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3.8.23

Lojas têm de selar livros com histórias LGBT+ na Hungria — mas há quem prefira pagar multa

Ana Isabel Ribeiro, in Público online

A medida chega depois de uma lei de 2021 proibir a divulgação de conteúdo que “promova a homossexualidade” a menores de idade. Há activistas a distribuir cópias gratuitas dos “livros proibidos”.

As livrarias da Hungria já começaram a embalar em plástico e separar os livros infantis e juvenis com conteúdos LGBT+, para que os menores não os abram ou leiam nas lojas. Outras recusam-se a fazê-lo e enfrentam multas de milhares de euros, que dizem que não vão pagar. A exigência de vender em “embrulhos fechados” livros infantis que considerem promotores da homossexualidade chega depois da lei de “protecção da criança”, que entrou em vigor em 2021 e proíbe a divulgação de conteúdo que “mostre ou promova a sexualidade, mudança de sexo ou homossexualidade” a menores de 18 anos, como é o caso dos livros, filmes, anúncios ou programas televisivos.

Foi ordenado às lojas que os vendam separadamente, sendo que passa mesmo a ser proibido fazê-lo caso o ponto de venda esteja localizado a menos de 200 metros de uma escola ou igreja, escreveu a Reuters.

Esta é apenas uma das repressões do governo ultraconservador contra a comunidade LGBT. Desde que a medida do Governo húngaro entrou em vigor, em Julho deste ano, as livrarias passaram a estar obrigadas a embalar os livros com personagens e histórias LGBT+ em plástico, sob pena de multa. No entanto, nem todas cumprem a ordem.

Segundo a agência AP, a livraria Líra Konyv, a segunda maior do país, foi multada em mais de 30 mil euros por ter colocado na secção juvenil um livro LGBT+ que não estava embalado. Contudo, esclarece a mesma fonte, o proprietário da loja diz que não vai pagar.

Krisztian Nyary, director criativo da Líra e um autor conhecido, disse à Reuters que a multa era desproporcional, que a lei estava redigida de forma vaga e que a livraria iria responder legalmente. Nyary disse que que algumas editoras já tinham embrulhado voluntariamente os livros, tentando cumprir a lei, mas que não era claro se isso era suficiente para colocar as obras afectadas pela lei numa prateleira de literatura destinada a adultos. Outra questão é se os livros de temática LGBT destinados a adultos também têm de ser embrulhados ou se podem ser vendidos sem embalagem. "Tudo isto não é claro", afirmou.

Por outro lado, existem casos de livrarias que cumprem a imposição de Viktor Orbán, mas dizem ser contra a medida. “Considero isto um nível de discriminação. Esta lei é um acto de força que dificilmente pode ser compreendido. É completamente contra meus próprios princípios e pensamentos”, afirmou à AP Eva Redai, de 76 anos.

Os activistas destacam que a lei limita o acesso a obras importantes e “restringe o desenvolvimento social” e tentam encontrar soluções. Esta semana, um grupo de universitários decidiu imprimir 100 cópias gratuitas do que apelidam de “livros proibidos”, como Heartstopper, e distribuí-las em frente a uma das maiores livrarias de Budapeste.

“Queremos que esses livros estejam na vida pública literária húngara e nas conversas quotidianas e é por isso que queremos dá-los gratuitamente às pessoas”, afirmou à AP Vince Sajosi, de 22 anos.

Nos últimos anos, Viktor Orbán tem intensificado a repressão anti-LGBT no país que, entre outros aspectos, proíbe o casamento de pessoas do mesmo sexo, a adopção por casais homossexuais e permite que os cidadãos denunciem às autoridades famílias LGBT de forma anónima.

Por sua vez, o conservadorismo crescente e violação dos direitos LGBT no país levou a Comissão Europeia a agir e processar a Hungria no Tribunal de Justiça da União Europeia com o apoio de 15 Estados-membros, entre os quais França e Alemanha.

14.7.23

“Só tenho o 9.º ano porque não encontrei a escola certa”

in Público online

Os Açores estão no segundo lugar da Europa com a pior taxa de abandono escolar precoce. Segunda de uma série de reportagens sobre o estado da nação.

Tatiana Gonçalves, de 20 anos, tem no currículo matrículas em sete escolas, mas em nenhuma delas conseguiu chegar além do 9.º ano. A jovem natural da Povoação, concelho que dista mais de 50 quilómetros de Ponta Delgada, na ilha açoriana de São Miguel, saiu de casa aos 18 anos, marcada por um contexto social difícil. Actualmente, faz parte do grupo de jovens NEET (que não estudam, nem trabalham) nos Açores (15,1%), que é muito superior à média nacional (8,9%).

“A minha mãe era como um caracol, sempre a mudar de casa”, começa por dizer ao PÚBLICO para justificar as inscrições em duas escolas diferentes no primeiro ciclo. “Nem cheguei a aparecer numa delas...”. Seguiu-se um percurso acidentado a que não são alheios a discriminação e o bullying de que diz ter sido sempre alvo: primeiro por não se enquadrar no modelo de masculinidade; depois por ser uma jovem transgénero.

O arquipélago é a segunda região da União Europeia com o índice mais elevado de abandono escolar precoce: 23,2%, valor apenas superado pela Guiana Francesa (23,3%). Para estes resultados importa ter em conta a conjuntura sócio-económica daquela que é a região mais desigual do país - um índice de Gini de 34,8%.

Tatiana encontra-se a passar uns dias em casa do amigo Rodrigo Amaral, também de 20 anos e que está empregado num hotel, onde trabalha por turnos. “É uma vida dura”, admite ao PÚBLICO. “Mas é preciso ganhar dinheiro.”

“O meu pai era bêbedo. Chegava a casa, partia coisas e batia nela à minha frente. Se sou a pessoa nervosa que sou hoje, é por causa dele. Não meto a culpa em mais ninguém sem ser nele.”

Aos 18 anos, quando a madrasta morreu – “foi um choque muito grande” –, saiu de casa para morar sozinho. Sempre “preferiu o isolamento” e agora reconhece que era uma pessoa “demasiado fechada”. “Nunca me assumi. Guardei isso para mim. Antes eu não dizia nada. A minha ansiedade e depressão foram por causa disso. Queria ser verdadeiramente eu e não era.” Hoje assume-se como pansexual: gosta de “pessoas e não de géneros”.

Durante o percurso escolar, registou alguns percalços: perdeu o 5.º, o 8.º e o 9.º ano. Optou, depois, por uma escola profissional no ramo da hotelaria, mas as “excessivas regras”, como a proibição de tatuagens e roupas de estilo esburacado, foram um espartilho demasiado apertado: “Tinha de usar uma roupa formal, e eu não sou assim...”

PÚBLICO -

Foi então para a escola profissional da Vila de Franca, onde conheceu Tatiana. Trata-se de dois casos extremos, que podem parecer demasiado específicos, mas que espelham o conservadorismo e a pobreza estrutural da região.

“Os baixos recursos económicos — isto é demonstrado por todos os estudos internacionais — são factor preponderante para um pior desempenho académico”, afirma ao PÚBLICO Francisco Simões, investigador do CIS-ISCTE, destacando a “predominância de mulheres” entre aqueles jovens. Nos Açores, mais de 60% dos alunos beneficiam da acção social escolar.

Apesar do caminho trilhado ao longo das últimas décadas, na região sente-se uma “conflitualidade entre a escola e família que não está resolvida” e existe uma “correlação muito forte entre o abandono escolar precoce” e os jovens NEET. É preciso encontrar formas de valorizar a escola e melhorar o ensino, defende. “Nas regiões periféricas, infelizmente, a qualidade do ensino em geral é mais baixa. Temos tido dificuldade em falar deste assunto.”

Quando Tatiana narra a sua história fica expressa a vontade de esclarecer cada detalhe. “Os problemas” começaram quando ingressou na escola de Rabo de Peixe, onde esteve do 5.º ao 9.º ano. Nessa altura, ainda com nome masculino, assumiu-se como homossexual e começou a ser vítima de violência. “Não me aceitavam pela pessoa que eu era. Existiram professores que me disseram que não ia conseguir ter boas notas por ser assim.”

Qualquer comportamento desviante ao padrão era censurado e a brutalidade escalou quando circularam fotografias suas com maquilhagem. Levou “pancadaria” e “cuspiram-lhe na cara”. “Era um mundo fechado. Sofri de bullying e deram sempre razão a quem me fazia bullying.” As lembranças duras são superadas pelo tom determinando. “A partir daí, percebi que as escolas iam ser difíceis para mim...”

Não se enganou. No ensino secundário, já com a “aparência social” que tem hoje, continuou a ser agredida por colegas. Nunca encontrou protecção nas estruturas de gestão da escola e chegou a ser chamada “esterco” por um professor. “Um amigo meu suicidou-se por causa de bullying nessa escola. Cheguei a perguntar se queriam que fosse a próxima vítima, mas para eles foi o mesmo que nada.” Não voltaria a terminar mais nenhum ano escolar.

Logo aos 18 anos, foi forçada a ser independente porque o padrasto não a aceitava. “A minha mãe teve de escolher entre mim e ele, e escolheu-o, a ele.” Depois de uma fase passageira na casa de um namorado, passou os últimos anos a saltar entre quartos de casas partilhadas, custeando-se com uma pensão social de inclusão, devido aos diabetes, fibrose quística e asma de que padece – mas, ressalva, está “fora de questão passar a vida a depender de subsídios”.

Experimentou a Escola Profissional de Vila Franca do Campo. “Foi a única onde me senti bem.” Só a permissão para utilizar as instalações femininas foi uma “libertação”, confessa. “Mas parece que há sempre um entrave.” Quando não foi a escola, foi o local onde vivia: era “assediada e apalpada todos os dias” e, por isso, decidiu mudar de casa. Passou a viver em Ponta Delgada, a 25 quilómetros da escola. Sem paragens de autocarro por perto e sem forma de se deslocar, acabou por “desistir”.

Para Tatiana, o passado continua a provocar complicações. “Nem digo que era um eu antigo. Era uma personagem. Com o nome morto. Tinha de me assumir assim por causa da minha mãe”, conta, explicando que o processo de mudança de sexo começou há sete meses. Nos papéis, a alteração ficou consumada há dois anos: Tatiana. Actualmente, não estuda nem trabalha. “Eu quero estudar, mas é difícil encontrar a escola certa...”

Ao longo da conversa, a jovem nunca refere o pai, mas quando o assunto é abordado, não se inibe. “Chama-me de aberração. Ele disse que tem vergonha de sair comigo à rua. Já nem me deve reconhecer”. Quando é que o viste pela última vez? “Tem anos, não sei, mas lembro-me de uma das últimas conversas”… Pausa. Tatiana retoma o pensamento subindo o tom da voz. “Expliquei-lhe o nome que escolhi. Fiz o meu nome como Tatiana para homenagear minha irmã que morreu. Era o nome dela. Meu pai bateu na minha mãe e ela teve um aborto instantâneo no dia 16 Fevereiro de 2002. Era para nascer em Agosto”.

“O desafio está na escola e nos professores”

Segundo o relatório Estado da Educação 2021, publicado no início do ano, os Açores são a zona do país com a taxa de escolarização mais baixa no ensino secundário, com 55,7%, bastante longe da segunda região, Lezíria do Tejo, com 77,2% (NUTS III). O arquipélago regista uma taxa de escolarização no ensino básico de 90,2% (a média nacional é 97,4% e existem várias regiões nos 100%) e apresenta taxas de retenção superiores à média nacional em todos nos anos de escolaridade.

