24.1.23

A classe média já não é o que era. Os critérios estão "um pouco pervertidos"

Fábio Monteiro, in RR

Sob o olhar estatístico da OCDE, 60% dos portugueses pertencem à classe média. Acreditando nos números, é possível ganhar o salário mínimo e fazer parte deste grupo. O sociólogo Elísio Estanque defende que os critérios de análise “estão um pouco pervertidos”. Para Manuel, é impossível ser classe média em Lisboa com menos de dois mil euros brutos por mês. Nuno traça a linha na capacidade de saída de casa dos pais. Eduardo questiona a carga fiscal.

O espanto vibra na voz de Manuel Coelho Dias e por pouco não se transforma numa gargalhada. O analista de risco de 30 anos, natural de Guimarães, tem dificuldade em compreender a cegueira da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), a forma limitada como a entidade europeia determina quem faz parte ou não da classe média em Portugal.

Pertencer a tal grupo é ter “um padrão de vida”, mais do que receber um salário substancial. “Se uma pessoa consegue ir ao cinema, jantar fora, aceder a bens culturais. Se consegue viajar. Se uma pessoa precisar, eventualmente, de pôr um filho numa escola privada, conseguir”, defende.

A OCDE, todavia, tem uma visão muito mais restrita - apenas lhe interessam os valores auferidos por ano por cidadão e/ou família. Tendo por base o rendimento mediano nacional anual, calcula duas fasquias: a mínima (75%), equivalente digamos à classe média-baixa, e a máxima (200%), a dita classe média-alta.

Assim, de acordo com a organização, em Portugal, uma pessoa que ganhe entre 7.607 euros e os 20.285 euros anuais brutos pertence à classe média; um casal que leve para casa entre 10.758 e 28.688 euros, idem.

É também assim que, com base nestes mesmos números, a ODCE afirma que 60% da população portuguesa encontra-se hoje na classe média.

Este é, no entanto, um retrato do país que muitos portugueses não reconhecem. Aliás, como um outro inquérito da OCDE, em 2019, sinalizou: dos cidadãos nacionais ouvidos, apenas 32% disseram pertencer à classe média – o valor mais baixo de todos os países da União Europeia. Em Espanha, ocorreu o fenómeno oposto: foram mais aqueles que declararam pertencer do que aqueles que encaixavam nas métricas.

A realidade é que, nas duas últimas décadas, a classe média em Portugal tem vindo a perder poder de compra – principalmente, devido ao custo da habitação e de atualizações salariais abaixo da inflação – e a encolher.

A Covid-19, por exemplo, deu um empurrão nesta tendência: um estudo do Center of Economics for Prosperity (PROSPER) da Universidade Católica de Lisboa, publicado em 2021, indica que, devido aos impactos financeiros da pandemia, cerca de 400 mil portugueses deixaram de ser classe média.

Somado a isto, os números da OCDE são fáceis de rebater. Um português que, em 2023, ganhe o Salário Mínimo Nacional (SMN) e tenha um contrato de trabalho padrão, ou seja, receba doze meses de remuneração mais subsídio de Natal e de Férias, aufere por ano 10.640 euros brutos.
Por outras palavras: sob o olhar estatístico da OCDE, alguém ganhe o SMN em Portugal pertence à classe média.

Manuel Coelho Dias recusa-se a aceitar tal raciocínio. O analista mora em Lisboa desde 2017 e trabalha para uma empresa multinacional; sempre auferiu mais de mil euros líquidos. Anualmente, ganha acima da fasquia máxima calculada pela OCDE para a classe média. Ainda assim, tem dificuldade em dizer que integra esse grupo, quanto mais dizer-se “rico”.
“Tenho menos qualidade de vida do que tinha quando dependia do dinheiro dos meus pais, que era menos. Isto é uma coisa um bocado sinistra”, afirma.

