29.1.21

Ainda há homossexuais impedidos de dar sangue

Sara Gerivaz, in JN

Há homens homossexuais que estão a ser impedidos de doar sangue, mas nem todos são barrados. Tudo depende da porta à qual vão bater.

O mais recente apelo do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) voltou a deixar a descoberto uma norma que abre espaço a diferentes interpretações, o que fez disparar as denúncias. O IPST confirma as queixas, mas garante que "não questiona a orientação sexual dos dadores" e que, em breve, serão conhecidas as conclusões de um grupo de trabalho, criado já em 2019, para discutir os critérios de doação de homossexuais. A Provedoria da Justiça também confirma a receção de queixas.

O problema persiste há vários anos e voltou a ser exposto pela ILGA. A associação de apoio à comunidade LGBTI constata que, sempre que há um apelo à doação de sangue, as denúncias aumentam e "os números não são residuais". De uma queixa de dois em dois meses, a ILGA passa a receber três denúncias por semana.

Bruno Gomes d"Almeida foi o impulsionador da mais recente discussão sobre o caso, após ter partilhado nas redes sociais a discriminação da qual foi alvo no último sábado. O arquiteto de 32 anos superou o "pânico de agulhas" e juntou-se à enorme fila no exterior do IPST, em Lisboa.

Depois de quatro horas à espera, preencheu um formulário sobre os eventuais comportamentos de risco e foi questionado por um técnico de saúde sobre "o número de parceiras sexuais". Bruno corrigiu: "não são parceiras, são parceiros". E a partir daí, a "bolha de privilégios" na qual pensava viver, rebentou. A resposta foi categórica. "Então não pode doar sangue".

NORMA É OMISSA, ADMITE IPST

Atónito, Bruno exigiu esclarecimentos e garante que, no IPST, explicaram-lhe que as "normas internas" ditam que "homens que fazem sexo com homens" tinham que estar em abstinência durante um ano. Situação que não está prevista na atual norma (ler perguntas e respostas nesta página). Bruno sentiu-se humilhado.

"O que estas pessoas fizeram foi pegar na minha orientação sexual e avaliá-la, por si só, como um comportamento de risco. É uma raiva enorme", desabafa ao JN.

Pedro Silva teve mais "sorte". Com 30 anos, o professor de dança é dador há mais de oito. Em Gondomar, nunca lhe foi negada a doação . Quando é questionado sobre as "companheiras", Pedro retifica para as "pessoas", sem nunca ter dito objetivamente que se relacionava com homens. Os profissionais de saúde nunca insistiram. "A discriminação vem de quem atende as pessoas".

"Há uma grande arbitrariedade e discricionariedade que não é compatível com um Estado de direito democrático e respeitador dos direitos humanos", acusa Marta Ramos. A diretora-executiva da ILGA afirma que a dualidade de critérios acontece porque não há "uma clarificação da norma, que leva não só a dúvidas de interpretação como a práticas diferenciadas no terreno". Ao JN, o IPST sublinha que "a norma é omissa" em relação ao período de suspensão para "homens que têm sexo com outros homens" e reconhece que "necessita de clarificação". As queixas que chegam ao instituto são esclarecidas internamente e os reclamantes informados.


Perguntas e Respostas

Qual é a norma que regula a dádiva de sangue em Portugal?

A norma da Direção-Geral da Saúde 09/2016 e atualizada em fevereiro de 2017 permitiu que, pela primeira vez, homossexuais pudessem doar sangue. Não tem referência à expressão "homens que fazem sexo com homens". O Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST) garante que "todo e qualquer cidadão pode candidatar-se a dar sangue, sem quaisquer diferenças de género ou orientação sexual". É um critério internacional.

Quem é que está impedido?

Estão impedidos os parceiros de indivíduos portadores de VIH e pessoas que tiveram contacto sexual com indivíduos com risco infecioso acrescido nos últimos 12 meses ou, ainda, pessoas com novo contacto ou novo parceiro sexual nos últimos seis meses.

Qual é a razão da discordância?

A norma não discrimina, mas ficou dependente de um estudo para clarificar critérios de suspensão. Criado em 2019, o grupo de trabalho é constituído pelo IPST, Instituto Ricardo Jorge, Direção Geral de Saúde e ILGA, mas está parado. IPST diz que clarificação será conhecida "em breve".

Face às reclamações de dadores, houve alguma tomada de posição pública?

Sim, 447 pessoas assinaram uma petição criada esta semana, após as denúncias que viralizaram nas redes sociais. Também o PAN e o JS defenderam, esta semana, a eliminação da discriminação.