Ivone Florêncio é técnica do Núcleo distrital da EAPN- Rede Europeia Anti-Pobreza e em entrevista ao Jornal Nordeste fala do impacto que a pandemia e a guerra na Ucrânia tiveram no distrito e em todo o país e prevê que no próximo ano os pedidos de ajuda aumentem. Em Portugal cerca de 14% das pessoas que trabalham vivem em situação de pobreza. As medidas tomadas pelo Governo não estão a conseguir colmatar as dificuldades das famílias mais vulneráveis
Aumento dos preços provocado pela pandemia, logo a seguir uma guerra que provoca uma inflação... que impacto é que isto teve nas famílias aqui do distrito de Bragança?
Nós não temos dados oficiais por distrito relativamente ao impacto da pobreza nas famílias, temos sim dados nacionais recolhidos pelo Observatório Nacional de Luta Contra a Pobreza, que é um serviço da EAPN, que recolhe e analisa indicadores de âmbito nacional, que retratam a situação do país. Sabemos que a crise pandémica que decorreu no ano 2020 trouxe uma substancial perda de rendimentos a grande parte das famílias, uma grande assimetria na distribuição dos rendimentos e efetivamente o ano de 2022 com a guerra na Ucrânia provocou aqui um aumento substancial do custo médio de vida a todas as pessoas, independentemente de serem trabalhadores, não trabalhadores ou pessoas em situação de pobreza, e que proporcionou uma perda do poder de compra e um custo do nível de vida. Em 2021 o número de pessoas em situação de pobreza aumentou no nosso país, aumentou também a taxa de risco de pobreza, passaram a viver numa situação de maior vulnerabilidade um maior número a pessoas, tivemos um aumento desta taxa de 12%, o que mostra que de facto a crise pandémica teve um grande impacto no aumento da pobreza, agudizou os problemas que já existiam, tornou outros muito mais visíveis e criou os problemas.
Com esta inflação é de prever que os dados de pobreza em 2022 disparem?
Sim, garantidamente que sim. Só os dados de 2021 mostravam que desde 2017 que não havia no nosso país um número tão elevado de pessoas em risco de pobreza. Isto só tendo em conta os dados 2021, com o impacto da crise pandémica, agora com os dados da inflação provavelmente em 2022 vamos ter um agravamento da situação. Em 2021 a desigualdade aumento, tivemos um aumento do Coeficiente de Gini que mede as desigualdades no país de 5,8% e um aumento do indicador do S80 S20 de 13%. Temos um país onde as desigualdades se acentuaram e, por isso, é que o nosso país é o oitavo com maiores desigualdades da União Europeia.
Que principais dificuldades é que as famílias daqui atravessam? Que factores identificam como sendo preocupantes?
Constatamos que a crise pandémica e a guerra têm tido grandes consequências na vida das pessoas, a vários níveis, na dificuldade de acesso aos cuidados de saúde, na perda de rendimentos, na habitação, que continua a ser um desafio tanto a nível nacional, como distrital, não só pela falta de habitação disponível, mas também pela inflação dos preços e da capacidade de arrendamento sobretudo das pessoas com menos rendimentos. Temos uma taxa de 14,3% de agregados pobres que vivem numa situação de sobrelotação. Em Bragança essa realidade existe, sobretudo em pessoas de etnia cigana e migrantes, onde a dificuldade de arrendamento é grande, pelos motivos que já identifiquei, mas também por alguma rotulagem por parte dos proprietários a determinados grupos. O desemprego é também um problema tanto a nível nacional, como distrital. A taxa de desemprego a nível nacional tem vindo a aumentar ligeiramente, embora no distrito de Bragança os dados de Novembro, comparados com o mesmo período homólogo do ano passado, constata-se que tem vindo haver uma diminuição do número de pessoas inscritas no centro de emprego, em praticamente todos os concelhos, no entanto, sabemos que na nossa região prolifera a precariedade no emprego. Empregos insuficientemente remunerados para fazer face ao custo de vida e à inflação que estamos a ultrapassar e se este problema é transversal a toda a população, em pessoas de maior vulnerabilidade, com menores rendimentos, expõe-os ainda mais a uma situação de maior instabilidade.
O ano de 2022 veio também colocar as famílias da classe média na classe pobre?
