar-se, mas estão longe de estar em crise: em dez anos, as famílias monoparentais e as reconstituídas viram o seu peso aumentar de 21,5% para 27,3% do total de famílias, segundo o retrato das estruturas familiares que o Instituto Nacional de Estatística (INE) fez a partir dos dados obtidos nos Censos 2021.
Este expressivo aumento em 20,7% das famílias monoparentais captou a atenção da investigadora Sofia Marinho, do Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, que, em declarações ao PÚBLICO, destacou que é precisamente porque as pessoas valorizam mais a família que se divorciam ou separam mais. “O que mostram os inquéritos sobre as atitudes é que há uma mudança ao nível de valores, precisamente porque se considera que a família deve ser um lugar de bem-estar, de realização pessoal, ao nível identitário e emocional”, enfatizou.
Neste processo de mudança em curso, que “em Portugal tem vindo a acontecer um pouco mais tarde do que noutros países”, o que acontece é que a parentalidade tende a desligar-se cada vez mais da conjugalidade. “A conjugalidade é menos investida no sentido do casamento como instituição a preservar para a vida toda e o ‘para sempre’ foi transposto para os filhos. Se a conjugalidade não corre bem e não é satisfatória, acaba-se e recomeça-se, os filhos é que são as âncoras afectivas para toda a vida”, decifra a investigadora.
O estudo do INE destaca o aumento de 18,6% do número de pessoas que vivem sozinhas e que já pesam 24,8% no total dos agregados domésticos privados (21,4% em 2011). Neste caso, 60% dos agregados são compostos por mulheres, com 65 ou mais anos de idade, reformadas e com escolaridade até ao básico, segundo o INE, que admite que esta preponderância possa estar “relacionada com o número de viúvas ser superior ao número de viúvos, reflectindo a maior esperança de vida das mulheres”.
Mas o aumento das famílias monoparentais, que passaram de 14,9% em 2011 para os actuais 18,5% do total de famílias, é o que mais salta aos olhos. Recusando leituras apressadas, Sofia Marinho recorda desde logo que no anterior momento censitário, que fez a fotografia das mudanças ocorridas entre 2001 e 2011, o aumento fora maior. E a explicação é simples: “A lei do divórcio, aprovada em 2008, desbloqueou um conjunto de situações ao contemplar a possibilidade de divórcio sem mútuo acordo, sem consentimento do outro.”
Por outro lado, Sofia Marinho admite que haja um enviesamento nestes dados dos Censos 2021 cujos inquéritos foram aplicados num período de confinamentos intermitentes.
“O próprio INE está a trabalhar outras fontes de informação para perceber o quão especial foi a situação apurada em 2021, sabendo nós, como sabemos, que a pandemia provocou alterações na organização das estruturas familiares, nomeadamente ao nível de casais que voltaram a viver juntos para evitar a exposição da criança ao vírus na transição de uma casa para outra; prestadores de cuidados de saúde que resolveram ficar a viver sozinhos para protegerem a família; jovens que retornaram a casa dos pais, progenitores que entregaram a criança ao outro progenitor para poderem cuidar dos pais, num quadro em que os mais velhos tinham de ser protegidos do contacto com crianças…”, descreve, para lembrar que “são situações transitórias mas que foram apanhadas pelos Censos”.
Por ora, a análise fina dos números confirma que 85,6% das 579.971 famílias monoparentais são encabeçadas por mulheres, mas os pais com filhos aumentaram 1,1 pontos percentuais na última década: de 13,3% para os actuais 14,4%. Parece pouco, mas na realidade são mais 19.529 famílias compostas por pai e filhos (mais 79.999 no caso de mãe a viver com filhos).
Se atendermos à idade dos filhos, 92,7% das crianças com menos de seis anos de idade residiam com as mães e apenas 7,3% com os pais.
Mas há dinâmicas que os dados recolhidos pelo INE não espelham. “Os Censos não levam em conta o ordenamento jurídico de residência da criança e de visitas e as situações de residência alternada não são aqui consideradas”, aponta Sofia Marinho.
