2.1.23

Homossexualidade, prostituição e adultério deixaram de ser crime há 40 anos

 Ana Cristina Pereira, in Público online

Primeiro Código Penal da democracia foi tiro de partida para extirpar moral e normalizar actos sexuais praticados entre adultos, de livre vontade. O PÚBLICO preparou uma série especial.

Levou o seu tempo livrar a lei de valorações morais, como exigia o espírito do 25 de Abril de 1974. O novo Código Penal só entrou em vigor no primeiro dia de 1983, descriminalizando actos sexuais praticados entre adultos, em privado, de livre vontade, como a homossexualidade, a prostituição, o adultério ou o incesto.

O “Deus, pátria, família” não era apenas o slogan de um ideário político conservador, de expressão católica. A família, as autarquias e as corporações constituíam pilares do Estado definidos pela Constituição de 1933, que legitimou o regime político encabeçado por António de Oliveira Salazar.

Quando a ditadura caiu, não havia em Portugal movimento feminista, muito menos LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e outros). “O contexto internacional teve grande influência”, analisa a socióloga Sofia Aboim. “Houve uma agenda nacional, um feminismo de Estado, que proclamou a igualdade entre mulheres e homens e acabou por abranger outros segmentos.”

“Se é função do direito penal proteger os bens jurídicos fundamentais da comunidade e só eles, decorre daí o mandamento de banir do seu âmbito todas e quaisquer ‘excrescências moralistas’”, explicava o penalista Figueiredo Dias, num artigo publicado na Revista da Ordem dos Advogados em 1977. A conduta sexual parecia-lhe o “domínio de excelência”. Outro seria o da vadiagem, que colocava no mesmo plano o falso mendigo, o homossexual, a prostituta, o proxeneta, o reincidente.

O último governo provisório (1975/1976) criou uma comissão para estudar a reforma penal. O primeiro governo constitucional manteve o ímpeto, mas o Parlamento não chegou a avaliar a proposta. O IV governo remeteu-a, contudo, não houve consenso. Nova comissão foi nomeada pelo VIII. O Código Penal acabou por se basear no projecto elaborado pelo jurista, académico e político Eduardo Correia, em 1963 e 1966.

“Foi uma alteração de paradigma”, avalia o juiz José Mouraz Lopes. “Todas as condutas sexuais praticadas entre adultos, em privado e de livre vontade deixaram de ter relevância criminal, mesmo que não fossem bem vistas pela sociedade em geral.”

O PÚBLICO preparou uma série especial sobre uma das maiores transformações sociais que se seguiram: a protagonizada pelas pessoas com diversidade sexual e de género. Elaborou uma cronologia com imagens de época, recuperou testemunhos dos pioneiros da luta LGBT+, prestou atenção particular ao percurso das pessoas “trans”, debruçou-se sobre os desafios enfrentados pelos mais idosos e as lutas dos mais jovens hoje. O trabalho multimédia estará acessível a partir de dia 6 de Janeiro.
Homossexuais perseguidos pelas polícias

A antropóloga Raquel Afonso — que está a fazer doutoramento sobre homossexualidade nas ditaduras ibéricas — conta que antes “a polícia tinha um papel bastante activo na vigilância de locais públicos frequentados por homossexuais”, como urinóis, parques, jardins. “Havia agentes à paisana e a maior parte das detenções eram feitas em flagrante delito. A maioria dos detidos eram jovens, entre os 20 e os 30 anos, de classes baixas.”

Os actos homossexuais recebiam então a designação de “vícios contra a natureza”. Considerava-se que agrediam “o princípio básico da moral sexual" e “o primado da sexualidade genital e da reprodução”. Os prevaricadores incorriam em medidas que iam até três anos de internamento em manicómio criminal ou em casa de trabalho ou agrícola. Também podiam ficar sujeitos a liberdade vigiada e a interdição do exercício de profissão.

Ao analisar o que resta desses processos nos arquivos da Polícia Judiciária de Lisboa, Raquel Afonso nota que os visados eram quase todos homens, “iam maioritariamente para prisões comuns” e lá ficavam de “um a sete meses”. Não por acaso. “Existe uma diferença na forma de oprimir homens e mulheres. As mulheres eram mais vigiadas pela família e por outras instituições que não o Estado. Os homens tinham o domínio do espaço público.”