Para o jovem, uma pessoa que ganhe menos de dois mil euros mensais e que more em Lisboa – cidade do país onde os custos com habitação são mais elevados - não deve ser considerada classe média.
“A pessoa faz o quê com o dinheiro? Fora IRS e Segurança Social, são 1500, 1400 euros líquidos. Ora, alguém que pague uma renda ou empréstimo de 400 euros, que faça uma mínima poupança de 200 ou 300 euros. Se viver o resto do mês com 700 euros para todas as coisas, não dá muita folga. Se quisermos ser dignos e justos, menos de dois mil euros não é classe média. E estamos a falar da perspetiva de uma pessoa solteira”, afirma.

Se as expectativas salariais de Manuel podem parecer ambiciosas, desproporcionais face à média dos salários nacionais, é de notar que o seu entendimento bate certo com o de alguns representantes políticos. Em 2016, em declarações ao “Observador”, João Galamba, atualmente ministro das Infraestruturas, afirmou que uma pessoa que ganhe 5 mil euros (brutos) e que viva apenas do seu rendimento, podia considerar-se classe média.

As métricas da OCDE esboçam, pois, um cenário muito diferente. Porventura, a classe média portuguesa até pode estar como que em vias de extinção.

A lenta erosão

Os números, por regra, são cegos ao contexto. E os da OCDE sofrem dessa limitação, aponta o sociólogo Elísio Estanque, autor do livro “Classe Média: Ascensão e Declínio” (ed. FFMS). “Os critérios usados para a medição da classe média estão um pouco pervertidos.”

O problema, nota Elísio Estanque, prende-se “com a falta de indicadores que sejam um pouco mais elaborados que o mero critério do rendimento salarial”. Fatores como a educação ou hábitos de consumo, por exemplo, são também importantes para se ter um retrato real do país.

Ainda assim, o sociólogo admite: os salários são um elemento fundamental para análise. O rácio entre o SMN e o salário mediano em Portugal (924 euros) está, neste momento, nos 85%. Caso o salário mínimo continue a aumentar ao mesmo ritmo que desde 2015, até 2030 o rácio poderá chegar aos 100% - ou seja, o valor do salário mediano em Portugal ser igual ao do salário mínimo nacional.

À Renascença, Elísio Estanque lembra ainda que se tem observado uma relativa aproximação do salário mínimo nacional (760 euros) ao salário médio nacional (1.361 euros brutos) nos últimos anos. Até ao final da legislatura, em 2026, o Governo pretende aumentar o SMN até aos 900 euros.
“Isso significa que as classes que até então estavam mais estáveis e se sentiam mais protegidas, com expectativas de subida e reconhecimento e de melhoria económica, têm sofrido talvez mais até do que aqueles que estão na base da pirâmide social, que devido às políticas sociais têm sido mais objeto de atenção do que os setores intermédios”, afirma.

De acordo com dados recentes do Eurostat, o salário médio bruto por ano em Portugal foi de 19.300 euros em 2021, enquanto a média europeia foi de 33,5 mil euros; o décimo valor mais baixo de toda a União Europeia. “O salário médio em Portugal é dos mais baixos dos países da OCDE. Isso significa que a economia não tem conseguido acompanhar aquilo que é um processo de qualificação das gerações mais jovens em Portugal”, diz.

Frederico Cantante, professor universitário no ISCTE e investigador no Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social (CoLABOR), subscreve as mesmas teses que Elísio Estanque. Nas últimas décadas, “houve uma recomposição acelerada da população portuguesa”, em particular ao nível da formação superior, mas “no campo dos rendimentos houve um hiato”, defende.

O sociólogo encontra até um reflexo contemporâneo deste problema nas greves dos professores nas últimas semanas.
“Aquilo que estamos a ver neste momento na greve dos professores é de facto um bom exemplo daquilo que podemos chamar de desqualificação social ou simbólica de um grupo de pessoas que, objetivamente, se enquadra na classe média portuguesa, do ponto de vista socioprofissional. Mas, do ponto de vista do rendimento, são pessoas que têm vindo a perder bastante”, aponta.

Há dez anos, o salário de um professor poderia ser facilmente encarado como um salário de alguém de classe média. Hoje, é pouco provável. O crescimento de salários abaixo do PIB, os preços da habitação a galopar e a inflação fizeram com que os rendimentos de “uma boa parte da população portuguesa estejam bastante condicionados, bastante magros”.