Hermínia Rodrigues lida diariamente com a dura realidade da educação nos Açores enquanto presidente do conselho executivo da Escola Básica Integrada de Água de Pau, onde recebe “alunos de contextos difíceis”. “Muitos estudantes não têm qualquer tipo de aspiração ou ambição para o futuro”, assinala a professora que representa os Açores no Conselho Nacional de Educação.

O arquipélago é diverso e as realidades não são homogéneas. São nas zonas de “grande adversidade económica e social”, como Rabo de Peixe ou Água do Pau, que a situação é “mais complicada de contrariar”. “Nestas zonas há uma grande desvalorização da escola, quer por parte dos alunos, quer por alguns encarregados de educação”.

Hermínia Rodrigues defende que é preciso mobilizar a comunidade educativa, mas admite que a missão é difícil quando os conselhos executivos estão “sujeitos a uma grande carga burocrática”.

Estando a região, “de forma geral, bem fornecida de edifícios e equipamentos” e apresentando um “corpo docente minimamente estável”, o objectivo tem de passar pela “criação de uma cultura de escola”. “A escola tem de ser capaz de mobilizar professores e alunos e trabalhar nas aspirações dos estudantes”.

Também para o professor da Universidade dos Açores, Fernando Diogo, especialista em pobreza e educação, o “grande desafio” passa pelos professores e pela escola. É necessário “apostar na formação dos professores”, melhorar a “organização escolar” e criar grupos para os docentes discutirem os problemas da sala de aula entre pares. “O foco da promoção do sucesso escolar tem de ser nos professores. Não é nos alunos, nem nas famílias. É preciso convencer os professores disso.”

O investigador do CICS-Nova aponta a especialização produtiva da economia açoriana, durante décadas assente em qualificações baixas, como um dos factores que motivaram os “jovens a sair precocemente da escola”, uma vez que “havia oferta de trabalho” no sector primário. “Isso já não se verifica, mas a cultura de saída de abandono precoce do mundo escolar instalou-se”, afirma o professor universitário.

O sociólogo aponta ainda outros dois factores para explicar o subdesenvolvimento dos Açores na educação: a reprodução da baixa escolaridade entre gerações e uma aposta política dos governos regionais “excessivamente centrada no betão”. “Continua-se a construir infra-estruturas como se a construção de escolas tivesse qualquer impacto no insucesso escolar. Não tem. Tem zero impacto.”

O futuro de Tatiana – que persegue o sonho de ser influencer – é ainda incerto. Já foi aceite numa escola profissional para o próximo ano lectivo, mas está relutante porque os dirigentes, aquando da entrevista, “mudaram completamente a postura” quando perceberam que era uma mulher “trans”.

Ambiciona regressar à escola de Vila Franca do Campo, a “única onde se sentiu integrada”. Está a tratar da inscrição e, desta vez, não conta desistir porque em Setembro se vai mudar para uma zona mais bem servida de transportes públicos. “Só tenho o 9.º ano porque ainda não encontrei a escola certa”.


11.1.23

“Como é que sabes que és homossexual?”

Raquel Raimundo, opinião, in Público

As reações contra as pessoas LGBTIQ caracterizam-se mais por hostilidade do que por medo. Em alguns casos, mais do que estarem contra alguém, estão a favor de si próprias, com medo do que é diferente.Ana era aluna do secundário e passava a maioria dos intervalos na biblioteca, com medo que os colegas gozassem com ela por ser lésbica e gostar de uma rapariga. 

No primeiro jantar com a namorada, o Ivo partilhou que às vezes gostava de pintar-se e usar colares e brincos, mas não sentiu compreensão e aceitação, por isso não voltou a falar sobre o assunto. O poeta Miguel Tecedeiro dizia a este propósito que “não há solidão comparável à de vivermos longe de nós”.

Já lá vai o tempo em que a orientação sexual (atração física e/ou emocional por outras pessoas) e a identidade de género (forma como a pessoa se sente e identifica quanto ao género, independentemente do sexo que lhe foi atribuído à nascença) não hegemónicas eram consideradas patologias no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) e na Classificação Internacional de Doenças (CID). Tem sido longa a caminhada, incluindo na área da saúde mental, para combater o estigma, o preconceito e a ignorância, sendo dos grupos sociais que mais têm sido alvo de opressão, desigualdade e violência, pondo em causa a sua saúde física, psicológica, sexual e reprodutiva e social.

Porque permanece então o preconceito? A psicologia cognitiva ajuda a explicar. Há uma coisa chamada viés de confirmação, que é a tendência inata para acreditar em informações que confirmam ou que correspondem às nossas opiniões e crenças pré-existentes.

Por outro lado, uma das heurísticas mais poderosas e com maior influência sobre o processamento de informação é a heurística da disponibilidade. Quando necessitamos de tomar alguma decisão, quanto maior é o acesso e a familiaridade, maior a probabilidade de ser usada (os soundbytes ficam). Esta heurística é reforçada pela repetição da informação, mesmo que falsa.

As reações contra as pessoas LGBTIQ caracterizam-se mais por hostilidade do que por medo. Em alguns casos, porém, mais do que estarem contra alguém, estão a favor de si próprias, com medo do que é diferente. E os nossos medos tornam-nos menos empáticos. Há também algumas situações em que a discriminação ocorre por desconhecimento e não necessariamente por má vontade ou de forma consciente.

“Ser o que somos não é uma questão de ideologia. É a nossa identidade. E ninguém pode privar-nos dela” — palavras da Presidente da União Europeia Ursula von der Leyen (2020), num discurso no qual foi anunciada a primeira estratégia da Europa para a igualdade de pessoas lésbicas, gay, bissexuais, trans, não-binárias, intersexo e queer (LGBTIQ).

Quanta falta de empatia e humanismo é necessário ter, para invocar uma suposta deriva ideológica e experimentalismo social? As pessoas LGBTIQ sempre existiram. Muitas vezes escondendo-se e “experimentando” ser quem não são, internalizando também elas o preconceito, por medo de serem alvo de estigma, discriminação e violência e/ou de perderem redes de apoio, com todo o sofrimento que isso acarreta para as suas vidas. Algumas chegam a pedir apoio psicológico para mudança de orientação sexual!

As linhas de orientação para a prática profissional no âmbito da intervenção psicológica com pessoas LGBTQ da Ordem dos Psicólogos Portugueses dão indicação de que as evidências científicas não apoiam a eficácia das técnicas de mudança de qualquer orientação sexual, evidenciando até o seu potencial danoso. A intervenção psicológica afirmativa das orientações LGB configura-se atualmente como aquela que apresenta, quer maior sustentabilidade científica, quer melhor adequação ética, ao ajudar as pessoas a consolidar a sua autoestima e a lidar com o preconceito.

Como podemos apoiar? Tenho procurado seguir o conselho das pessoas LGBTIQ: contactar com elas e com as associações que as representam. Escutá-las. A existência de pessoas aliadas aumenta o suporte social e a aceitação, ingredientes fundamentais para o seu bem-estar e qualidade de vida. Esta não deve ser uma luta só delas. É uma luta pelos direitos humanos e pela gentileza e tolerância que só o amor ao diverso pode trazer. É também uma luta de quem sente desconforto em viver bem, com direitos que as outras pessoas não têm. “É um lindo sonho para viver, quando toda a gente assim quiser”, como diria José Mário Branco.

Por onde começar? Evitando insinuar que se trata “apenas de uma fase”. Ao fazê-lo estamos a transmitir, mesmo que involuntariamente, a ideia de que a orientação sexual e/ou identidade de género da pessoa não é aceitável.

Respeitando a forma como a pessoa quer ser tratada, deixando que nos diga se prefere ser no feminino, no masculino ou de forma neutra e usando os pronomes adequados. Dá algum trabalho utilizar linguagem inclusiva? Dá pois. A prová-lo está o número de vezes que já revi este artigo e encontro sempre algo para alterar. Mas, se trabalho em duas instituições em que uma usa o “novo” acordo ortográfico e a outra o “antigo” e vou conseguindo gerir isso, quanto mais quando a linguagem que utilizo fere quem com ela não se identifica.

Conheci um aluno de 9.º ano que perante a questão de uma professora “como é que sabes que és homossexual?”, respondeu com outra pergunta: “Como é que a professora sabe que é heterossexual”? Não me ocorreria melhor forma de resposta.

10.1.23

Pioneiros LGBT+.Da clandestinidade à igualdade

Ana Cristina Pereira, in Público

Alguns tiveram de evitar a polícia para ter encontros sexuais. Outros saíram do armário na epidemia da sida. Todos enfrentaram repúdio. Esta é a história da luta LGBT+ de Portugal contada através de oito protagonistas

A homossexualidade só não é crime em Portugal há 40 anos. Neste especial multimédia, resgatamos memórias de pioneiros do movimento LGBT+. Atendemos às particularidades do que tem sido a luta trans. Procuramos saber que desafios enfrentam agora os mais velhos. E que lutas animam os mais jovens. Contamos ainda a história do movimento e da conquista de direitos.

Foi há 40 anos. Com as badaladas de Ano Novo entrou em vigor a revisão do Código Penal que descriminalizou as relações homossexuais, consentidas, entre adultos. Dezanove anos decorreram sem que nada mais mudasse no quadro jurídico português. A partir de então, o movimento LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, trans e outros) acumulou tantas vitórias que Portugal se tornou um dos países mais progressistas nesta matéria. O que explica aquele vazio? E a rápida transformação que se seguiu? Quem foram as primeiras pessoas a levantar esta bandeira? Prepare-se para recuar até aos dias da ditadura e percorrer cada etapa desta história com um pioneiro.

António Serzedelo
Quando a homossexualidade era crime

António Serzedelo (n. 1945) é o activista mais velho do país. Filho de uma doméstica e de um engenheiro portuário destacado em Moçambique, foi enviado para Lisboa para estudar. “Tentei esmagar a atracção por rapazes.” Ceder à tentação era provocar a ira dos poderes do outro mundo e deste.
A Primeira República equiparara o homossexual ao falso mendigo, ao reincidente, ao proxeneta, condenando até um ano de prisão quem se entregasse “à prática de vícios contra a natureza”. O Estado Novo afinara a repressão, sujeitando “vadios” e equiparados a medidas de segurança até três anos em “manicómio criminal”, “casa de trabalho ou colónia agrícola”.

Entrou numa espécie de clandestinidade. “Havia ali a Feira Popular. Eu ia lá tomar uns copos. Iam lá outros rapazes ou outros homens como eu. Ao vir para casa, era logo ali, nas árvores do Campo Pequeno. E foi assim que comecei.” Também frequentava urinóis. Um deles ali perto, na Praça de Touros. Só que havia risco de rusga e o engate podia revelar-se um polícia à paisana. “Nunca fui apanhado, mas fugi algumas vezes.”

As consequências dependiam do estatuto, como se percebe ao ler as investigações da jornalista São José Almeida (2010) ou da antropóloga Raquel Afonso (2019). As elites passavam ilesas, se fossem discretas, se respeitassem “a lei do silêncio”. As classes baixa e média nem por isso, mas esta última tinha margem para se livrar de um processo com um pequeno suborno.