Antes de a homossexualidade ser descriminalizada, as autoridades já estavam a mudar a atitude. “No final da ditadura, já havia menos detenções”, diz Raquel Afonso. Com a democracia, praticamente deixaram de acontecer. É o que indicam os testemunhos que recolheu e os arquivos que analisou.

A revolução, lembra o investigador Nelson Ramalho, trouxe logo uma certa abertura: surgiu a primeira sex shop em Lisboa, nasceu a primeira revista pornográfica portuguesa, a Gina (1974-2005), exibiram-se os primeiros filmes eróticos e pornográficos nas salas de cinema, abriram-se os primeiros espaços nocturnos dedicados à prática do travestismo.

“Havia um grande interesse pelos espectáculos de travestismo, na linha dos freak shows muito populares no final do século XIX e início do século XX na Europa e nos Estados Unidos”, diz Ramalho. “As pessoas ficavam deslumbradas com aquela ambiguidade, procuravam descobrir o género dos artistas.”

O movimento LGBT+ despontara nos Estados Unidos e propagava-se, pouco a pouco. Vários países europeus tinham descriminalizado a homossexualidade. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos declarara, em 1981, a criminalização dos actos entre pessoas do mesmo sexo como uma interferência na vida privada. Entre a descriminalização e qualquer outra alteração legal para pôr fim à discriminação decorreriam muitos anos.

Olhando para trás, aquele investigador identifica um factor que funcionou como travão: a epidemia de VIH/sida. A morte do cantor António Variações (1944-1984) trouxe o assunto para o plano nacional. Televisão, rádios, jornais falavam em “pneumonia gay”, “cancro gay”, “peste gay”. “Houve um sentimento de medo. Muita gente que frequentava estas casas afastou-se.” Foi na luta contra a sida que nasceu o movimento LGBT+ em Portugal, já nos anos 1990.
Muitas mulheres presas por prostituição

Não era uma mudança óbvia para todos. Lembra a investigadora Alexandra Oliveira que em Março de 1977 foi criada uma comissão para estudar novas possibilidades legislativas. Houve uma proposta para, cite-se, “punir com maior severidade o aviltante parasitismo que se traduz na actividade de proxenetas e rufiões, bem como prever comportamentos que a lei vigente omitiu, na perspectiva estreita de fazer coincidir na mulher o exclusivo da virtualidade e se prostituir e esquecendo ainda a punição de práticas homossexuais, de igual modo passíveis de censura”. Até dispensava “de intenção lucrativa as práticas homossexuais”. O diploma foi rejeitado, em Junho de 1977, com os votos contra do PSD e do PCP e favoráveis do PS e do CDS.

Portugal já tivera o modelo regulamentarista. Em 1949, tinham sido proibidas a atribuição de novas matrículas a prostitutas e a abertura de novas casas. No dia 1 de Janeiro de 1963, entrara em vigor o modelo proibicionista. As polícias começaram a reprimir quem se prostituía nas ruas. Quem trabalhava nas casas frequentadas pela classe alta ficava imune. Ao perigo de agressão e assalto juntava-se o de prisão. “A situação social era insustentável”, sublinha Alexandra Oliveira. “Havia muitas mulheres presas pelo crime de prostituição.”

O novo Código Penal não resolveu tudo. Como escreveram Isabel do Carmo e Fernanda Fráguas no livro Puta de Prisão, até 2001, em vários distritos, multiplicaram-se regulamentos policiais a imputar crimes de desobediência “a quem praticasse ‘gestos ou palavras’​ entendidos como convite sexual, a quem estacionasse ou circulasse em determinados locais públicos de forma prolongada; de caminho, englobava-se na mesma disposição ‘qualquer ajuntamento ou aglomeração que pudesse prejudicar o trânsito ou alterar a ordem pública’”.

Na lei criminal, ficou o lenocínio: quem “profissionalmente ou com intenção lucrativa fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição” incorre numa pena até cinco anos. “Ninguém é preso por se prostituir, se o fizer de forma individual, mas o crime de lenocínio continua a criminalizar pessoas que fazem prostituição”, torna Alexandra Oliveira. “Se três ou quatro se juntam para fazer trabalho sexual, a pessoa que assina o contrato de arrendamento pode ser acusada.”


