15.1.21

Don DeLillo: “Estamos a tornar-nos vítimas da tecnologia de uma maneira mental e filosófica”

Isabel Lucas, in Público on-line

Esta conversa foi uma corrida contra a fraqueza da voz de Don DeLillo: falar o mais possível antes que ela deixasse de ser audível, sabendo que meia hora seria o limite. Durou 32 minutos até que um som quase imperceptível pedisse desculpa. “Foi óptimo, mas só sai silêncio agora”. O motivo da entrevista foi o último romance de um dos mais criativos e influentes escritores em língua inglesa, várias vezes apontado como um dos possíveis vencedores do Nobel.

É um livro breve, mais uma novela do que um romance, se quisermos ser precisos. Chama-se O Silêncio e fala de um apagão global. “Naquele dia, o dia do Super Bowl LVI, no ano de 2022, Diane estava sentada na cadeira de balouço, a metro e meio de Max, e entre eles e atrás deles encontrava-se Martin, antigo aluno dela, trinta e poucos anos, ligeiramente curvado para diante, numa cadeira da cozinha”. Diane Lucas era uma professora de Física reformada, casada há 37 anos com Max Stenner, apostador, fanático de baseball, e Martin Dekker, mais novo, estudante compulsivo de Einstein que cita a propósito de quase tudo. Os três esperavam um casal de amigos, Jim e Tessa Berens, que chegam de umas férias em Paris. Estão fixados nos dados do monitor em frente, distraídos e a calcular se chegam ou não a tempo do início do jogo. Ela toma notas, ele faz conversa de circunstância até que, sem saberem uns dos outros, os que estão no apartamento no Upper East Side e os que voam, ficam com os ecrãs em branco. Em todo o lado instala-se a perplexidade do silêncio.

Houve um colapso, o mundo ficou sem energia, as imagens digitais desaparecem, nenhum telefone, nenhum telemóvel, nenhum elevador, frigorífico ou monitor funcionam. “Não se tratava de uma distorção visual corriqueira, tinha profundidade, formava padrões abstractos que se dissolviam num pulsar rítmico, uma série de unidades elementares que pareciam projectar-se para diante e depois bater em retirada. Rectângulos, triângulos, quadrados.” Ao espanto inicial, surgem as primeiras especulações acerca da causa. “Os Chineses. Os Chineses vêm o Super Bowl (...) Eles desencadearam um apocalipse selectivo na Internet”, conclui Martin, e a escalada das teorias da conspiração sucedem-se, num texto com uma gestão minuciosa de palavras geradoras de uma tensão que ganha dramatismo maior no contexto actual: a manipulação, um mundo onde o simulado se confunde com o real. Muito daquele silêncio está longe de soar a ficção científica. É um silêncio perceptível, mortal, ainda que Don DeLillo tenha concluído este romance no início de Março de 2020 e fale de um dia num futuro próximo, o dia de um acontecimento nacional nos Estados Unidos, o Super Bowl.

O Silêncio é o 17º romance de DeLillo, publicado em Portugal poucas semanas depois do lançamento no mundo anglo-saxónico e coincidindo com 84º aniversário do escritor natural do Bronx, um ex-publicitário que largou tudo para tentar ser escritor. Não conseguiu apenas isso. É um dos nomes mais aplaudidos, reverenciados da literatura mundial, autor de livros como Libra (1988), centrado no assassínio de John Kennedy, Cosmopolis (2003), passado numa Nova Iorque de especulação bolsista, Mao II (1991), sobre um escritor em sofrimento para terminar um romance e inspirado nas imagens de Andy Warhol sobre Mao Tse Tung, ou Ruído Branco, considerado um exemplo da literatura pós-moderna que lhe trouxe em 1985 o reconhecimento internacional depois da estreia em 1971 com Americana. Em O Silêncio sobressai a frieza das emoções de um tempo ou de uma aproximação a esse tempo, com personagens perdidas, espécie de cobaias num laboratório inclemente.

