8.3.23

CES defende fundo na Segurança Social para apoiar vítimas de violência doméstica

Sónia Trigueirão, in Público

Conselho Económico e Social diz que lei de 2009 prevê apoio, mas que nunca foram disponibilizadas verbas. E lamenta resposta da Justiça, que critica ainda por não reconhecer as crianças como vítimas.

O Conselho Económico e Social (CES) defende a criação de um fundo na Segurança Social para apoiar a autonomização das vítimas de violência doméstica. Num parecer aprovado pelo plenário daquele conselho, na última sexta-feira, sugere também o alargamento da gratuitidade das custas aos processos de divórcio, partilha de bens e de regulação das responsabilidades parentais.

Esta entidade faz duras críticas aos tribunais por considerar que, ao não darem uma resposta atempada e adequada, colocam em causa a segurança das vítimas de violência doméstica, sobretudo as crianças que continuam a não ser reconhecidas como vítimas daquele crime, ou seja, como “um ser de direitos”.

Este parecer foi pedido pelo grupo parlamentar do Partido Socialista, em Julho de 2022, que destacou então o combate ao flagelo da violência doméstica como uma prioridade da sessão legislativa.

Segundo dados da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, em 2022, quatro crianças e 24 mulheres morreram, vítimas de violência doméstica. No ano anterior, tinham-se registado 23 mortes, sendo 16 mulheres, duas crianças e cinco homens.

Cadeias com 1236 reclusos

Entre Outubro e Dezembro do ano passado foi também o período em que existiam mais reclusos nas cadeias no âmbito de processos relacionados com crimes de violência doméstica. No total, 1236 reclusos, dos quais 955 estavam a cumprir pena de prisão efectiva. Os restantes estavam em prisão preventiva. Quanto ao número de ocorrências, a PSP e a GNR receberam, no último trimestre de 2022, mais de 7100 queixas, o que representa uma subida de 6% em comparação com o mesmo período de 2021.

Para o CES, as fontes de financiamento actualmente usadas para ajudar as vítimas de violência doméstica “suscitam preocupações de diversa natureza junto das organizações e especialistas consultados para elaboração do parecer”. Apesar de a lei 112/2009 contemplar o direito das vítimas de violência doméstica a “apoio financeiro” e a “apoio a arrendamento”, na prática, diz o conselho, não há verbas disponibilizadas para esse efeito, “seja na Segurança Social ou em qualquer outra entidade pública”.

Aliás, as estruturas de apoio e as respostas de acolhimento de emergência são financiadas por “fundos europeus”, cujo acesso é demorado, por período limitado e cheio de burocracias, e por “fontes nacionais inerentemente instáveis, como as receitas dos jogos sociais”, critica o conselho. É nesse âmbito que a entidade sugere um fundo para “afectação de financiamento estável, com horizonte assegurado no médio e longo prazos”.

Esse fundo serviria também, defende, para “assegurar as necessidades e os direitos básicos de segurança, apoio psicológico, abrigo, educação com carácter continuado para todas as crianças órfãs de mãe devido ao assassinato cometido por parceiro/a ou ex-parceiro/a – até à sua maioridade”.

“Vítimas vulneráveis”

Sem recurso a apoio financeiros, “as mulheres que não dispõem de recursos para se sustentarem a si e aos seus filhos e suas filhas, ou a outras pessoas dependentes, são especialmente vulneráveis à saída de situações de violência, enfrentando dificuldades acrescidas”, insiste.

O CES deixa ainda sugestões do ponto de vista da protecção jurídica às vítimas. Lembra que a sua gratuitidade está apenas prevista para processos judiciais de violência doméstica e que devia, sugere, ser “alargada a outros com eles directamente relacionados e deles derivados, nomeadamente de divórcio, partilha de bens ou regulação das responsabilidades parentais”.

Para o CES, “Portugal adoptou, nos últimos anos, um substantivo conjunto de alterações legislativas e reformas, pensadas de forma participada e planeadas de modo integrado”, mas, apesar destes progressos, “o combate à violência doméstica continua a manifestar fragilidades, em muitos casos por deficiente aplicação das normas em vigor, por lacunas na legislação, escassez de meios, impreparação dos diversos agentes ou incapacidade de articulação entre as diversas entidades que intervêm no processo”.