Não havia espaço para o afecto naquele circuito. Serzedelo nem sabia o nome das pessoas com quem tinha sexo fortuito. “Era tudo no maior anonimato.” Desenvolvera-se um código que permitia reconhecer um semelhante. “Havia uma estratégia de aproximação. Era pedir um cigarro para fumar ou pedir lume para acender o cigarro ou perguntar as horas.”

Foi tendo namoradas. Havendo expectativa de casamento com uma, revelou-lhe: “Olha, eu sou homossexual.” E ela retorquiu: “Não te preocupes porque no Hospital Júlio de Matos há um médico que faz tratamentos.” Assentiu, sem resistência. “Se tinha uma doença, queria curar-me.”

A ideia de homossexualidade como doença formara-se na viragem do século XIX para o XX. Como escreveu a psicóloga Gabriela Moita (2001), admitiam-se duas hipóteses: a homossexualidade “congénita, classificada como inversão”, e a homossexualidade “por vício ou imoralidade, a perversão”.
Havia várias terapias de reversão. No Júlio de Matos, uma que envolvia descargas eléctricas. “Resumia-se a imagens projectadas. Se fosse um homem com um homem, tínhamos choques desagradáveis. Se fosse um homem com uma mulher, choques agradáveis. Umas coisas suaves. Não se pense que era daqueles de dar saltos e bater com a cabeça no tecto.”

Com a Revolução de 25 de Abril de 1974, acendeu-se uma centelha. Os actos homossexuais tinham sido descriminalizados em vários países. A Associação Americana de Psiquiatria acabara de os retirar do seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Na manifestação do 1.º de Maio, no Porto, alguém empunhou um cartaz: “Liberdade para os Homossexuais.”.

O movimento global estava em marcha. Na noite de 27 de Junho de 1969, a polícia de Nova Iorque invadira um bar frequentado por pessoas trans chamado Stonewall Inn. A rebelião dera origem à Frente de Libertação Gay. O manifesto de Carl Wittman (1943-1986) apontava a direcção: unir a acção revolucionária à emancipação homossexual. Nasciam grupos em vários países. Em França, que muito influenciava uma certa elite portuguesa, a Frente Homossexual de Acção Revolucionária.

“Tinha uma roda de amigos. Já todos tínhamos viajado e visto algumas liberdades que se exerciam no estrangeiro”, conta Serzedelo, afundado num sofá da sua casa, no centro de Lisboa. Discutiam o assunto.“Foi nesse contexto que eu e o Jorge Lima Barreiro, através de fax e telefone, combinámos um texto.” O manifesto que escreveram, entre Lisboa e Porto, intitulava-se “Liberdade para as Minorias Sexuais” e foi dado à estampa no Diário de Lisboa e no Diário Popular, no dia 13 de Maio, assinado pelo Movimento de Acção dos Homossexuais Revolucionários.

Um escândalo, aquilo. A esquerda portuguesa, como escreveu o investigador Fernando Cascais (2006), passara “em grande medida ao lado das transformações culturais que ocorreram nos outros países nas décadas de 1960 e 1970”. Encarava a homossexualidade como uma espécie de decadência burguesa, que associava aos que tinham vindo das antigas colónias em África.

No dia 27, Galvão de Melo, que representava a ala mais à direita na Junta de Salvação Nacional, leu na RTP uma carta de indignação de um cidadão que falava na “ignóbil transcrição, em jornais que estão ao alcance de qualquer criança, do comunicado das prostitutas e dos homossexuais, numa demonstração de amoralidade sem precedentes em qualquer país em que a família e a moral existem ainda como valores”. E deixou claro que não fora para aquele tipo de liberdade que se fizera a revolução.

Haviam de passar 23 anos até Serzedelo fundar a Opus Gay, actual Opus Diversidades. Naquele momento, o discurso de Galvão de Melo aniquilou qualquer ilusão. Mas os tempos claramente eram outros. A polícia arranjou mais que fazer. Abriram bares na capital que se tornaram referência para homossexuais de todo o país. O Scarllatty Club, em 1975, o Memorial, o Travelou, o Finalmente, todos em 1976, e o Trumps, em 1980.

José Carlos Tavares
A esquerda revolucionária na linha de partida

Ainda houve pelo menos uma falsa partida: o Colectivo de Homossexuais Revolucionários, encabeçado pelo actor João Grosso (n. 1958), a que mais tarde se juntou Fernando Cascais (n. 1959). Antes de se desfazer esse grupo concebido no Centro de Dinamização Juvenil Culturona, em Lisboa, em 1980, ainda organizou um encontro público pelo qual passaram alguns dos que mais tarde haveriam de protagonizar o movimento LGBT+.

A primeira revisão do Código Penal do Portugal democrático (1982) retirou-lhe parte do carácter moral. Deixou de criminalizar condutas sexuais entre adultos, livremente, em privado, como o adultério, o incesto, a homossexualidade ou a prostituição. Estabeleceu, ainda assim, idades de consentimento diferentes para actos homossexuais (16 anos) e heterossexuais (14 anos).

Não se seguiu uma saída generalizada do armário. “As mentalidades não mudam por decreto”, resume José Carlos Tavares (n. 1963), servindo-se de um chavão para marcar a total ausência de campanhas contra o preconceito. “Havia medo. Havia medo e vergonha pública. Essas coisas estão tão enraizadas que ainda hoje existem. Tenho amigos que não se assumem. Muitas vezes esperam que o pai ou a mãe morra.”

Percebeu-se gay na pré-adolescência, em Angola. Viveu a primeira paixoneta já em Portugal. “Aquelas paixões que começam por ser um jogo. Eu aproximo-me, abraço, dou beijinhos, mas estou a dormir, não sou maricas. Era o medo de assumir. Fomos criados com o heterossexismo muito presente. Os papéis de um homem e de uma mulher eram demasiado rígidos. Não cabia a realidade aí.”

Portugal era um país conservador. E, na linha de Sintra, José Carlos estava a ser educado com os valores da Igreja Adventista do Sétimo Dia. No seio da família formada pela mãe, que era dona de casa, e pelo pai, que era ferroviário, a homossexualidade era “uma abominação”. “Enquanto crente, eu dizia: ‘Meu Deus, se me fizeste assim, porque me pedes o contrário? Não faz sentido’."

Quando a irmã mais velha o denunciou, os pais não estiveram com meias medidas. Expulsaram-no de casa. Ia nos 17 anos. Não ficou na rua porque foi acolhido por um casal homossexual, que dissimulava a sua relação perante o mundo, e num instante conheceu o companheiro, com quem vive até hoje. Que revolta. “Eu não fiz mal a ninguém. Como podiam fazer-me aquilo?”

Como escreveu Fernando Cascais (2006), aproximando-se a entrada na União Europeia, oficializada em 1986, gerou-se “uma expectativa de acesso ao adquirido europeu, não só relativamente aos indicadores de progresso humano, mas também, e de sobremaneira clara e ostensiva entre gays e lésbicas, ao seu adquirido cultural e jurídico, por meio de transposição de legislação mais avançada”.

Mas os tempos ainda não sopravam de feição. Os direitos LGBT não eram coisa que interessasse ao cavaquismo. E o VIH propagava-se pelo mundo, como um susto. Falava-se em “peste gay”, “cancro gay”, “pneumonia gay”. Embora a imprensa tenha emendado a mão, o estigma continuava a potenciar hostilidade para com homens que tinham sexo com homens, consumidores de drogas injectáveis, trabalhadoras do sexo.

Vendo que era grande a diversidade humana e que havia noutras latitudes quem brigasse pelo direito à igualdade na diferença, José Carlos converteu a revolta em orgulho e luta. Com outros quatro, formou em 1991 o Grupo de Trabalho Homossexual (GTH) no Partido Socialista Revolucionário (PSR), que se fundiria com a União Democrática Popular e a Política XXI em 1999, dando origem ao Bloco de Esquerda.

Denunciavam comportamentos homofóbicos. Promoviam debates. Distribuíam panfletos nos bares. “Naquela altura, uma pessoa era gay à noite. Durante o dia, não havia gays.” No manifesto que divulgaram em 1992 já exigiam protecção legal contra a discriminação em função da orientação sexual, união de facto, adopção, procriação medicamente assistida. “No início, muitos de nós não acreditávamos que íamos conseguir. Era tudo uma novidade, uma utopia, um sonho. Entretanto, tudo se tornou realidade.”

Era elevado o custo pessoal deste activismo embrionário. “Quando me comecei a relacionar com o meu companheiro, estava frágil. Não tinha casa, não tinha emprego. Era um miúdo assustado. Apoiámo-nos sempre. E sei que lhe trouxe incómodo. Vivíamos num bairro de famílias heterossexuais. As pessoas conheciam-no. Vê-lo com um rapaz que assumiu a sua homossexualidade como porta-voz de um grupo atraiu a atenção dos vizinhos.” Alguns não se abstinham de fazer piadas e de atirar insultos.

No trabalho, na área da publicidade, o grau de chacota podia atingir picos difíceis de aguentar. Certa ocasião, comeu marisco e sentiu uma reacção alérgica – vermelhidão, borbulhas, urticária. “Ficas em casa e só voltas com o comprovativo de que não tens sida; aqui trabalham mulheres e não quero que nenhuma apanhe sida por tua causa”, disse a patroa. “Foi a primeira vez que fiz um teste de VIH. Fui ao Instituto Ricardo Jorge e depois apresentei o resultado, mas… foi muito violento para mim.”

Gonçalo Diniz
Associativismo emerge na epidemia da sida

Um grande conflito interior sacudiu Gonçalo Diniz (n. 1972) quando a sua orientação sexual se evidenciou. Nascera em Luanda, crescera em Joanesburgo, aterrara em Lisboa adolescente, após o divórcio dos pais, com a mãe e a irmã. “Não havia muitas referências. Todas as que tinha eram negativas. Era o cantor Freddie Mercury, era o actor Rock Hudson. A minha orientação sexual estava ligada ao medo de contrair VIH. Praticamente na minha primeira experiência sexual fiquei seropositivo.”

Tinha 19 anos quando recebeu o diagnóstico, então equivalente a uma sentença de morte. Não quer dramatizar. Diz apenas que “foi perturbador”. “Desisti dos estudos. Para quê estudar, se ia viver um ou dois anos? Decidi sair de casa, viver com o meu companheiro, desfrutar do tempo que me restava.”

A médica Maria José Campos, que dava consulta no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, levou-o para a Associação Abraço, criada em 1992. “Ela é muito importante na vida de muita gente. Ela tocou a vida de muitas pessoas, a minha particularmente.” Ia com ela a escolas fazer educação para a saúde. Primeiro, os jovens riam-se, nervosos por estarem a falar de sexualidade, mas depois prestavam atenção. “Abordava toda uma série de tabus relacionados com a sexualidade, o uso de preservativo. Às vezes, desviávamo-nos do VIH e entrávamos nos temas de género, de orientação sexual.”

No Norte da América e no Norte da Europa, comunidades LGBT organizadas desempenhavam um papel importante na luta contra o VIH/sida. Em Portugal, aconteceu o inverso. “Esse espaço de luta contra a sida é que juntou uma massa crítica, criou condições para as pessoas lutarem.”

Expandia-se o universo subterrâneo de bares, saunas, festas privadas. “Havia uma comunidade e ela tinha formas de se comunicar, mas tudo girava em torno

da diversão e dos encontros sexuais. Não havia uma associação que mobilizasse a comunidade em torno de outros interesses.”