“Se acontecer alguma coisa que seja extremamente importante não tenho a certeza de escrever sobre isso. Certamente não o farei imediatamente, e de certeza que não o farei em forma de ficção. A ideia de um romance tem de acontecer devagar”

Influenciado por James Joyce, Flannery O’Connor ou Faulkner, pelo cinema de Antonioni, Godard ou Truffaut, DeLillo transporta para a sua literatura a preocupação sobre a percepção acerca de espaço e do tempo e como a tecnologia molda a nossa relação com essas entidades e, em consequência, nos molda enquanto indivíduos. Estamos sempre numa relação com um poder que nunca chegamos a dominar, uma fronteira onde a entidade de cada um derrapa. A dos indivíduos, a das nações, pequenos apocalipses geradores de medo, de insegurança, de indefinição. Subsiste o absurdo.

Em O Silêncio o apocalipse é global e logo que o livro saiu, o nome de DeLillo voltou a surgir conotado com uma palavra que o tem seguido em muitos dos seus romances: profeta. Ele é alguém com uma capacidade de antecipar o tempo. Os seus livros ecoam uma intemporalidade que não vem da observação imediata.

O silêncio que se instala na Nova Iorque de 2022 partilha muito do silêncio actual e levou a que o editor decidisse antecipar a publicação do romance. Aconteceu outra coisa: o acrescento de uma palavra já em pós-produção: covid-19. Não estava no original e Don DeLillo mandou que fosse retirada, não aceitando o argumento de que ela tornaria o livro mais contemporâneo. Não a tinha escrito e isso era o suficiente para que tudo fosse enviado para trás, recusando qualquer relação entre oportunismo de vendas e literatura.

Esta é uma conversa sobre o romance mais pequeno da sua vida. Ficou combinado que seria ele a ligar, desde Nova Iorque, onde nasceu em 1936 e onde continua a viver sem telemóvel, sem computador. Usou o velho telefone para falar de um caos tecnológico. Começou assim, numa voz muito rouca: “Hello Lisbon! This is America!”

O título, O Silêncio, é um singular que sinaliza vários momentos, pausas, incómodos numa situação de crise global como a trata neste romance. Foi óbvio para si desde o início que teria de escolher um título que sublinhasse a ruptura com a realidade ruidosa do tempo que antecedeu essa crise e a que alguém no livro chama de “semiobscuridade”?
Demorei muito tempo a chegar ao título. Estava a terminar o livro quando decidi que deveria ser O Silêncio. Os dois títulos que estava a considerar eram O Ecrã Branco e Espaço e Tempo. Ainda houve outros, mas estes foram os que levei mais a sério.

Veja, este romance levou-me dois anos a escrever, o que, tendo em conta a sua extensão, prova que à medida que vou envelhecendo não vou ficando mais sábio, fico apenas mais lento. Quando por fim terminei, decidi que O Silêncio deveria ser o título se pensarmos que o tema ou o seu centro é um cenário de perda total de energia, talvez global. Não há energia em lado algum, a ponto de nem sequer ser possível falar ao telefone, ligar um computador ou um telemóvel. É o silêncio.

Refere a hipótese de Ecrã Branco. Creio que um ecrã branco foi precisamente a ideia na génese deste romance.
É verdade. Essa foi a primeira ideia. Fiquei fascinado com a ideia de pessoas a olharem para os seus aparelhos de televisão e, em particular durante o grande acontecimento desportivo americano, a final da Super Bowl, o ecrã ficar subitamente em branco. O que aconteceria a seguir? Até que ponto um apagão desse tipo mudaria tudo? No romance percebe-se que a energia falha em todo o lado, não apenas no aparelho de televisão, e medimos isso pela frustração no seio daquela família em que todos são forçados a conversar diante daquelas circunstâncias tão estranhas. É, obviamente, uma crise que passa a ser alvo de especulação por parte de todas as personagens, de que talvez seja uma crise mundial, com todas as teorias da conspiração que daí começam nascer.