Houve “uma grande compressão” entre o valor do salário mínimo e o salário médio: uma diferença que varia entre os 250 e os 300 euros, como indica o estudo “Os salários em Portugal: padrões de evolução, inflação e desigualdades”, publicado em dezembro de 2022, e do qual Frederico Cantante é coautor.

Por vários motivos, Frederico Cantante não fica espantado que apenas 32% dos portugueses tenham dito à OCDE que se sentiam de classe média. “As pessoas tendem a posicionar-se abaixo, a subestimar a sua posição de rendimentos”, em sociedades cujo nível de desigualdade social é maior, explica.

Em norma, pertencer à classe média é algo que as pessoas associam a estar numa posição de segurança, com previsibilidade quanto ao futuro. Um cenário que não bate certo com o “aumento da precariedade laboral que houve em Portugal” nos últimos anos.

Uma nova classe low-cost

Em setembro de 2021, Nuno Rafael Gomes saiu de casa dos pais. Após três anos e meio a trabalhar a recibos verdes, com rendimentos baixos e voláteis, “uma situação bastante precária”, arranjou um emprego com contrato de trabalho e trocou Guimarães por Lisboa. Trocou a insegurança por um “salário razoável”.

Nuno considera-se parte da classe média quase só por “viver fora da casa dos pais”: é aí que desenha a linha. Na capital, divide casa com amigos, consegue fazer poupanças. Tem dinheiro para “ir a um concerto, ir ao teatro.” Ir viajar não é impossível, mas implica fazer contas, “uma ginástica maior”.

Dito isto, o jovem português não gosta muito de falar de classes.
“Acho que foi algo passado pelos meus pais. Até há um certo desconforto em se dizer que é classe média. É aquela coisa que a gente é humilde e tem o dinheiro contado. Sinto que há essa perceção muitas vezes. É como se ficasse mal dizer que tens possibilidades de ter uma vida melhor”, conta.

Apesar de nem sempre o orçamento familiar ter sido folgado, em particular nas redondezas de 2008 quando “a situação financeira da casa ficou fragilizada”, e de em alguns momentos pagar contas ter sido “complicado”, Nuno cresceu com a sensação de ser classe média. “Nunca faltou nada. Mas pronto. A situação melhorou e, portanto, não me sinto à vontade para dizer que fossemos uma classe mais baixa que a classe média”, diz.
O entendimento dos pais de Nuno, quanto à sua posição na pirâmide de classes, sempre foi diferente. “Há sempre aquele pudor. O dizer não somos nada classe média, a gente é pobre. Faz-me confusão dizer que a gente é pobre quando não somos, quando os que são pobres passam dificuldades que a gente não passa”, explica.

Para os padrões estatísticos da OCDE, Nuno é classe média. Mas terá o jovem a fasquia demasiado baixa? Será que faz parte de uma classe média “low-cost”? Há poucas semanas, o jornal espanhol “El País” publicou um ensaio, da autoria do jornalista Sérgio C. Fanjul, com o título: “Não chegamos ao fim do mês. A classe média não era isto”.

No texto, Fanjul cita da obra “O fim da classe média e o nascimento da sociedade de baixo custo”, dos italianos Massimo Gaggi e Edoardo Narduzzi (não editada em Portugal), a seguinte frase: “Em muitos países, a difusão de produtos e serviços low-cost, ao aumentar moderadamente o poder aquisitivo dos salários, começa a ter mais peso que uma reforma fiscal ou que o Estado Social.”

Nuno divide casa em Lisboa. Se tivesse de morar sozinho, dificilmente conseguia. Se tivesse de voltar para a sua terra natal, Guimarães, também não conseguia. A solução teria de ser morar com os pais, admite. “E aí conseguia poupar.”

O jovem leva uma vida que considera de classe média – mas ainda não há habitação low-cost, nem parece que vá existir em breve. Segundo a OCDE, a despesa das famílias portuguesas com a casa foi das que mais aumentou entre 1995 e 2015. Durante esses 20 anos, os gastos passaram de 18% do orçamento familiar para 21,2%.