Decorria 1995. “Sempre que se falava de sida falava-se de homossexualidade e sempre que se falava de homossexualidade falava-se de sida. Queríamos sublinhar que tínhamos outros interesses e outras preocupações, lutar pelo direito à igualdade, combater o preconceito, a discriminação, a violência.” Criaram a ILGA-Portugal.

Algo parecia evidente. “Para avançar, era preciso que alguém desse a cara.” Deu a sua. Em seu redor, continuavam a morrer pessoas com sida – só entre 1997 e 1998 surgiria uma terapêutica antirretroviral eficaz. “Queria dar um significado ao que estava a fazer, sentir-me útil, sentir que estava a contribuir para qualquer coisa de valor. Isso era mais importante do que o eventual preço social ou económico. Pus a minha vida profissional como designer gráfico em segundo plano. Não tinha nenhuma preparação particular, mas sentia-me confortável porque estava rodeado de pessoas que me apoiavam, algumas com preparação intelectual e política, como a Maria José Campos.”

Filomena Loureiro
As lésbicas desde o início

Na imprensa da época, as mulheres parecem não existir. Talvez porque o movimento surgiu no âmbito da luta conta a sida, talvez porque não fugia ao “contexto social de sexismo e predominância masculina”, como escreveu a investigadora Eduarda Ferreira (2016). Mas as mulheres estavam lá.

Para a escritura da ILGA-Portugal, em 1996, deram o nome oito homens e oito mulheres. “Cada vez que o Gonçalo arranjava um homem, eu arranjava uma mulher”, conta Filomena Loureiro (n. 1960). “O notário não queria marcar. Temia que a sua reputação caísse por fazer a escritura de uma associação lésbica e gay. Dizia: ‘Escolha outro notário. Não tenho agenda.’ E eu dizia: ‘Marque para daqui a um ano.’” Assinou por ela e por outras que lhe passaram uma procuração.

Também nascera em Angola. Viera para Portugal adolescente. Queria fazer a sua vida sem mentiras. E preparara terreno. Co-fundara a Organa, a primeira publicação lésbica portuguesa, com Ana Pinheiro, então sua companheira. “Começou em encontros, conversas de amigas. Parti muita pedra. Demorei para aí dois anos a encontrar um grupo que quisesse fazer alguma coisa.” Nunca se sentiu segura para dar a cara nos media. Ainda hoje não se sente.

No seu entender, não havia comunidade. Era preciso construí-la. De certo modo, tinha sido esse um dos propósitos da Organa. “Era um trabalho interno, de troca de experiências, de correntes de opiniões, até que pudéssemos sair conscientemente para uma reivindicação pública.” O fanzine teve nove números. “Era sempre uma festa.” Acontecia no seu apartamento, em Lisboa. “Preparávamos refeições. Era um encontro de mulheres.”

Muitos textos chegavam-lhe por carta. As leitoras escreviam para um apartado, não raras vezes sob pseudónimo. Algumas telefonavam para a linha entretanto criada. Não havia muito que Filomena e as outras pudessem fazer. “Era dar conforto. Havia muito isolamento, muito desamparo, muita solidão.”Na Beira Baixa, Fabíola Cardoso (n. 1972), igualmente nascida em Angola, nem ouvia

falar de sexualidade. “A primeira vez que me apaixonei, não tinha conceitos, conhecimentos, ferramentas para lidar com o que me estava a acontecer. O vazio, o silêncio, o tabu eram tão omnipresentes que nem a própria palavra lésbica eu conhecia. Foi um choque, uma consternação.”

Trocou o primeiro beijo na casa de banho da escola. Cá fora, ela e a namorada passavam por amigas. “É mais fácil duas lésbicas passarem despercebidas. A invisibilidade protege de um meio agressivo e violento, mas faz com que essa realidade seja ainda mais dificilmente aceite.” Quando assumiram a relação, “cada uma das famílias culpou a outra”.

Fabíola lia. E procurava pessoas como ela. “Onde encontrar? Não na noite, que não existia em Castelo Branco. Não na Internet, que estava quase no início. Foi através da Organa, que conheci num anúncio no Correio da Manhã, que contactei outras lésbicas, em Lisboa.” A partir daí, conheceu a Lilás, publicação lésbica que se sucedeu, e através dela as pessoas com quem fundou o Clube Safo, em 1996.

Nenhuma das fundadoras do Clube Safo, residentes em Aveiro, tinha experiência de activismo. “Tínhamos vontade de fazer alguma coisa exclusivamente lésbica porque nos sentíamos sub-representadas. Também tínhamos vontade de fazer alguma coisa fora dos grandes centros, fora de Lisboa.”

Organizavam encontros dispersos pelo país. Por segurança, marcavam num café. Só quem lá fosse saberia o nome do restaurante do almoço e da tertúlia. Fabíola lembra-se de mulheres que faziam centenas de quilómetros e não tinham coragem de entrar, de mulheres que eram incapazes de dizer a palavra lésbica, de mulheres que mudavam de passeio se vissem uma dar a mão a outra. “Era este nível de homofobia internalizada, de falta de referências e de autoconfiança.”

Está convencida de que “este trabalho – de aceitação, de conhecer outras pessoas, de ter uma vivência lésbica socialmente visível – continua a ser necessário”. Embora as referências sejam outras, “é difícil construir uma identidade lésbica positiva num ambiente muito conservador e repressivo – e esses ambientes continuam a existir”.

No início, não se falava em activismo LGBT+. “Falava-se em activismo gay. Foi uma luta para passar para gays, lésbicas e simpatizantes. Houve um caminho que as organizações tiveram de fazer. Também houve um caminho que as lésbicas tiveram de fazer.” Abriram espaço no movimento feminista, juntando-se à luta pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez. E fizeram ouvir a sua voz dentro do movimento gay. Foi do Clube Safo que partiu a ideia de fazer a primeira marcha do orgulho (2000). “Havia apenas o arraial, organizado pela ILGA-Portugal em parceria com a Câmara de Lisboa. Era um evento de cariz comercial, masculinizado, à noite. Não era um evento político, reivindicativo, que contribuísse para criar visibilidade positiva.”

João Paulo
Das primeiras vitórias ao casamento

Após 19 anos de vazio, Portugal procedeu a uma rápida sucessão de mudanças. Em 2001, a lei das uniões de facto. Em 2003, a transposição da Directiva do Emprego. Em 2004, a inclusão da orientação sexual como factor de discriminação na Constituição, outra obrigação decorrente da pertença à União Europeia. Em 2007, o reconhecimento da violência doméstica entre pessoas do mesmo sexo, a uniformização da idade de consentimento sexual, o agravamento das penas relativas a crimes de ódio por orientação sexual. Em 2010, o casamento entre pessoas do mesmo género.

Estudiosos como Ana Cristina Santos atribuem a rapidez da mudança à União Europeia, mas também àquilo a que a socióloga chama “activismo sincrético”. “No início, havia necessidade de apagar fogos. Quase que não havia espaço para a divisão interna. Apesar de existirem diferenças, falava mais alto o reconhecimento da urgência.” Associações e colectivos uniram-se em torno de objectivos comuns, combinando acções de lobby e acção directa.

Aquando da primeira batalha – a lei das uniões de facto, que em 1999 fora aprovada apenas para casais heterossexuais –, João Paulo (n. 1968) já vivia com Filipe Pacheco. Filho de uma empregada doméstica e de um motorista de camiões residentes em Matosinhos, andara a “educar” os pais, devagarinho.

Um dia, no carro, o pai dera o passo. “Tu e o Filipe vivem juntos, mas são amigos?”, perguntara. “Sim, é bom que sejamos amigos”, respondera. “Mas vocês têm raparigas?”, tornara o pai. “É agora que vais esticar o braço e partir-me os dentes todos”, pensara João. “Não, que eu saiba o Filipe nunca teve e eu também não.” Silêncio. “Então, vocês são homossexuais?”, perguntara ainda. “Não disse maricas, não disse paneleiros, não disse nada ofensivo”, pensou. “Sim.” Silêncio.

Explicou-lhe que não era uma escolha, era uma orientação sexual. O pai ouviu e compreendeu, mas pediu-lhe que não contasse à mãe. Em 2001, João Paulo já não podia esconder. Tornara-se um dos porta-vozes do movimento. Com Filipe, que é engenheiro informático, fundara o primeiro portal temático, o Portugal Gay, em 1996. E em 2001 estava a organizar o primeiro Porto Pride.

A mãe reagiu mal. “Durante um mês, só me disse bom dia, boa tarde ou boa noite.” Julgando-a inquieta com a má-língua dos vizinhos, confrontou-a: “O teu filho não precisou de se casar para tapar os olhos de ninguém. Pensa nisso.” Ela pensou. Aproximando-se o fim-de-semana, perguntou-lhe se ia lá almoçar. “Não sei. Diz-me tu. Se for, não vou sozinho.” Ela replicou: “Traz o pão.”

Não ficou logo tudo resolvido. “Foi um processo que durou quase dez anos. A minha mãe não queria ir ao nosso casamento.” A lei do casamento entre pessoas do mesmo género entrou em vigor em Junho e João e Filipe casaram-se em Outubro. “O que é que eu vou lá fazer? Não conheço ninguém”, dizia. “Veio de lá uma mulher nova. Conheceu muitos gays e lésbicas e viu que não eram o que ela pensava.”

Uma felicidade, aquele dia. “Não éramos só nós que nos queríamos casar. As pessoas que lá estavam queriam que nos cassássemos.” Tinham lutado muito por aquele direito e os amigos presentes também. Alguns até repudiavam a instituição casamento, mas lutaram para que pudesse ser uma escolha.

João foi muitas vezes a escolas explicar a razão pela qual o casamento civil era importante para si. “A união de facto não chega?”, perguntavam-lhe. “Não. A união de facto não me dá direito de decidir sobre a saúde do meu companheiro.” Partilhavam os dias havia 14 anos. “Se precisasse de ser hospitalizado, a mãe dele podia dizer: ‘Aquele senhor não entra’.”

Para garantir a lei do casamento e a da identidade de género, o antropólogo Miguel Vale de Almeida candidatara-se ao Parlamento como independente nas listas do PS, tornando-se o primeiro deputado assumidamente homossexual. A negociação incluiu uma cláusula que impedia a adopção por casais do mesmo género. Resquícios do escândalo Casa Pia de Lisboa (2002), que fomentou a associação abusiva entre homossexualidade e crimes sexuais contra crianças.

Naquela altura, houve uma debandada do movimento. Muitos assumiram que com a união de facto e o casamento o caminho estava cumprido. João Paulo bem via que não. Além de informação, o portal tinha recados. “Mais do que uma vez fomos abordados por causa de pessoas que usavam o Portugal Gay para denegrir a imagem de outras. Como ser gay era malvisto, o que faziam era: ‘Vou inventar uma história a dizer que tu gostas e ponho lá o teu número de telefone.” E se ser gay era malvisto, ser trans, muito mais.

Jó Bernardo
Uma tragédia força a olhar para as pessoas trans

Jó Bernardo (n. 1965) é a mais antiga activista trans do país. Diz que se iniciou aos 15 anos, quando, fugida de casa, se juntou a outras que se prostituíam em Lisboa, dormindo na rua ou em pensões, roubando pão deixado por padeiros de madrugada em portas alheias. Naquele início, era a luta “pela sobrevivência, nas melhores condições possíveis”, na relação com colegas, clientes, pessoas que arrendavam quartos. E com as autoridades. “Retiravam-nos da rua e levavam-nos para a esquadra somente porque a vizinhança se queixava que estávamos a fazer barulho ou a dar má imagem à Avenida da Liberdade.”

