27.1.21

Câmara de Castro Verde alvo de queixa por divulgar testes à covid-19 e por querer confinar comunidade cigana

Joana Gorjão Henriques, in Público on-line

Publicação da autarquia revelou quantas pessoas de etnia cigana tinham tido resultado positivo a teste covid e onde moravam. Associações fizeram queixa. Câmara diz que pretendeu esclarecer e foi mal interpretada. Secretária de Estado para a Integração não vê “razão para crer que possa ter havido qualquer intento discriminatório” mas critica divulgação de testes.



A Câmara Municipal de Castro Verde publicou no Facebook uma notícia sobre o número de pessoas da comunidade cigana infectadas com covid-19 e o bairro onde habitavam, anunciando que iria estabelecer um plano para “assegurar a fiscalização” do seu “rigoroso confinamento” com a GNR e a Protecção Civil.

O anúncio pela autarquia socialista liderada por António José de Brito foi entretanto apagado do Facebook depois de inúmeros protestos. Mas já foi feita queixa junto de várias entidades como a Comissão para a Igualdade e contra Discriminação Racial por Bruno Gonçalves, da associação Letras Nómadas, que contactou ainda a Secretaria de Estado para a Integração e as Migrações e o Alto Comissariado para as Migrações.

“A câmara não pode anunciar resultados de testes de ninguém, toda a gente sabe que é ilegal. É inexplicável que haja necessidade de confinar 17 pessoas em 145”, comenta Bruno Gonçalves. “Estamos a falar de uma pequena vila em que as autoridades poderiam vigiar facilmente quem furasse o confinamento. A câmara vai ter de responder.”

De manhã, Bruno Gonçalves recebeu a informação de que o bairro estava cercado por quatro carros da GNR desde terça-feira: “Ninguém entra nem sai e a alimentação é facultada pelo município. Estão a viver ali 15 famílias, cerca de 50 pessoas.” À tarde, o activista disse ao PÚBLICO que a GNR já não se encontrava à entrada do bairro.

Prudêncio Canhoto, mediador cigano e presidente da Associação dos Mediadores Ciganos de Portugal que tem estado em contacto com os ciganos de Castro Verde, comentou, por outro lado: “Pode-se acompanhar as pessoas mas não fazer um cerco. Porque não fazem o cerco a outras pessoas? Isso é discriminação”, diz ao PÚBLICO.

Contactado pelo PÚBLICO, o presidente da autarquia não quis responder às queixas que lhe foram dirigidas e remeteu para o gabinete de comunicação.

Em comunicado, aquele gabinete afirma que nos últimos dias foi localizado o primeiro surto no referido bairro e que a autarquia “procurou informar e esclarecer com transparência a população, para desmistificar rumores e transmitir tranquilidade, sempre no estrito respeito da privacidade e da preservação da identidade”. Adianta que, tendo a GNR registado diversas ocorrências de incumprimento do dever de confinamento, “accionou um plano de resposta” para assistir as famílias. Fez a publicação no Facebook, mas eliminou-a por verificar que “não estava a atingir o objectivo de esclarecimento pretendido”. E porque “as reacções e as interpretações a esta comunicação foram, nalguns casos, expressas em comentários atentatórios da dignidade dos cidadãos”, esta foi eliminada.

A autarquia disse que “tem para com a comunidade de etnia cigana residente no concelho de Castro Verde o mesmo respeito e consideração que lhe merecem todos os cidadãos”. Mas não esclareceu porque é que se referiu apenas aos 17 casos na comunidade cigana em concreto, não explicou porque fez a divulgação do bairro onde moravam, nem disse que medidas adoptou em relação aos restantes 128 casos confirmados do dia. Também omite no email enviado o facto de ter anunciado um plano de “rigoroso confinamento” da comunidade, ficando por explicar se decretou ou não cerca sanitária. À Letras Nómadas disse que essa não tinha sido a sua intenção, conta Bruno Gonçalves e que se tratou de “um erro de comunicação”.

Por outro lado, a GNR afirmou à Lusa que estava a fazer um “patrulhamento normal” ao referido bairro: “Não existe qualquer cerca sanitária decretada pela Autoridade de Saúde e, não existindo, não vamos estar permanentemente, ao contrário do que afirmou a câmara, a fiscalizar a entrada e saída daquela comunidade”, assinalou fonte do Comando Territorial de Beja da GNR.

Ao PÚBLICO o gabinete da secretária de Estado, Cláudia Pereira, afrimou que quando soube da notícia actuou de imediato por “repudiar qualquer possibilidade de confinamento étnico” e falou com o autarca que lhe deu justificações idênticas às que escreveu no comunicado enviado aos media. "Neste momento não há qualquer razão para crer que possa ter havido qualquer intento discriminatório por parte da Câmara Municipal”, afirmou o gabinete de Cláudia Pereira. Refere, porém, que no post do Facebook não foi “tomado em atenção que a identificação da comunidade em apreço, através de nomes, moradas ou grupo étnico, é geradora de sentimentos de discriminação em relação a uma população em particular, logo, inaceitável”.

Entretanto, Bruno Gonçalves falou com o presidente da câmara e disse que o autarca se comprometeu a pensar em políticas que possam criar melhor dignidade para as comunidades ciganas, com o ACM e associações.

“Medida de segregação étnica”

Na noite de terça-feira a organização SOS Racismo emitiu um comunicado a exigir que a autarquia “revogue de imediato” a decisão e a pedir que o Ministério Público, o Governo e a CICDR denunciem e punam “a medida de segregação étnica”.

O SOS Racismo defende ao PÚBLICO que a informação publicada pela autarquia viola o Artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece que todos “os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” e que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência”. Refere que a autarquia violou a lei de protecção de dados (679/2016) que estabelece que é “proibido o tratamento de dados pessoais que revelem a origem racial ou étnica”, e “dados relativos à saúde” — não só a câmara revelou a origem étnica de alguns infectados como referiu em que zona moravam.

Foi ainda violado, de acordo com a organização, o Artigo 4.º da lei contra a discriminação que “combate qualquer forma de discriminação em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem” e que proíbe a “adopção de prática ou medida por parte de qualquer órgão, serviço, entidade, empresa ou trabalhador da administração directa ou indirecta do Estado (...) que condicione ou limite a prática do exercício de qualquer direito”. Comenta: “Não há nenhum estado de emergência ou pandemia que justifique medidas de segregação étnica.”

Esta não é a primeira vez que a comunidade cigana é alvo de uma tentativa de cerca sanitária pelas autoridades — em Junho, o autarca da Azambuja, Luís de Sousa, também PS, tentou fazê-lo, e acabou por voltar atrás. Em Abril, em Moura, chegou mesmo a acontecer em dois bairros — mas na altura era “tudo muito novo” e “mesmo as entidades que se deviam opor deixaram passar, estava tudo com muito medo do vírus”, comenta Bruno Gonçalves.

A secretaria de Estado disse ter orientado o Alto Comissariado para as Migrações — que está a preparar uma deslocação ao terreno —para apurar “com todo o rigor qual a situação concreta da comunidade”, tendo aquele organismo contactado a associação Letras Nómadas, o SOS Racismo, mediadores interculturais em Beja com familiares que residem naquele aglomerado, o pastor evangélico de Castro Verde, um outro mediador de Elvas e Beja. “A Secretária de Estado foi informada de que a população está a cumprir o isolamento e de que a intervenção da GNR está orientada para se revestir de natureza periódica, através de passagens regulares por esse território, como é feito com qualquer outra população”.