De quando em vez, o tema regressa ao Parlamento, mas nunca mais houve alterações legais nesta área. “Existem forças conservadoras que têm bastante poder e acabam por conseguir impor uma visão enviesada, que equipara qualquer forma de prostituição a uma forma de vitimização sobre mulheres”, julga aquela académica, que há duas décadas estuda o fenómeno. Não é um debate impulsionado pela Igreja evangélica, como acontece noutros países. É alimentado por feministas com visões opostas. De um lado, as que defendem que a venda de serviços sexuais entre adultos, de livre vontade, é um trabalho. Do outro, as que consideram que é uma forma de violência.

“É um tema fracturante”, resume Mouraz Lopes. Nem no Tribunal Constitucional há consenso. Durante 16 anos, foi respondendo afirmativamente àqueles que o questionavam se, dentro do respeito pela lei fundamental, se pode criminalizar o lenocínio simples. Em 2020, decidiu que não. Em 2021, recuou.
Adultério penalizava mais as mulheres

O que ficou arrumado na esfera privada foi o adultério. Não de um momento para outro. Como explica Sofia Aboim, “foi preciso mudar muita coisa: tornar mais explicita a igualdade de género, flexibilizar os costumes, ser legítimo coabitar antes de casar e ter filhos fora do casamento. Consolida-se tudo nos anos dois mil, mas os anos 1980 foram importantes. As pessoas começaram a abrir-se através da música, das telenovelas, dos filmes. Houve uma influência muito grande da União Europeia. Hoje, o duplo padrão está atenuado, mas permanece.”

Naquele tempo, a distinção era total. O adultério da mulher era punido com pena de dois a oito anos de prisão. Já o do homem, só era sancionado se levasse a amante para a casa conjugal e na multa de três meses a três anos. Se um homem encontrasse a esposa com outro e matasse um deles ou ambos, era desterrado da comarca por seis meses. Tratando-se de ofensas corporais menores, nem sofria qualquer sanção. Se uma mulher cometesse o mesmo crime, só tinha semelhante destino se o acto ocorresse na casa da família. De outro modo, prisão.

A investigadora Isabel Ventura repara na falta de memória colectiva ao ler reacções a notícias sobre a situação das mulheres em países islâmicos. Afinal, há tão pouco tempo, em Portugal, o valor de uma mulher assentava na sua capacidade de se manter virgem até ao casamento e de ser fiel ao marido. Se fosse vítima de atentado ao pudor, estupro ou violação e o ofensor quisesse casar com ela, o procedimento penal cessava.

Um homem que, “por meio de sedução, estuprasse mulher virgem, maior de 12 e menor de 18 anos”, sujeitava-se a dois a oito anos de prisão. O mesmo acontecia a um que tivesse "cópula ilícita com uma mulher adulta, por meio de violência, intimidação ou fraude", cometendo nesse caso o crime de violação. Nesse domínio, Isabel Ventura não vê grandes mudanças no primeiro Código Penal da era democrática. Apenas o desaparecimento do conceito de cúpula ilícita, o que quer dizer que se começou a admitir a possibilidade de violação dentro do casamento.

Era como se as mulheres não pudessem cometer crimes sexuais e os homens não pudessem ser vítimas. O novo código salvaguardou os meninos, mas criando algo específico, “o crime de homossexualidade com menores”: “Quem, sendo maior, desencaminhar menor de 16 anos do mesmo sexo para a prática de acto contrário ao pudor, consigo ou com outrem do mesmo sexo, será punido com prisão até 3 anos.”

Torna-se claro que, como diz Mouraz Lopes, o Código Penal não ficou logo totalmente livre de valorações morais. Só em 1995 deixou de prever o atentado ao pudor e o ultraje público ao pudor, introduzindo o crime de importunação sexual. Só em 1998 deixou de diferenciar cópula de outras formas de penetração. Só em 2007 deixou de diferenciar a idade de consentimento consoante os actos são homossexuais (16 anos) ou heterossexuais (14 anos). Aqui chegados, ocupa-se apenas dos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual.

O derradeiro tabu, conclui Sofia Aboim, é o incesto, conduta que também foi descriminalizada no primeiro dia de 1983. Só aparece associado aos crimes sexuais. Quando praticado entre adultos, de livre vontade, é o silêncio.