Nascera em Lisboa. Morara com a família em Munique. Nem ela nem o irmão gémeo aguentaram a vida que os pais lhes tinham predestinado em Viseu, enquanto estudantes do Colégio da Via-Sacra. Fugiram para Lisboa. E ali estava, entre rapazes afeminados, travestis, transexuais. Era só mais uma figura “indefinida”. Sentia-se livre – de regras, de acusações, de julgamentos.

Ainda experimentou o trabalho agrícola na Suíça alemã, mas tudo lá lhe parecia demasiado apertado. “É quando venho, quase com uma depressão, que decido iniciar o processo de transição. Tinha perfeita consciência de que a partir desse momento iria entrar em confronto directo com a sociedade.”

O Mundo de Jó

Viveu em Madrid e em Paris, seguindo o mesmo circuito de trabalho sexual de outras pessoas trans que precisavam de ganhar dinheiro para modificar o corpo. Estava em Portugal quando, em 1997, a ILGA abriu o Centro Comunitário Gay e Lésbico. A sua vida já era outra. “O meu companheiro tinha uma empresa de materiais de construção e ofereceu os materiais para as casas de banho.”

Maria José Campos é que a levara para aquelas lides. Com a ajuda dela e a bênção de Gonçalo Diniz, criou um gabinete de apoio trans dentro da ILGA. Integrou uma parceria entre a ILGA e a Abraço que se traduziu na primeira tentativa de apurar o efeito da sida na população trans (1997).

Numa noite, num jantar bem regado, Gonçalo Diniz queixou-se de que não havia livrarias LGBT em Lisboa e Jó prometeu abrir uma. Ela e o companheiro

tinham comprado uma loja pensando no seu futuro. Ninguém parecia capaz de empregar mulheres trans. “Eu tinha de criar o meu próprio emprego.” Nunca trabalhara na área, mas o companheiro era um grande leitor e ela aprendia depressa. “Era uma forma de aprender e de ter um relacionamento de igual para igual com as pessoas.”

Situava-se numa zona muito frequentada pela comunidade LGBT, entre o Príncipe Real e o Bairro Alto. Chamou-lhe Esquina Cor de Rosa. Quando abriu, em 1999, que chamariz. “Víamos os mesmos carros a dar a volta ao quarteirão. Começámos a perceber que as pessoas tinham lido nos jornais que a livraria ia abrir e queriam ver se havia circo. Como perceberam que não havia, desistiram.”

Com a saída de Gonçalo Diniz, no final de 1999, deixou de ter espaço na ILGA. Incitada por Maria José Campos, em 2003 fundou a @t – Associação para o Estudo e Defesa dos Direitos à Identidade de Género. De certo modo, parece-lhe que aquela primeira tentativa de autonomizar o activismo trans foi “um aborto”. “Dei prevalência à temática das trabalhadoras do sexo trans, por serem, segundo os meus critérios, as mais desfavorecidas. E isso criou anticorpos. No meio activista, achavam que estava a dar uma má imagem às pessoas trans. Dizer que eu tinha sido trabalhadora do sexo era suficiente.”

A morte de Gisberta Salce, às mãos de um grupo de rapazes, no Porto, em 2006, foi o ponto de viragem. “Muito a custo, os movimentos associativos tomaram posição [sobre a realidade das pessoas trans]. No fundo, tiveram de pegar na temática das doenças, do trabalho sexual, e noutras que eram muito desconfortáveis para eles.”

Eventuais indiferenças ou más vontades não explicavam tudo. “É muito difícil e até ilegítimo para um movimento social que se quer representativo de realidades diversas pegar nos temas e trabalhá-los quando não há uma presença forte das próprias pessoas”, explica Sérgio Vitorino (n. 1973), das Panteras Rosa. “Havia uma sub-representação de pessoas trans. E uma superficialidade na compreensão das questões de género. Para muitos, nem havia distinção clara entre orientação sexual e identidade e género.”

As Panteras Rosa, herdeiras do GTH, assumiram essa luta ao lado de Jó e de outras pessoas trans. Delas faziam parte outras duas pioneiras, Lara Crespo (1971-2019) e Eduarda Santos. Denunciaram transfobia na sociedade em geral. Foram ao Parlamento. Internacionalizaram o caso. Houve manifestações em vários países. E o colectivo tornou-se berço de uma nova geração de activistas trans.

Gisberta era amiga de Jó. Trabalharam juntas “na mesma esquina”. Jó não gosta de falar da sua morte. Reconhece que desencadeou uma série de alterações legais positivas – da primeira lei da identidade de género (2011) à lei da autodeterminação de género (2018) –, mas recusa a necessidade de mártires. “Ela transformou-se em vítima para nos ajudar a nós? Que preço é este? Que preço é esse que nos temos de pagar?”

Havia receio de que fosse esquecida, como tantas outras vítimas de transfobia. Todavia, tornou-se um símbolo. A sua vida já deu um poema, uma canção, um livro, uma peça de teatro, um documentário, um documentário animado. Dá nome a um centro de atendimento e há-de dar nome a uma rua. “Não digo que se feche o capítulo Gisberta, mas eu acho que é preciso dar à Gisberta um tempo de repouso. É preciso deixá-la descansar. É preciso ir buscar os exemplos contrários. Tragam os bons exemplos cá para fora.” Compreende que haja quem recuse exposição pública, porque o preconceito continua aí. Chama a atenção para a importância de haver quem se sujeite a isso para que outras pessoas encontrem referências positivas. “Que referências temos de população trans que tenham vingado?”

Fabíola Cardoso
O reconhecimento da homoparentalidade

No que à orientação sexual diz respeito, a última grande fronteira era a da parentalidade. “É a que toca com os medos mais profundos da sociedade”, resume Fabíola Cardoso. “O abuso sexual continua em muitas cabeças associado à homossexualidade, embora a maior parte do abuso sexual seja cometido por pessoas de sexo diferente.”

Quando essa luta acendeu, em 2013, Fabíola estava com cancro. Tinha tido duas crianças com Ana Prata (n.1967), também ela fundadora do Clube Safo. A filha contava nove anos e o filho, 11. “Era ainda mais claro o quanto era importante haver um enquadramento legal, haver o reconhecimento daquela família perante a lei.”

Escreveu uma carta aos deputados a falar do seu caso. “Eu estava internada no hospital e a outra mãe dos meus filhos não existia legalmente. Se eu morresse, ficariam numa situação muito frágil.” Parecia-lhe que o seu caso mostrava bem quão urgente era mudar a lei, proteger famílias que já existiam, por via da inseminação artificial, fertilização in vitro ou através da adopção singular.

De casa, em Santarém, acompanharam o debate no Canal Parlamento. Quando a proposta foi chumbada, a filha ficou num pranto. “Queria ir a Lisboa explicar como era a família dela. Dizia que a outra mãe era a melhor mãe do mundo e que eles não sabiam e só por isso votavam assim.”

Quando o tema voltou à Assembleia da República, em 2015, a família discutiu a possibilidade de também as crianças darem a cara. “Foram várias conversas que tivemos. Pensámos nos prós e contras, nas vantagens e nas desvantagens. Explicámos a situação. Perguntámos o que achavam. Demos-lhes tempo para reflectir. Voltámos a conversar.” Acabaram por “contribuir para uma mudança que também era necessária na vida deles”, participando numa reportagem do Expresso.

Desta vez, havia maioria de esquerda no hemiciclo. Passou a lei que elimina as discriminações no acesso à adopção, apadrinhamento civil e demais relações jurídicas familiares (2016). E a família de Fabíola pôde iniciar o processo de co-adopção. Pouco mudava no quotidiano das crianças. Além do nome, a possibilidade da outra mãe faltar para lhes prestar assistência ou de com eles

viajar para o estrangeiro. Mas “foi muito emocional”. Havia decisões simbólicas a tomar. “Queres ter o nome da outra mãe? Em que posição?” “No dia da entrega dos documentos no tribunal, fomos a um fotógrafo, bem vestidinhos, com um ar direitinho, tirar uma fotografia para a história. Somos uma família e, finalmente, isso era reconhecido.”

“Portugal fez um caminho muito importante para construir uma sociedade mais justa”, avalia aquela professora de Ciências, que já foi eleita deputada nas listas do BE (2019-2022). “Estando nós muito longe da perfeição, nenhum outro movimento social conseguiu em 40 anos mudar tão profundamente as leis, a visão social e a realidade prática no dia-a-dia das pessoas.”

Sérgio Vitorino
A intervenção social como nova prioridade

A origem do movimento está ancorada na devoção de uma dúzia de pessoas, todas portuguesas, muitas oriundas das antigas colónias em África. Poucas se mantêm activas. Apenas Sérgio Vitorino prossegue na linha da frente.

Aproximou-se do Partido Socialista Revolucionário na luta estudantil contra as propinas (1991). Começou por colaborar com o GTH, assumiu-se dentro dele. Juntou-se-lhe (1993), tornou-se seu coordenador (1996) e por lá ficou até ao fim (2003). Ainda passou pelo efémero Grupo LGBT do Bloco de Esquerda e pelo Grupo de Intervenção Política da ILGA-Portugal antes de co-fundar as Panteras Rosa (2004).

As Panteras não desejavam ter compromissos partidários, como o GTH. Tão-pouco compromissos institucionais, como a ILGA-Portugal. Apresentavam-se como um grupo de acção directa com perspectiva radical. Chegaram a manchar com tinta vermelha a entrada do Instituto Português de Sangue (2005) e a encenar uma doação de sangue em frente ao Ministério da Saúde (2007).

Nenhuma luta do movimento por uma alteração legal demorou tanto tempo como aquela, que conotava a homossexualidade com a promiscuidade, atribuindo-lhe risco de sangue contaminado. Só em 2021 ser homossexual ou bissexual deixou de ser, de forma explícita, critério de exclusão de doares de sangue.

Não é nisso que pensa Sérgio quando se lhe pergunta o que destaca nos seus 30 anos de activismo. “Temos vidas curtas e o activismo é uma actividade de grande desgaste, sobretudo porque há determinados temas demasiado comuns, como o tema do suicídio, que me acompanhou a vida inteira.”

Tem havido gente a bater à sua porta num desespero que conhece muito bem. “Perdi recentemente alguns amigos importantes para o suicídio. Eu próprio fiz no final da adolescência uma tentativa de suicídio que, anos mais tarde, percebi estar relacionada com a dificuldade de vivenciar a minha orientação sexual.”

Sabe o que é bullying homofóbico – ainda nem compreendera quem era e já outros notavam em si algo diferente. Sabe o que é homofobia internalizada – quando se percebeu homossexual, só conhecia termos insultuosos para se nomear. Sabe o que é homofobia no emprego – “Isso é um assunto de

paneleiros; é para o paneleiro, ele que vá”, chegou a ouvir de um editor do jornal onde trabalhou. Teve uma carreira curta no jornalismo. Disseram-lhe que tinha de escolher. Tornou-se tradutor. A precariedade é um dos preços do seu activismo. Mesmo assim, não se desliga, não pode, não consegue. “Continuamos a encontrar não só situações de homofobia internalizada, mas também de grande violência sobre pessoas LGBT.”