Sim. Esta situação destes últimos anos agudizou a situação das pessoas que já viviam na pobreza, mas também trouxe outros problemas a outras famílias. Com o custo médio de vida, com a perda do poder de compra das famílias, porque nem os vencimentos, nem o valor das prestações sociais, que são também um factor muito importante na minimização dos efeitos da pobreza, porque se não fossem as prestações sociais quase metade da população do nosso país, 43,5% viveria em risco de pobreza, óbvio que as famílias se vêem com dificuldades ao nível do pagamento da renda, têm dificuldades em manter as casas quentes, na nossa região é significativo o índice de pobreza energética. Também sabemos que muitas famílias viram os seus rendimentos reduzidos no contexto pandémico e ainda não recuperaram. Segundo o trabalho que fizemos de investigação, a dificuldade em fazer uma alimentação equilibrada e o não passar fome foi um dos problemas identificados. Alimentações de carne e de peixe eram quase tiradas das ementas, porque era impossível comprar ao preço que está. Ao pequeno-almoço dizem mesmo que se limitam a comer o pão, porque deixaram de ter capacidade para comprar manteiga, queijo ou fiambre. Pessoas que têm problemas de saúde e precisam de fazer uma dieta mais equilibrada é quase impensável fazerem-no, porque dizem que fica demasiado dispendioso. A alimentação foi uma das áreas em que as famílias mais tiveram de cortar, tal como o aquecimento das casas e os tratamentos de saúde.
Tendo em conta que em 2023 vai continuar a haver um aumento dos preços dos produtos, como é que se perspectiva que seja este novo ano?
O que os dados do observatório da EAPN nos dizem é que se perspectiva que a situação de pobreza e exclusão social vai ter tendência a intensificar-se, porque em 2022 já 11,3% da população vivenciava grandes dificuldades em gerir o seu orçamento familiar até ao fim do mês, ou seja, os recursos financeiros do agregado familiar não cobriam as despesas habituais, 9,6% chegava ao fim do mês com dificuldades e 35% com alguma dificuldade. Apenas menos de metade da população, cerca de 42%, é que afirmava não ter dificuldades em gerir o orçamento, ou seja, mais de metade da população já teve dificuldades em 2022. Mantendo-se este panorama, pressupõe-se que a situação se vai intensificar. Outro indicador que nos diz que a situação não vai melhorar, é que 31,1% não tinha capacidade de assegurar o pagamento imediato de uma despesa que surgisse inesperadamente, mostra que as famílias não têm dinheiro de lado para fazer face a uma despesa que não estão à espera. Mantendo-se este custo de vida, mantendo-se os vencimentos, mantendo-se o valor das prestações, a tendência é para as pessoas gastarem todo o dinheiro que conseguem no dia-a-dia, não conseguem ter uma poupança, isto leva-nos a prever o que será 2023. 2,5% da população portuguesa já tinha em 2022 atrasos no pagamento da habitação, 6,9% tinha atrasos motivados por dificuldades económicas em algum dos pagamentos regulares relativos a rendas, prestações de créditos ou despesas relacionadas com a habitação. 2,4% não tinha em 2022 capacidade financeira para ter uma refeição de carne ou peixe, pelo menos de dois em dois dias, e na população em risco de pobreza esta proporção era de 5,9%.
Os salários não estão a acompanhar a subida de preços e depois as famílias não conseguem responder aos gastos que têm...
Exactamente, embora o salário mínimo tenha vindo a sofrer aumentos, o valor não acompanha a inflação e o aumento do custo de vida. Na maior parte das famílias, grande parte do vencimento que auferem é para pagar a renda de casa, tendo em conta a subida exorbitante que o preço da habitação teve nos últimos tempos. As pessoas têm de optar por pagar a renda, ou por comer, ou por pagar água, luz, gás ou por pagar a medicação. Não é por acaso que Portugal é um dos países com maior número de pessoas em situação de pobreza, mesmo a trabalhar. Nós temos 14,3% de trabalhadores que vivem numa situação de pobreza, porque com os vencimentos que auferem e com o custo de vida que temos, acabam por trabalhar para pagar as despesas. Há famílias que têm de arranjar part-times, dispensam pouco tempo para a vida familiar e social. As famílias trabalham para pagar as despesas e para se verem cada vez mais pobres e não conseguem por nada de lado.
Que medidas urgentes devem ser tomadas?
Já têm vindo a ser tomadas medidas, como a tarifa de eletricidade e gás para as pessoas mais vulneráveis, o valor de 10 euros à aquisição de garrafas de gás, para evitar a pobreza energética, o apoio que foi criado em Março, no valor de 60 euros. Quando auscultamos as pessoas em situação de pobreza percebemos que as medidas têm sido importantes, mas não conseguem ter o impacto que seria desejável. Por exemplo, a tarifa social da electricidade e do gás, para isso acontecer o contador ou a casa tem de estar em nome das pessoas, isso afasta logo um conjunto de famílias, nomeadamente as que têm casa arrendada ou estão em habitação social. O apoio dos 10 euros às botijas de gás, a Deco aponta como principal razão de pouca adesão a fraca divulgação do programa, as dificuldades burocráticas a esse apoio. Ou seja, as medidas são pensadas, mas os critérios de elegibilidade ou os requisitos para usufruto das mesmas, acaba por barrar o acesso a famílias com dificuldades.