8.3.23

Despejos voltam a aumentar depois do travão imposto na pandemia

Rafaela Burd Relvas,  in Público

O número de despejos em 2022 ficou muito próximo do que se verificava em 2019, antes da pandemia e do travão à cessação de contratos. Em Lisboa, os números já superam os do período pré-pandemia.

Depois de um período de acalmia artificial imposta pela pandemia, em que foi determinada a proibição da cessação de contratos de arrendamento, e tal como já vinha sendo esperado pelas associações e grupos de activistas que representam os inquilinos, os despejos estão, novamente, a aumentar. No ano passado, o número de despejos finalizados ficou muito próximo daquilo que se verificava em 2019 e, em algumas cidades, com Lisboa à cabeça, chegou mesmo a ultrapassar os níveis pré-pandemia.

O fenómeno não é recente mas, nos últimos meses, tem vindo a agravar-se, como tem sido evidente, aliás, pelo surgimento de novos movimentos cívicos pelo direito à habitação. Entre outros, são exemplo disso a petição Pela Protecção do Direito à Habitação, que propõe medidas como a adopção de limites máximos aos valores de renda e que está a menos de mil assinaturas de reunir as 7500 necessárias para que seja apreciada pela Assembleia da República, ou Movimento Referendo pela Habitação, que está a recolher assinaturas para levar um referendo a votação na Assembleia Municipal de Lisboa, com o objectivo de cancelar as licenças de alojamentos locais quando os imóveis em causa são destinados a habitação.

Mesmo de uma perspectiva microssocial, o agravamento deste cenário tem sido notório. Durante as últimas semanas, chegaram ao PÚBLICO dezenas de testemunhos que ajudam a formar o retrato desta crise habitacional, incluindo de pessoas que passaram recentemente por processos de despejo ou que estão a viver sob essa ameaça. É esse o caso de Laura (nome fictício), que vive numa das mais de 150 mil casas que, hoje, ainda são arrendadas com contratos anteriores a 1990. São as chamadas “rendas antigas”, um problema a que o Governo acaba de responder com a decisão de manter estes contratos, definitivamente, de fora do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), optando por conceder uma compensação financeira aos senhorios para, ao mesmo tempo, poder manter estas rendas congeladas, de forma a proteger os inquilinos.

Mas, até que esta medida entre em vigor, o risco de despejo já começou a pairar sobre a família de Laura, que paga uma renda de 115 euros por um T4 em Lisboa. “Bem sei que parece absurdo, mas é um contrato de 1970”, reconhece a recepcionista de 26 anos, embora ressalve que todo o investimento de manutenção desta casa foi feito pela sua família. “A casa está cheia de humidade, todas as divisões têm as paredes às manchas e cheias de fendas. Temos vários pontos de infiltração, como é o caso da despensa ou do quarto da minha mãe. Temos sido sempre nós a arranjar o que é necessário. Há uns anos, pediram para ver a casa e disseram-nos que o problema da humidade é devido à condensação e por não abrirmos as janelas, o que fazemos todos os dias”, defende-se.

Mas, até que esta medida entre em vigor, o risco de despejo já começou a pairar sobre a família de Laura, que paga uma renda de 115 euros por um T4 em Lisboa. “Bem sei que parece absurdo, mas é um contrato de 1970”, reconhece a recepcionista de 26 anos, embora ressalve que todo o investimento de manutenção desta casa foi feito pela sua família. “A casa está cheia de humidade, todas as divisões têm as paredes às manchas e cheias de fendas. Temos vários pontos de infiltração, como é o caso da despensa ou do quarto da minha mãe. Temos sido sempre nós a arranjar o que é necessário. Há uns anos, pediram para ver a casa e disseram-nos que o problema da humidade é devido à condensação e por não abrirmos as janelas, o que fazemos todos os dias”, defende-se.

Foi nessa altura que recorreram a um advogado, que esclareceu os termos da transição para o NRAU previstos na lei (normas que, em breve, serão alteradas, já que o Governo decidiu que estes contratos nunca transitarão para o NRAU) e explicou que a renda não poderia ser aumentada, de imediato, para 1000 euros, como os senhorios pretendiam. Com o advogado já envolvido, o assédio parou e a renda acabou por ser actualizada dentro da lei.

Lisboa lidera despejos

Laura vai escapando, assim, a um grupo que, depois do travão imposto durante a pandemia, volta agora a aumentar a um ritmo acelerado: o dos inquilinos despejados. Em 2022, de acordo com os dados fornecidos ao PÚBLICO pelo Ministério da Justiça, deram entrada, no Balcão Nacional de Arrendamento (BNA), 2329 pedidos de procedimento especial de despejo. É um aumento de 24% em relação ao ano anterior, ficando, ainda assim, abaixo dos 3229 pedidos que tinham dado entrada em 2019, antes da pandemia.