A intolerância face à diferença continua a gerar perigo. “Vivo na margem Sul do Tejo. Todos os dias, quando entro no autocarro ou no comboio, tenho de voltar a entrar no armário, porque é arriscado não o fazer.” Afinou estratégias de sobrevivência. “Não respondo desagradado sempre que ouço alguma coisa muito homofóbica. Respondo sempre que me sinto fisicamente seguro, não necessariamente zangado.” A pedagogia segue sendo uma arma.

Olhando para trás, quem diria que Portugal chegaria a 2023 com um dos quadros legais mais vanguardistas que há? “Muitas das coisas que temos hoje antevi. Não achei que fosse tão rápido.” Dito isto, reconhece o risco de retrocesso e dá exemplos do que falta. “Durante 20 anos, andámos a combater aquilo que havia de discriminatório na legislação. Está muito por fazer em termos de legislação positiva.”

Tudo indica que a próxima revisão constitucional incluirá a identidade de género entre os factores de não discriminação. “Não basta fazer uma lei a dizer que as pessoas trans não podem ser discriminadas quando se sabe que há uma dificuldade extrema de acesso e permanência no mercado de trabalho. Que tal criar quotas na função pública para pessoas trans?”

Em seu entender, a prioridade do movimento, agora LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer/questionando, intersexuais, assexuais e outros), deverá ser a intervenção social. Nos picos da pandemia, os pedidos de socorro que chegavam à Marcha do Orgulho de Lisboa eram tantos – sobretudo de mulheres trans, muitas das quais imigrantes – que por vezes nem sabia para onde se havia de virar.

Se antes não existiam estruturas nem apoios, agora “uma parte do movimento consegue ter projectos de intervenção social”. Há a estrutura de acolhimento de emergência (2018) e o apartamento de autonomização (2021) para pessoas LGBT vítimas de violência doméstica, da Associação Plano i. Há o apartamento de autonomização para jovens LGBT da Casa Qui (2019). A sede da Opus Diversidade, que sempre acolheu pessoas em situação de vulnerabilidade, tornou-se casa de acolhimento temporário de emergência (2020). E nasceu a Casa T (2020), projecto de pessoas trans migrantes para pessoas trans migrantes. “Não quer dizer que seja esse o papel de todo o movimento”, sublinha. Agora, como antes, a educação e a acção política parecem-lhe fundamentais. Até porque se vão abrindo novas frentes.

Neste momento, os pioneiros estão a perceber que terão de provocar mudança nas respostas sociais se não quiserem ser empurrados para o armário na velhice. “A comunidade LGBT precisa de começar a cuidar de si própria”, diz Fabíola. “Temos de pensar em criar redes de partilha, de interajuda.” E de preservar a memória. Sérgio reuniu um arquivo do movimento. Jó anda a entrevistar amigas trans mais velhas. “A esperança de vida da maior parte das minhas colegas da minha geração na altura eram os 40 anos”, diz. Surpreende-a que estejam a envelhecer. “Surpreende-me eu própria estar viva. Tendo em consideração o meu percurso, o mais provável é que já tivesse sido assassinada.” Haverá algo mais significativo a dizer sobre o que se conquistou?

11.11.22

"Homofobia", abuso de poder e vinho do Porto que ficou. Pinho denuncia à PGR as buscas de que foi alvo

Gonçalo Teles, in TSF

"Afirmações homofóbicas", tentativas de "intimidação", agentes armados e "embaraçados" e garrafas de vinho do Porto que ficaram em casa, ao contrário de três desenhos "do cunhado". É numa carta com apenas quatro páginas, a que a TSF teve acesso, que o antigo ministro da Economia Manuel Pinho, atualmente em prisão domiciliária, conta a sua versão do que se passou há precisamente uma semana, quando a sua casa em Braga foi alvo de buscas no âmbito do caso EDP.

Numa missiva dirigida à procuradora-geral da República, Lucília Gago, datada de 6 de novembro, o ex-governante denuncia e acusa o procurador que dirigiu a operação de "homofobia" contra o "juiz que foi titular do processo até recentemente". É, nas palavras de Manuel Pinho - que também se queixa de intimidação -, a "ocorrência de longe mais grave" das registadas na memória do próprio a 3 de novembro.

"O senhor Procurador que presidiu à busca", escreve, fez "considerações homofóbicas relativamente a outros magistrados judiciais, especificamente ao juiz que foi titular do processo até recentemente. Disse ele, segundo tenho em memória, que as decisões daquele magistrado seriam 'resultado do seu traumatismo em ser homossexual'".

Mais: Manuel Pinho diz que o procurador é reincidente nestas afirmações. "Já tinham sido ditas nas primeiras buscas", revela, antes de as apelidar "considerações cavernícolas" feitas "com o maior à vontade", no que diz ser uma amostra da "convicção de quem as proferiu".

Na denúncia que envia a Lucília Gago, o antigo governante escreve que estas são considerações "absolutamente intoleráveis" e considera-as "criminosas".

"Espera-se de qualquer pessoa minimamente bem formada que respeite a orientação sexual dos outros. Não menos importante, a orientação sexual de cada um não pode ser utilizada para desqualificar alguém no exercício de funções, era mesmo o que faltava", argumenta, defendendo que ouvir de um procurador tais considerações face a um magistrado "significa que chegámos ao fundo do poço".

"Afirmações homofóbicas"

Respeitando o que diz ser a liberdade deste procurador de fazer "em privado as considerações que entender sobre o juiz anteriormente titular do processo", Pinho revela ainda - e diz que fica "mal" ao responsável pelas buscas - que foram feitas críticas à Polícia Judiciária, à Autoridade Tributária e às decisões do Tribunal da Relação. Foram até revelados, naquele dia, "factos desprestigiantes" que eram desconhecidos do ex-ministro.

9.9.21

Novas Batalhas. Racismo, homofobia, justiça climática, woke, doenças globais: as linhas da frente do século XXI

Ricardo Costa, João Luís Amorim, in Expresso

A ideia de que o Ocidente decreta o que está certo ou errado não nasceu no 11 de Setembro, mas teve ali um enorme impulso, com a polarização e a radicalização que emergiram de imediato. A diversidade sexual, a igualdade de género, o conceito de privilégio, as novas fronteiras do racismo e a forma de se olhar para a História ganharam espaço e força. Ouça o sétimo de oito episódios do podcast O Dia em que 


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29.1.21

Ainda há homossexuais impedidos de dar sangue

Sara Gerivaz, in JN

Há homens homossexuais que estão a ser impedidos de doar sangue, mas nem todos são barrados. Tudo depende da porta à qual vão bater.

O mais recente apelo do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) voltou a deixar a descoberto uma norma que abre espaço a diferentes interpretações, o que fez disparar as denúncias. O IPST confirma as queixas, mas garante que "não questiona a orientação sexual dos dadores" e que, em breve, serão conhecidas as conclusões de um grupo de trabalho, criado já em 2019, para discutir os critérios de doação de homossexuais. A Provedoria da Justiça também confirma a receção de queixas.

O problema persiste há vários anos e voltou a ser exposto pela ILGA. A associação de apoio à comunidade LGBTI constata que, sempre que há um apelo à doação de sangue, as denúncias aumentam e "os números não são residuais". De uma queixa de dois em dois meses, a ILGA passa a receber três denúncias por semana.

Bruno Gomes d"Almeida foi o impulsionador da mais recente discussão sobre o caso, após ter partilhado nas redes sociais a discriminação da qual foi alvo no último sábado. O arquiteto de 32 anos superou o "pânico de agulhas" e juntou-se à enorme fila no exterior do IPST, em Lisboa.

Depois de quatro horas à espera, preencheu um formulário sobre os eventuais comportamentos de risco e foi questionado por um técnico de saúde sobre "o número de parceiras sexuais". Bruno corrigiu: "não são parceiras, são parceiros". E a partir daí, a "bolha de privilégios" na qual pensava viver, rebentou. A resposta foi categórica. "Então não pode doar sangue".

NORMA É OMISSA, ADMITE IPST

Atónito, Bruno exigiu esclarecimentos e garante que, no IPST, explicaram-lhe que as "normas internas" ditam que "homens que fazem sexo com homens" tinham que estar em abstinência durante um ano. Situação que não está prevista na atual norma (ler perguntas e respostas nesta página). Bruno sentiu-se humilhado.

"O que estas pessoas fizeram foi pegar na minha orientação sexual e avaliá-la, por si só, como um comportamento de risco. É uma raiva enorme", desabafa ao JN.

Pedro Silva teve mais "sorte". Com 30 anos, o professor de dança é dador há mais de oito. Em Gondomar, nunca lhe foi negada a doação . Quando é questionado sobre as "companheiras", Pedro retifica para as "pessoas", sem nunca ter dito objetivamente que se relacionava com homens. Os profissionais de saúde nunca insistiram. "A discriminação vem de quem atende as pessoas".

"Há uma grande arbitrariedade e discricionariedade que não é compatível com um Estado de direito democrático e respeitador dos direitos humanos", acusa Marta Ramos. A diretora-executiva da ILGA afirma que a dualidade de critérios acontece porque não há "uma clarificação da norma, que leva não só a dúvidas de interpretação como a práticas diferenciadas no terreno". Ao JN, o IPST sublinha que "a norma é omissa" em relação ao período de suspensão para "homens que têm sexo com outros homens" e reconhece que "necessita de clarificação". As queixas que chegam ao instituto são esclarecidas internamente e os reclamantes informados.


Perguntas e Respostas

Qual é a norma que regula a dádiva de sangue em Portugal?

A norma da Direção-Geral da Saúde 09/2016 e atualizada em fevereiro de 2017 permitiu que, pela primeira vez, homossexuais pudessem doar sangue. Não tem referência à expressão "homens que fazem sexo com homens". O Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) garante que "todo e qualquer cidadão pode candidatar-se a dar sangue, sem quaisquer diferenças de género ou orientação sexual". É um critério internacional.

Quem é que está impedido?

Estão impedidos os parceiros de indivíduos portadores de VIH e pessoas que tiveram contacto sexual com indivíduos com risco infecioso acrescido nos últimos 12 meses ou, ainda, pessoas com novo contacto ou novo parceiro sexual nos últimos seis meses.

Qual é a razão da discordância?

A norma não discrimina, mas ficou dependente de um estudo para clarificar critérios de suspensão. Criado em 2019, o grupo de trabalho é constituído pelo IPST, Instituto Ricardo Jorge, Direção Geral de Saúde e ILGA, mas está parado. IPST diz que clarificação será conhecida "em breve".

Face às reclamações de dadores, houve alguma tomada de posição pública?

Sim, 447 pessoas assinaram uma petição criada esta semana, após as denúncias que viralizaram nas redes sociais. Também o PAN e o JS defenderam, esta semana, a eliminação da discriminação.

3.12.20

Quase 80% dos jovens já assistiu a “bullying” homo-bi-transfóbico, diz estudo

in Público on-line

Rede Ex Aequo revelou que 79% dos jovens já assistiu a episódios de “bullying” homo-bi-transfóbico e 86% considera importante abordar aquelas questões na escola. Conclusões espelham resultado de 162 sessões de esclarecimento.

A rede Ex Aequo revelou esta terça-feira que 79% dos jovens já assistiu a episódios de “bullying” homo-bi-transfóbico e 86% considera importante abordar aquelas questões na escola, segundo os dados do Relatório do Projecto Educação LGBTI 2019.