Quanto à caracterização dos pais e mães que vivem sozinhos com filhos, não há grandes diferenças a registar: mais de 70% estavam empregados e, tal como nas restantes famílias, o número de filhos tende a ser superior em progenitores com ensino secundário ou pós-secundário e superior.
“Nas famílias com filhos menores de 18 anos, verificou-se o reforço da autonomia habitacional, o que é um dado importante dada a maior vulnerabilidade destas famílias à pobreza”, caracteriza a investigadora, para apontar ainda o aumento dos solteiros a viverem em núcleos monoparentais. “A taxa intercensitária foi de 55% - foi o maior aumento - e penso que isto se explica pelas pessoas que tiveram filhos em contexto de uniões de facto que, entretanto, acabaram”, diz, lembrando a propósito que, ao contrário das separações de facto, os casamentos têm vindo a diminuir, logo os divórcios estabilizaram.
Os teus, os meus e os nossos
As famílias reconstituídas também cresceram na última década, embora um pouco menos que os núcleos monoparentais. As actuais 124.717 famílias recompostas traduzem um crescimento de 17,9%, sendo que “na maioria destes núcleos familiares reconstituídos não existem filhos comuns ao casal (55,2%), enquanto 35,1% destes casais tinham um filho comum e apenas 9,7% tinham dois ou mais filhos comuns”.
Na maior parte dos casos (62,3%), estes casais não arriscaram nova ida à conservatória ou ao altar e optaram por viver em união de facto, numa tendência quebrada apenas pelos casais recompostos com dois ou mais filhos em comum, de entre os quais 52,7% voltaram a casar-se. Seja como for, e como sublinhou a investigadora Susana Atalaia durante a apresentação do estudo do INE, “a coabitação mantém-se como um dos principais traços distintivos da vida em contexto de recomposição familiar”.
Por causa das novas formas de estar em família, os agregados domésticos privados, isto é, o conjunto de pessoas que partilham habitação, aumentaram 2,6% (são actualmente 4.149.096), mas diminuíram de tamanho, já que a sua composição média passou de 3,7 para 2,5 pessoas entre 1970 e 2021, reflectindo, segundo o INE, “novas formas de organização familiar, assentes em estruturas familiares de menor dimensão e com novas configurações”.
Por outro lado, os núcleos familiares convencionais, isto é, o conjunto de pessoas que vivem na mesma casa e têm uma relação de conjugalidade, com ou sem papéis e com ou sem filhos, diminuíram ligeiramente na última década: de 3.226,371 em 2011 para os actuais 3.127,714. Neste universo, cabem então os casais com filhos (45,3%), os núcleos monoparentais (18,5%), os casais sem filhos (36%) e os recompostos (8,8%).
Quanto aos casais com filhos, a diminuição observada na última década foi de 12,3%, numa tendência comum a todo o território nacional, sendo que 78,6% eram casais de direito e os restantes 21,4% viviam em união de facto. Sem destoar das quedas sucessivas na natalidade, o número médio de filhos nestas famílias desceu, mas apenas ligeiramente, de 1,55 para 1,54 filhos em média, com a região dos Açores, apesar de ter sido aquela a registar o maior decréscimo do número médio de filhos por casal, a continuar a apresentar o maior número médio de filhos: 1,61.
Segundo o INE, o trabalho e a escolaridade continuam a funcionar como determinantes na decisão de ter filhos. Nos casais em que ambos os membros estão empregados, o número médio de filhos fixa-se em 1,58, baixando para 1,35 nos casais em que ambos estão desempregados ou inactivos. Do mesmo modo, “casais com nível de escolaridade superior têm, em média, um maior número de filhos no núcleo”, escreve aquele instituto, para precisar que, “quando ambos os membros do casal têm nível de escolaridade superior, o número médio de filhos e de crianças no núcleo atinge valores máximos: 1,67 filhos”.