O distrito de Lisboa concentra a maioria destes pedidos de despejo, com um total de 918 procedimentos iniciados em 2022, um aumento superior a 27% em relação ao ano anterior, mas um número que continua abaixo de 2019, quando foram iniciados 1249 procedimentos de despejo neste distrito. Seguem-se os distritos de Setúbal, com 357 procedimentos entrados no BNA em 2022 (um aumento de 42% face a 2021, ainda abaixo dos 404 pedidos que tinham dado entrada em 2019), e do Porto, com 350 procedimentos iniciados no ano passado, em comparação com os 333 processos que deram entrada no BNA em 2021 e os 579 de 2019.

Mas se o número de procedimentos iniciados em 2022 está ainda muito aquém daquilo que se verificava antes da pandemia, o mesmo não acontece com os despejos que, efectivamente, se concretizam. No ano passado, foram emitidos 1170 títulos de desocupação (um número que incluirá, também, procedimentos iniciados em anos anteriores e que não haviam ficado concluídos), um aumento de 33,5% em relação a 2021 e um valor que fica muito próximo dos 1244 títulos de desocupação emitidos em 2019.

E, em 11 dos distritos em Portugal, o número de títulos de desocupação emitidos já iguala ou supera aquele que tinha sido verificado em 2019. Lisboa, que concentra a maioria dos processos, está na linha da frente deste fenómeno: no ano passado, foram emitidos 501 títulos de desocupação neste distrito, um número quase 13% acima dos 444 títulos de desocupação emitidos em 2019. Também no distrito de Setúbal se verifica esta tendência: aqui, foram emitidos 195 títulos de desocupação em 2022, acima dos 183 que se contabilizavam em 2019.

Já no Porto, o segundo maior distrito português em termos de população, o número de despejos mantém-se aquém dos níveis pré-pandemia e está, até, a diminuir. Em 2022, foram emitidos 148 títulos de desocupação neste distrito, abaixo dos 163 emitidos em 2021 e dos 234 que se contabilizaram em 2019.

Mesmo em distritos mais pequenos, onde a pressão habitacional não se faz sentir de forma tão evidente, os despejos estão a aumentar. É o caso de Coimbra, onde o número de despejos finalizados passou de 25 em 2019 para 37 no ano passado. Já em Faro, que abrange toda a região do Algarve, onde os preços das casas atingem dos níveis mais elevados do país, foram concluídos 81 processos de despejo em 2022, também acima do que se registava em 2019, quando se concluíram 74 despejos.

Governo responde aos despejos com pagamento de dívidas

Do lado do Governo, a resposta ao aumento dos despejos chega através de uma das medidas incluídas no pacote legislativo "Mais Habitação". Na prática, o Governo propõe que o Estado assuma o pagamento de rendas em dívida, a partir do terceiro mês de incumprimento. Assim, paga a dívida ao senhorio e, depois, cobrará essa mesma dívida ao inquilino, ou por via de execução fiscal, ou por despejo.

Actualmente, ao fim de três meses de rendas em falta, os senhorios já podem entregar um pedido de procedimento especial de despejo no Balcão Nacional do Arrendamento (BNA). O que muda é que, agora, enquanto este processo não estiver resolvido, o senhorio não deixará de receber as rendas em falta. Ao mesmo tempo, é o Estado que assume o papel de senhorio na cobrança das dívidas, pelo que o despejo não será, necessariamente, o desfecho destes casos, já que serão tidas em conta "causas socialmente atendíveis" que possam justificar a falta de pagamento de renda.

Em entrevista ao PÚBLICO e à Renascença, a ministra da Habitação, Marina Gonçalves, explicou que, entre estas "causas socialmente atendíveis", estão, por exemplo, casos de desemprego, de quebras de rendimento, de aumento de despesas com saúde ou educação, entre outros. Para estes casos, já há respostas, hoje em vigor, por parte da Segurança Social. O que o Governo pretende é tornar o Estado "mais eficaz" na resposta a estas situações, de forma a dar respostas alternativas ao despejo, que podem passar pelo realojamento ou pela concessão de uma prestação social.

A estes números, somam-se os dos processos iniciados directamente em tribunal (onde se incluem, também, os processos que deram entrada no BNA, mas em que os inquilinos se opuseram). Sobre estes, o Ministério da Justiça não forneceu os dados solicitados, mas as associações de inquilinos têm vindo a alertar, no último ano, para um aumento destes casos, um cenário que, acreditam as mesmas associações, tenderá a agravar-se nos próximos meses, quando entrar em vigor uma proposta de lei do Governo que vem determinar a cessação da vigência de várias normas implementadas durante a pandemia, incluindo a que impôs o travão aos despejos habitacionais. Esta proposta já foi aprovada por unanimidade na comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias​ e deverá, em breve, ser votada na generalidade na Assembleia da República.