As principais conclusões do relatório foram divulgadas em comunicado e espelham o resultado das 162 sessões de esclarecimento realizadas em escolas básicas, secundárias, universidades e outros contextos, no âmbito daquele projecto.

A associação recolheu respostas de 1.070 jovens e concluiu que 79% dos inquiridos já assistiu a episódios de “bullying” homo-bi-transfóbico, 86% considerou importante abordar as questões LGBTI (acrónimo para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo) na escola.

Daquele grupo, 68% referiu que a temática, ou “não é” ou "muito raramente é” abordada na escola e apenas 1% disse não achar importante abordar questões LGBTI em aula. Foi também disponibilizado um formulário a docentes e não docentes, tendo sido recolhidas 27 respostas sobre as suas dificuldades relativas a questões de identidade e expressão de género, orientação sexual e características sexuais.

Deste segundo grupo, 96% indicou que sente que aquelas sessões de esclarecimento ajudam a diminuir as situações de discriminação e 52% considerou que o sistema educativo não é inclusivo relativamente a questões LGBTI.

Os dados indicam ainda que 67% reconheceu necessitar de formação sobre estas temáticas e 30% admitiu não se sentir capaz de reagir a situações de discriminação homo-bi-transfóbica.

Homofobia dentro das escolas na base da maioria das denúncias recebidas pela ex aequo

Sessões em 18 distritos

O Projecto Educação LGBTI existe desde 2005 e consiste na realização de sessões de esclarecimento e debate sobre questões de identidade e expressão de género, orientação sexual e características sexuais, através de educação não-formal e entre pares.

No ano de 2019, foram realizadas 162 sessões que abrangeram nove dos 18 distritos de Portugal Continental e Região Autónoma da Madeira, chegando a 4.843 jovens.

“Comparando os dados com os dados do relatório anterior, algumas diferenças prendem-se com o aumento significativo de relatos de episódios homo-bi-transfóbicos por alunos, assim como maior reconhecimento da necessidade de abordar esta temática nas escolas”, apontou a Ex Aequo.

A associação considerou que os dados recolhidos “demonstram a importância da intervenção do Projecto Educação LGBTI nas escolas como uma componente da educação para a cidadania e educação para a sexualidade”, uma vez que refletecm “uma falta de preparação sentida por parte de docentes”.

“As respostas indicam uma grande incidência de situações de discriminação homo-bi-trans-interfóbica em contexto escolar, uma abordagem insuficiente de assuntos LGBTI em aula e uma vontade por parte do corpo estudantil para que esta aconteça”, resumiu.

A associação aproveitou ainda para se congratular pelo apoio que docentes e profissionais de psicologia escolar têm demonstrado à realização daquelas sessões como forma de combate a situações de discriminação.

A rede Ex Aequo é uma associação de jovens LGBTI e apoiantes que, desde a sua criação, em 2003, procura dar resposta à necessidade de apoiar aqueles jovens face ao “bullying”, isolamento, violência e abandono a que muitos tendem a ser sujeitos.

13.11.19

Eurobarómetro. 42% dos portugueses ficariam desconfortáveis se um dos seus filhos estivesse numa relação gay

in o Observador

42% dos portugueses ficariam totalmente desconfortáveis se um dos seus filhos tivesse uma relação amorosa com alguém do mesmo sexo, mas 57% estão confortáveis com hipótese de ter um presidente gay.

Mais de 40% dos portugueses admitem que se sentiriam totalmente desconfortáveis no caso de um dos seus filhos ter uma relação amorosa com alguém do mesmo sexo. Os dados são revelados pelo último estudo de opinião do Eurobarómetro sobre discriminação na União Europeia, citados pelo Correio da Manhã.
Próximos destes valores, para os portugueses só se encontra o desconforto de ver um filho a assumir uma relação íntima com alguém de etnia cigana (39%) ou com um muçulmano (34%).

Ainda que, segundo o último Eurobarómetro, a sociedade europeia esteja a tornar-se mais tolerante, a maioria dos europeus acredita que a discriminação é uma coisa comum, sendo que 67% dos portugueses reconhecem que a discriminação em função da etnia está profundamente generalizada no país.

A percentagem sobe ainda mais quando se fala de tolerância em relação à orientação sexual: nestes casos, 71% dos portugueses acreditam que há discriminação no nosso país. Em relação ao local de trabalho, 17% dos inquiridos dizem sentir-se totalmente desconfortáveis em trabalhar com alguém de etnia cigana, 15% em partilhar o local de trabalho com um muçulmano e há também quem diga sentir-se desconfortável em ter um colega com uma orientação sexual diferente da sua (11%).

Já mais de metade dos portugueses (57%) admite estar totalmente confortável com a hipótese de ter um gay, lésbica ou bissexual a assumir o cargo de Presidente da República.
O Eurobarómetro fez mais de 27 mil entrevistas nos 28 Estados-Membros, cerca de mil eram portugueses.

15.1.19

Como o fascismo e a homofobia ainda nos obrigam a premiar quem faz a diferença

in TSF

A democracia vive dias difíceis, mas continua a ser "o melhor dos regimes". A convicção partilhada por políticos e por quem esteve na cerimónia de entrega dos prémios ILGA Portugal ganha uma importância ainda maior, numa altura em que é evidente o crescimento de movimentos populistas, um pouco por todo o mundo.

"Não dá para sermos cinzentos. Temos que ser claros." O sentido de urgência com que a deputada Isabel Moreira pronuncia estas palavras tem tudo a ver com o momento que muitas democracias atravessam. Se há ano em que os prémios Arco-Íris entregues pela ILGA fazem sentido, este é definitivamente um deles.

O estúdio da Time Out, em Lisboa, não foi apenas pequeno para acolher as pessoas que assistiram a esta 16ª edição dos Prémios Arco-Íris. Foi igualmente acanhado para as preocupações com os crescentes movimentos populistas pelo mundo e com as ameaças que representam a ascensão ao poder de Donald Trump, nos Estados Unidos ou, mais recentemente, de Jair Bolsonaro, no Brasil.

A deputada socialista Isabel Moreira olha para a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil como "mais um caso da História de como um fascista pode ser eleito." Isabel Moreira lembra que o novo presidente do Brasil "representa um ódio à democracia" para além de ser "uma pessoa misógina, homofóbica, com horror às minorias, aos negros."

A deputada defende que "deve haver um movimento internacional da defesa da democracia. Isto não tem apenas a ver com o Brasil ou com os Estados Unidos ou com os países onde a extrema-direita está a crescer. Tem a ver com uma decisão de cada um de nós."

Rita Rato, do PCP, alinha pelo mesmo discurso: "Não podemos branquear o fascismo." A deputada comunista lembra os "dias difíceis que a democracia vive", mas não se esquece nunca de sublinhar que, ainda assim, este "é o melhor dos regimes. Não é por a democracia estar com uma saúde debilitada que a alternativa é o fascismo", sublinha. "Não se pode dizer num dia que é preciso combater os populismos e no dia a seguir estar a naturalizar o fascismo. Esse é um exercício hipócrita", acrescenta a deputada do PCP.

Isabel Moreira tem mais um ponto a acrescentar à discussão: "Não temos que pedir desculpa pela democracia. Não é por haver movimentos populistas e fascistas que nós temos que pedir desculpa pela democracia e pela conquista dos direitos das minorias, que é aquilo que estamos a celebrar hoje aqui".

Como a política e os políticos podem fazer a diferença
Em 2018, Teresa Leal Coelho foi notícia por ter declarado "objeção de consciência" na forma como votou a aprovação da nova lei para a alteração do género no registo civil. Contra o seu próprio partido e ao lado do PS, BE, PCP, PEV e PAN. A decisão valeu-lhe o prémio da ILGA, este sábado. A deputada social-democrata garante que não se revê "nos projetos políticos que condicionam o exercício da liberdade e da igualdade" e que defenderá sempre "as pessoas que são discriminadas pelas suas opções."

Além de Teresa Leal Coelho, foram distinguidos outros dois políticos: Adolfo Mesquita Nunes, vice-presidente do CDS (ausente na cerimónia), que assumiu a sua homossexualidade, e ainda Sandra Cunha, do Bloco de Esquerda.

"Quando é que já não é preciso valorizar quem faz a diferença?"
Rita Ferro Rodrigues, que apresentou a gala pelo terceiro ano consecutivo, diz que gostava de deixar de o fazer, um dia. Era bom sinal: "Eu adoraria dizer que já não são necessários prémios como estes. Todos os anos penso: "quando é que já não é preciso valorizar quem faz a diferença, lutando pelo direito à diferença?" Infelizmente, ainda é preciso e os últimos acontecimentos mostram-no. Mas isto, hoje, é uma celebração, uma festa de todos aqueles que acreditam que, para sermos felizes, temos o direito a sermos quem somos. É tão simples".

Mas não é. Que o diga Rui Maria Pêgo, o outro apresentador da noite, que já sentiu a homofobia na pele. "Temos que estar atentos e vigilantes. O ódio tem espaço para crescer, tem bolhas que lhe dão espaço para que ele se torne ainda maior, mas, felizmente, há sempre pessoas que sabem aquilo que é certo. Eu acredito que há muita gente que está disponível para não ficar calada e às vezes até pagar preços altos por isso. Somos nós, no dia-a-dia, que podemos fazer a diferença, que podemos não fomentar a homofobia, não alimentar o ódio", salienta.

E se é certo que, em Portugal, já se fez muito nesse sentido, há ainda outra tanto a fazer. "Conseguimos que a lei nos reconheça como cidadãos e cidadãs de primeira, mas falta tudo o resto, ou seja, falta o trabalho social, para que a vida em sociedade reflita o espírito da lei. Basta pensar que é muito raro vermos manifestações de afeto, na rua, entre pessoas do mesmo sexo. Estamos a falar de um milhão de pessoas que, de cada vez que saem à rua, deixam de ser quem são", refere Nuno Pinto, presidente da ILGA.

Na 16ª edição dos prémios Arco-Íris, a ILGA Portugal entregou ainda troféus à RTP, à APAV, à jornalista Carolina Reis, ao atleta olímpico Célio Dias, ao casal Gabriela Sobral e Inês Herédia e a cinco partidos com assento parlamentar, nomeadamente o PS, o BE, o PCP, o PEV e o PAN. Foi igualmente premiado o documentário "Até que o Porno nos Separe", de Jorge Pelicano. Este prémio é atribuído pela AMPLOS - Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género.

Portugal é candidato a receber o Europride, o maior evento LGBTI da Europa que todos os anos decorre numa cidade europeia. Entre conferências, concertos e uma Marcha Pride, para celebrar o orgulho LGBTI (Lésbico, Gay, Bissexual, Transexual e Intersexual), Portugal quer receber a edição de 2022.

16.6.16

Hotel que não admitia "lésbicas e gays" obrigado a apagar aviso

Fernanda Câncio, in Diário de Notícias

Discriminação. Alertada por notícia do DN, ASAE agiu logo no dia seguinte. Proprietário foi notificado para retirar de sites o aviso de que não admitia "gays e lésbicas" e foi alvo de contraordenação. Multa pode chegar a 32.500 euros

"Caso se encontre numa das quatro situações abaixo indicadas, queira fazer o favor de não prosseguir com a sua reserva, sob pena de ser vedada a admissão às nossas instalações: adeptos de futebol; frequentadores/adeptos de festivais de música de verão; gays e lésbicas; consumidores de estupefacientes e quaisquer substâncias psicotrópicas." Este aviso, patente nos sites da Casa D"João Enes e outros alojamentos turísticos em Afife, Minho, foi esta semana apagado por ordem da ASAE, que instaurou um processo de contraordenação aos proprietários. O processo surgiu na sequência de uma notícia do DN, publicada a 5 de junho como título "Hotel no Minho veda entrada a gays e lésbicas".