“Falta de resposta atempada” nos tribunais

“O sistema judicial não trata o crime de violência doméstica como crime violento que efectivamente é. Assiste-se frequentemente à falta de resposta atempada e adequada por parte dos tribunais, pondo em causa a segurança das vítimas”, conclui o CES, que exemplifica com o caso das crianças.

Recorda o relatório que, no que diz respeito às crianças, “apesar da entrada em vigor da Lei n.º 57/2021 de 16 de Agosto, dez anos depois da aprovação da Convenção de Istambul a que Portugal se vinculou, reconhecendo que as crianças expostas a contextos de violência familiar são também elas próprias vítimas de violência doméstica, a sociedade em geral e os tribunais, em particular, continuam a não as reconhecer como vítimas, mas sim como menores que estão no centro de um conflito entre progenitores.

“Um aspecto crítico, que condiciona muito a actuação nesta área, decorre da lei da promoção e protecção, a qual estabelece que, para haver contacto com a criança, ele tem de ser autorizado por ambos os progenitores. As estruturas de apoio da Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica (RNAVVD), e mesmo as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ), referem esta condição como muito problemática, uma vez que os agressores muitas vezes não autorizam porque sabem que vai haver uma denúncia”, sustenta o CES, que sublinha ainda o facto de ser ainda “comum que as crianças vítimas de violência doméstica sejam obrigadas ao cumprimento de regimes de convívios com os progenitores agressores, sem que haja elementos bastantes nos processos em causa quanto à perigosidade oferecida por estes”.

Impedir contacto do suspeito com filhos

Para o CES, é urgente criar uma norma que impeça que o suspeito esteja com os filhos até que haja uma avaliação da situação de risco que o permita.

Na raiz do problema das mortes ocorridas em casos de violência doméstica, aquela entidade lamenta a “proporção significativa de casos com antecedentes registados no sistema de justiça”. Isto, diz o conselho, “evidencia que continuam a ocorrer lacunas na capacidade de triagem”.

No primeiro semestre de 2022, as polícias registaram 14.363 ocorrências. Dessas, em 6177 situações estiveram no local dos factos, tendo efectuado 409 detenções em flagrante delito, ou seja, apenas em 6,6% das situações os suspeitos foram detidos em flagrante delito.

Estes dados sugerem, sustenta o CES, que, “no início do procedimento, ocorre uma inexpressiva intervenção na implementação urgente de medidas de contenção das pessoas agressoras”. Perante esta realidade, alega que devia existir uma “imposição de medidas de contenção à pessoa agressora e, simultaneamente, de protecção às vítimas”.

Medidas nas primeiras 72 horas

“Sendo a violência doméstica um acontecimento social que dá origem a um processo-crime, a possibilidade de fazer a diferença está na capacidade de aplicar medidas de contenção rápida às pessoas agressoras, ou seja, no prazo legal de 72 horas”, lê-se no relatório, que acrescenta que "para isso é necessário compreender o fenómeno e não recear assumir que a vitimização é susceptível de, também ela, ser presumida, sem colocar em causa a fundamental e intocável presunção de inocência”.

Outra questão que o CES entende como inaceitável é que “seja a vítima, agredida, com sinais evidentes de ter sido vítima de maus tratos físicos, acompanhada de crianças, com os seus bens essenciais e com algumas roupas dos filhos, a sair de casa”.

O conselho recomenda ainda que em termos de prevenção seja feita mais sensibilização junto da comunidade, em geral, e educação para os direitos humanos e a gestão das emoções desde a infância, em especial, mais acesso ao apoio psicológico quer para as vítimas, quer para os profissionais que trabalham com estes casos.

E em termos legislativos, o CES recomenda incluir no Código Penal o uso ou ameaça com arma como factor agravante do crime, criminalizar a violência cometida online (ciberviolência) e aumentar a idade mínima legal para o casamento para 18 anos para mulheres e homens sem quaisquer excepções, alterando assim o artigo 1612.º do Código Civil, que ainda permite o casamento a partir dos 16 anos com autorização da mãe e do pai.