26.1.23

“As famílias não têm para onde se virar, cortam na comida e comem pior”: 1100 refeições são distribuídas todas as noites em Lisboa

Marta Gonçalves, in Expresso

Não são apenas pessoas em situação de sem-abrigo que procuram. Cada vez mais surgem pessoas com casa, mas que vivem no limiar da pobreza e têm de escolher “onde vão aplicar o dinheiro”: na renda ou em comida. Organizações alertam para o crescimento dos pedidos de ajuda

Cerca de 1100 refeições são distribuídas todas as noites pela cidade de Lisboa a pessoas carenciadas. O balanço é feito ao Expresso por organizações não governamentais como a Comunidade Vida e Paz, a CASA - Centro de Apoio ao Sem Abrigo e a Noor’Fatima Voluntariado – Projetonur Associação que, diariamente, com dezenas de voluntários, levam uma ceia quente a quem está nas ruas.

“A nossa previsão, até por aquilo que temos vindo a verificar ao longo das últimas semanas e meses, é que este número venha a aumentar”, refere ao Expresso Renata Alves, diretora-Geral da Comunidade Vida e Paz. Uma opinião também partilhada pela gestão das restantes organizações. “Têm aparecido mais pessoas nas ruas a pedir ajuda, e pessoas com casa ou algum local de dormida. Mais estrangeiros nas ruas a pedir apoio”, diz ainda Nuno Jardim do CASA. “Os números têm aumentado sobretudo devido a muitos imigrantes e pessoas com reformas e vencimentos baixos e com estas refeições [que distribuímos] já ajudam nas despesas. A situação é muito triste, todos deviam ter direito a uma refeição sentados à mesa”, acrescenta Nurjaha Tarmahomed, fundadora e presidente da Noor’Fatima.

Uma pessoa regressa a casa após ter recebido uma refeição

No caso da Vida e Paz, as carrinhas saem todas as noites em direção as ruas de Lisboa e na bagageira carregam entre 450 e 500 ceias, que estimam servir para alimentar “400 pessoas de diferentes nacionalidades”. Já a CASA entrega diariamente 400 refeições, enquanto a Noor’Fatima consegue chegar entre 150 e 200 pessoas, entregando água, sopa, comida quente, pão, fruta. Por vezes, há ainda “um bolo ou uma sandes como apoio para o dia seguinte”, refere Nurjaha Tarmahomed. “É um saco por pessoa, em alguns casos são dois porque há outra pessoa na casa onde vivem.”

Há várias semanas que quem procura este tipo de ajudas deixou de ser exclusivamente pessoas em situação de sem-abrigo. Cada vez mais, os voluntários notam haver famílias e pessoas com casa e a pagar rendas que precisam ajuda alimentar. “São pessoas em situação de grande vulnerabilidade social que, tendo casa, com o agravar da situação económica e com a inflação têm que optar onde vão aplicar o seu dinheiro. As refeições são muitas das vezes deixadas para trás, então recorrem às nossas equipas em busca de uma ceia”, explica Renata Alves.

Por outro lado, alerta também a Vida e Paz, as doações “não têm acompanhado” o aumento dos pedidos de ajuda. Esta é uma tendência transversal quer em donativos monetários ou espécie, quer vindo de particulares ou empresas. “Isto dificulta a nossa intervenção. Apelamos à ajuda de todos para podermos continuar a responder às necessidades das pessoas que nos procuram e confiam em nós.”

400 MIL PESSOAS APOIADAS PELO BANCO ALIMENTAR

Com dois balanços anuais, em maio e novembro, os números mais recentes do Banco Alimentar contra a fome dão conta de 400 mil pessoas apoiadas pela instituição através de 2600 organizações espalhadas por todo o país. “São dados referentes a novembro de 2022, quando as coisas ainda não estavam tão caras. Todos os dias temos mais pedidos de ajuda”, diz ao Expresso Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar. “A situação é muito difícil, sobretudo para famílias, que não têm para onde se virar e têm de cortar na comida e comem cada vez pior”, continua.

Jonet acredita ainda que o aumento da procura também aconteceu por antecipação e pela expetativa de que a inflação não fosse abrandar. “As famílias começaram a sentir na pele o acréscimo dos preços em produtos alimentares básicos, tal como as famílias que compraram casa sentem o acréscimo das taxas de juros dos empréstimos habitação. Os preços dos alimentos básicos aumentaram todos e vão continuar,”

O cabaz básico de alimentos custa €225. Nesta lista com 63 bens alimentares essenciais estão incluídos produtos como leite, queijo, manteiga e fiambre, arroz, farinha, massa e açúcar, além de carne, peixe, frutas e legumes. O valor em que agora o cabaz está fixado, refere a DECO/Proteste, representa um novo recorde desde o início do ano passado.

A pescada fresca, carapau, perca e peixe-espada estão no topo dos produtos que mais subiram no último balanço disponibilizado pela DECO/Proteste (entre 4 e 11 de janeiro). A mesma lista de compras custa mais 37 euros do que há um ano.