A ASAE, de acordo com informação prestada ao DN, terá desencadeado logo a 6 de junho uma ação de fiscalização que passou pela verificação da existência do dito aviso e pela vistoria dos alojamentos em causa. Além da violação, consubstanciada no aviso, do princípio legal do livre acesso aos estabelecimentos turísticos, foram detetadas duas outras, "relativas à manutenção dos extintores e à resolução alternativa de litígios."

Foi instaurado um processo de contraordenção que pode resultar, no caso de a propriedade dos alojamentos ser de pessoa singular, numa coima entre 125 e 3.250 euros, e caso seja pessoa coletiva, entre 1250 e 32500 euros. Correm agora os prazos para a defesa. E caso os responsáveis pelos estabelecimentos não queiram acatar a decisão da ASAE podem depois recorrer da decisão administrativa para os tribunais.

Que tenciona alegar Paulo Bandeira, gestor dos alojamentos em causa e proprietário de três deles, em sua defesa não foi possível saber: "Vamos fazer um comunicado mas não o enviamos ao Diário de Notícias de certeza."

No contacto anterior, efetuado para a elaboração da primeira notícia, Bandeira, que se idenficou como "consultor de empresas", assumiu que as "regras de acesso ao serviço" colocadas nos sites eram "políticas de reserva de que normalmente os proprietários não abdicam", negando que tivessem a ver com preconceitos. Confrontado com o facto de a Constituição interditar a discriminação com base na orientação sexual, retorquiu: "Sou dono dos estabelecimentos e sou eu que defino quem é o cliente que quero, e quem quero excluir e incluir. Se quero altos ou magros, gordos ou baixos."

Apesar de a Constituição interditar a discriminação com base na orientação sexual, não existe uma lei que, à imagem do que sucede com a discriminação racial, de género e por deficiência, permita punir a violação do preceito constitucional. Uma falta que a secretária de Estado da Igualdade, Catarina Marcelino, admitiu ao DN, lembrando que está no programa do governo a elaboração de uma lei "multidiscriminações", como as existentes no Reino Unido e na Alemanha. Adiantou no entanto que no seu entender a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género tem competência para agir. A 7 de junho, o BE apresentou queixa à CIG sobre a situação em causa, tendo também, no mesmo dia, dirigido à ASAE e ao Turismo do Norte um conjunto de perguntas. Até agora, a CIG nãoprestou qualquer esclarecimento sobre o caso.

No sítio do aviso apagado lê-se agora: "Nos termos da legislação aplicável, o acesso a este espaço é livre."

15.12.14

"Temos direito de andar na rua sem medo"

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Jovem de 28 anos julga que foi agredida por taxista no Porto por ter sido percepcionada como lésbica. Caso está a gerar onda de indignação entre activistas LGBT.

Activistas dos movimentos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgénero) estão a mobilizar-se contra o que acreditam ser um crime de ódio: uma jovem, de 28 anos, diz ter sido agredida por um taxista depois de se ter despedido de uma amiga com um beijo na boca.

“Acho que foi por causa do beijo, não tenho outra explicação para o que aconteceu”, conta Sara Vasconcelos. “Foi surreal. Ele não dizia uma palavra. Só se ria enquanto me agredia.” E ela quer denunciar isso bem alto. “Não quero que mais ninguém passe por uma situação destas. Temos direito de andar na rua sem medo.”

No último domingo à noite, saiu do bar no qual trabalha e foi tomar um copo. Seriam umas 7h30, talvez 7h40, quando entrou no primeiro táxi estacionado na Praça da República, no Porto. Estava a falar ao telemóvel. A colega que a acompanhava disse-lhe o quanto gosta dela e ela respondeu-lhe com um beijo na boca.

Fechou a porta do táxi sem desligar o telemóvel. Não sabia precisar para que rua ia. Disse ao taxista que seguisse até à Ponte do Infante, que depois lhe indicaria o caminho. A rua, cujo nome lhe escapava, ficava logo à direita. O homem, que aparentaria ter entre 35 e 40 anos, não arrancou. Quando ela se apercebeu disso, questionou-o. E ele ter-lhe-á dito que ela não lhe indicara o destino. Ela ter-lhe-á repetido que seguisse, que depois lhe explicaria o caminho, e ele ter-lhe-á ordenado que saísse.

Sara estranhou. Quis saber por que estava ele a agir daquela forma. Enquanto guardava o telemóvel e pegava no saco, o homem saiu. “Eu ia a sair, tinha a mão na maçaneta, uma perna na rua, ele deu-me um soco”, conta. “Eu fui até à frente do carro para anotar o número, disse-lhe que ia fazer queixa dele e ele deu-me socos, pontapés. Eu caí no chão. Ele puxou-me pelos pés e arrastou-me, em círculos, uns metros. Deixou-me na estrada.”

Na praça, como se nada fosse, continuariam outros dois taxistas. Socorreu-a uma equipa do Instituto Nacional de Emergência Médica, que a conduziu ao Hospital Geral de Santo António. Não retornou a casa sem antes passar por uma esquadra da PSP e pelo Instituto de Medicina legal.

Volvida uma semana, ainda tem um hematoma no rosto, dores nas costas, no pescoço, nas pernas. O médico recomendou-lhe seis a oito semanas de repouso. Não se penteia. Desloca-se de muletas — terá uma ruptura muscular na perna direita. Nem lhe falem em entrar num táxi.

Como responder?
É grande a indignação entre activistas LGBT. Diversas possibilidades estiveram este sábado em cima da mesa: organizar um “beijaço”; instar as organizações profissionais a assumirem uma posição; pressionar o Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), que atribui o certificado de aptidão profissional, a tomar uma atitude. Para já, decidiram fazer uma acção de sensibilização na próxima terça-feira à noite na Praça da República.

Não lhes parece um mero crime de ofensa à integridade física. Por lei, “são susceptíveis de revelar especial censurabilidade ou perversidade” os crimes motivados por “ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima”.

"O país mudou em grande medida", reconhece Sérgio Vitorino, da associação Panteras Rosa. "Existem avanços legislativos, temos uma sociedade mais aberta, mas a homofobia continua a existir fora dos meios relativamente privilegiados das grandes cidades."

Houve reunião este sábado na Rádio Táxi. O episódio põe em causa o bom nome da central, diz Abílio Gomes, presidente da Rádio Táxi. “Vamos chamar o dono do táxi. Temos de perceber o que aconteceu. Toda a agressão, seja verbal ou física, é inaceitável.” Pode ser suspenso até 90 dias, ao fim dos quais se decidirá em assembleia se é ou não expulso. Se mantém ou se é suspensa a licença para conduzir táxi, caberá ao IMT dizer.

16.5.14

Observatório da Discriminação recebeu 112 denúncias

por Lusa, texto publicado por Paula Mourato, in Diário de Notícias

O Observatório da Discriminação da ILGA Portugal recebeu em 2013 um total de 112 denúncias de crimes motivados pelo ódio, num total de 258 participações tanto por parte de vítimas como de testemunhas.

O Observatório da Discriminação em função da Orientação Sexual e Identidade de Género arrancou em 2013 com vista a monitorizar e denunciar crimes e incidentes motivados pelo ódio contra pessoas homossexuais, bissexuais ou transgénero e divulga agora o seu primeiro relatório.

Os dados dizem respeito a factos ocorridos entre 01 de janeiro e 31 de outubro, período durante o qual 164 pessoas, através de questionário online ou diretamente nos serviços da ILGA, denunciaram situações ocorridas com elas próprias ou de que foram testemunhas.

Segundo os dados do Observatório, a que a Lusa teve acesso, foram recolhidos 164 questionários válidos, sendo que o tipo de crime e/ou incidente mais frequentemente cometido contra pessoas LGBT (Lésbicas, Gay, Bissexuais e Transgénero) em Portugal são insultos e abusos verbais (123 denúncias), seguindo-se as ameaças e violência psicológica (69) e a violência física extrema (37).

Como os formulários permitiam a escolha de mais do que um tipo de crime/incidente, o Observatório recebeu 258 denúncias, 112 das quais que "muito claramente constituem crimes motivados pelo ódio", segundo as definições da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).

Em declarações à agência Lusa, o presidente da ILGA Portugal apontou que os 112 casos de crimes motivados pelo ódio representam "um número muito elevado" e apontou que na sua maioria são mulheres.

No entanto, um dos dados que Paulo Corte-Real mais destaca é a elevada percentagem de pessoas (96%) que não apresentaram queixa junto das autoridades competentes.

"Há várias razões para isso: desde o medo de represálias até à falta de provas ou a falta de coragem ou alguma vergonha", apontou, acrescentando que estas pessoas não confiam no Estado para as proteger e não confiam na justiça.

O dirigente apontou que os dados do Observatório mostram que houve situações de recusa no acesso a bens e serviços, o que o leva a pedir que haja mais formação de uma forma geral e nos serviços que o Estado disponibiliza, entre segurança, saúde, justiça ou segurança social.

Lembrou, a propósito, o "péssimo exemplo" dado por parte do Parlamento nacional quando chumbou a proposta relativa à coadoção, defendendo que "teve um impacto negativo em termos de legitimação da discriminação e legitimação de acidentes violentos".

Relativamente ao grau de abertura da vítima face à sua orientação sexual, Paulo Corte-Real destacou que só cerca de 16% contou no local de trabalho e pouco mais de 20% contou a toda a família.

"Há claramente uma experiência de discriminação, que é a experiência do silêncio que impede o pleno usufruto de direitos", sendo que a experiência do silêncio "bloqueia a luta pela integração, nomeadamente a discriminação no local de trabalho", defendeu.

A 17 de maio assinala-se o Dia Internacional de Luta contra a Homofobia.

17.3.14

Homofobia pode custar milhares de milhões de euros

in TSF

A discriminação e exclusão de lésbicas, gays, bissexuais e transgéneros pode ter custos económicos de milhares de milhões de euros, segundo os resultados preliminares de um estudo promovido pelo Banco Mundial.

Os resultados da pesquisa, que escolheu a Índia como caso de estudo, foram debatidos por um painel de especialistas, organizado pelo Banco Mundial esta semana, numa altura em que vários países estão a reforçar legislação sobre orientação sexual que reprime as minorias sexuais.

Na Índia, onde o comportamento homossexual é criminalizado e não existe legislação que proteja os direitos das minorias sexuais, os custos económicos da homofobia podem chegar aos 22 mil milhões de euros, segundo as estimativas preliminares, apresentadas pela economista Lee Badgett.

A discriminação laboral relacionada com a orientação sexual de trabalhadores e trabalhadoras resulta em perda de produtividade e de capacidade de desempenho, revela a pesquisa, que refere ainda que a exclusão das minorias sexuais tem custos significativos para os serviços sociais e de saúde.

O objetivo do Banco Mundial com este estudo é «medir o custo de excluir as minorias sexuais», tendo os especialistas salientado a necessidade de coligir mais dados sobre o impacto no desenvolvimento da discriminação com base na orientação sexual.