Desde 2015, as evoluções das despesas com habitação aumentaram ainda mais – e mais rapidamente. Neste momento, segundo o Eurostat, está nos 25,7%. Nos agregados familiares com rendimentos mais baixos, representam mesmo cerca de 40% dos gastos.

Este é um problema do presente e para o futuro, assume o sociólogo Frederico Cantante, à Renascença.
“É normal que num contexto em que o aumento do preço da habitação foi muito significativo e que não foi acompanhado por parte dos rendimentos dos indivíduos, aquela segurança, aquele conforto que poderíamos identificar mais ou menos com classe média, se tenha vindo a esbater. É por isso que não me espantam nada os valores apresentados pela OCDE.”

E depois a habitação

Eduardo Pereira tem 25 anos e também não se revê nas métricas da OCDE. No mínimo, para alguém ser classe média devia auferir 12 mil euros, mas, mais importante, é preciso ter em em conta onde é que essa pessoa mora, defende. “É inimaginável que qualquer português, mesmo vivendo numa cidade com um custo de vida mais baixo, sobreviva com o valor mais baixo [calculado pela organização] e tenha uma vida confortável”.
“Alguém que tenha uma casa paga pode ter um salário mais baixo, mas ser considerado classe média, porque está muito mais à vontade. Mas de for alguém em Lisboa, mesmo com um salário médio e que tenha de pagar um apartamento, aí diria, pessoalmente, que esse alguém já não é muito classe média e que vive com dificuldades”, explica.

Por comparação com os pais, que não frequentaram o Ensino Superior, Eduardo diz que hoje ambos estão “ao mesmo nível de classe média”. A questão, salienta, não está no aumento do SMN, que pode e deve “continuar a aumentar”: está na falta de oportunidades.
“As pessoas que têm formação devem ter cada vez mais oportunidade de ganhar mais. Devíamos estar num país que acompanhasse o aumento de formação dos jovens, tendo em conta que a nossa geração é a mais bem preparada de sempre em Portugal. Infelizmente, isso não acontece”, conta.

O desafio está nas mãos da classe política e do Governo em particular. Afinal, é raro encontrar um discurso político, um programa eleitoral, à exceção do Partido Comunista Português, sem uma menção à classe média. É um chavão recorrente, um alvo – e, mais importante ainda, um eleitorado desejado, em particular pelos partidos do centro.

Quando ouve o Governo a falar para a classe média, o analista de risco Manuel Coelho Dias não revira os olhos, sente que estão a falar consigo. “Não sinto é que entendam os meus problemas”, diz. E quais são? “A carga de impostos.” “É completamente surreal que se considere que uma pessoa que ganha 2000 euros ou mais possa pagar 40% de impostos. Isto é completamente surreal. E é uma das razões pelas quais há imensa evasão fiscal.”

Eduardo Pereira queixa-se exatamente do mesmo. E tem a mesma perceção quanto aos discursos. “Sinto que estão a falar para mim, mas ao mesmo tempo não. Porque uma classe média em Portugal que pague 30 ou 40% de impostos não faz sentido nenhum. Entendo que eles façam esse discurso, mas quando eles falam de alguém que ganha mil, mil e duzentos euros, para mim é difícil considerar classe média, porque são pessoas que ganham para gastar nas despesas do dia-a-dia”, diz.

Se o Governo e restantes partidos políticos não acorrerem às necessidades da classe média, que está lentamente a minguar, poderemos assistir, a curto prazo, a um aumento de casos de pessoas “muito frustradas” e contra “as políticas sociais que se dedicam aos setores mais empobrecidos da sociedade”, diz o sociólogo Elísio Estanque.

“Cria-se aqui um ambiente que galvaniza e favorece o discurso populista, de extrema-direita, porque vai no sentido de assacar sempre culpas contra alguém que é supostamente objeto de proteção”, alerta ainda.

Neste momento, a coesão da sociedade está “em causa”. Segundo o sociólogo, “uma classe média vigorosa é uma classe média que acredita na democracia e nas instituições”. Uma classe média fraca ou em vias de extinção é, pois, o oposto.