É uma suposta conversa entre cinco pessoas que estão na mesma sala e que acaba por ser sobretudo cinco monólogos, como se o apagamento resultasse também numa impossibilidade de comunicação. Eles são incapazes de conversar.
Sim. Há muitos momentos de monólogo. Eu decidi... bem, não foi exactamente uma decisão... mas enquanto estava a escrever percebi que aquela era a forma que o romance estava a tomar, uma forma meio estilizada. As pessoas sentam-se e falam ou levantam-se e falam, não necessariamente umas para as outras, simplesmente falam naquela sala para si mesmas. Achei que podia ser interessante e segui em frente. Há uma personagem, a do professor de Física, Martin Dekker, que é particularmente entusiasta ao falar daquela maneira, talvez por estar habituado a dirigir-se assim aos alunos, a levantar-se à frente de uma sala e a desenvolver monólogos.

“A questão, ultimamente, é o quão perigoso se tornou o acesso à identidade pela tecnologia: a extraordinária capacidade que a tecnologia dá às pessoas, aos estados, às organizações terroristas de usar e adaptar o que diz respeito às nossas identidades”

Outra hipótese de título, disse, seria Espaço e Tempo. São dois temas centrais no livro, como em romances anteriores. Aqui há um momento em que junta a esta ideia de tempo e de espaço a obra Finnegans Wake, convocando-nos para o papel da linguagem numa situação limite como aquela, para o tempo enquanto absoluto. Porquê?
Sim, no fim há monólogos da parte de cada uma das personagens, e Tessa Stenner, a professora, dá por si a pensar em James Joyce e vem-lhe à cabeça aquela frase. Eu deparei-me com essa frase por acaso, Ere the sockson locked at the dure [“Antes que o soxão transcabatesse na purta”]. Peguei no Finnegans Wake, e comecei a passar páginas e lá estava aquela frase em particular. Decidi usá-la, ver o que dava, lançá-la sozinha para a sala. Não lhe ponho mais significado do que esse.

Mas é verdade que o tempo e o espaço são muito importantes para mim e tenho escrito muito sobre eles. Agora também sou obrigado a confrontar-me com eles de modo inédito. Neste momento, em Nova Iorque, o espaço tornou-se muito limitado por causa da covid-19. Quando as pessoas caminham nas ruas têm muitos cuidados para evitar outras pessoas que não estão a usar máscara. A ideia de espaço é totalmente diferente do que era. No romance há uma cena em que as ruas estão vazias e a personagem Max Stenner [dono da casa, marido da professora] sai para um passeio e as ruas tornam-se subitamente desertas. O espaço torna-se muito variável, e vulnerável e, de certo modo, possivelmente perigoso. E o tempo é totalmente alterado pelo facto de não termos meios de determinar o que pode acontecer em segundos, minutos, horas. Tudo deixou de funcionar, o mundo como o conhecemos colapsa; mesmo os relógios deixaram de funcionar. Tudo se altera. E hoje, em Nova Iorque, como disse, o espaço é diferente, e o tempo — porque em muitos casos as pessoas estão em casa — tende a expandir-se. Sentimo-nos limitados, enclausurados, não apenas fisicamente mas também mentalmente. Não temos a mesma capacidade de pensar, não pensamos como costumávamos pensar. Claro que temos jornais e meios de informação de muitos tipos. E posso ver jogos de futebol americano em casa. Mas tudo é muito diferente. Estamos confinados de uma maneira diferente da do livro. Apesar de tudo, é a tecnologia que nos vai alimentando, bem ou mal. A minha mulher e eu não vamos a restaurantes, damos um passeio ocasional no bairro; ela encomenda produtos de mercearia online.

Escreveu este romance antes da pandemia, mas descreve ambientes e sensações semelhantes às que estamos a viver ou vivemos na primeira fase. Estou a lembrar-me de Tessa e uma passagem específica: “Peço-vos desculpa, vou tentar calar-me. Mas ainda fresco na memória de todos, o vírus, a pandemia, as filas nos terminais dos aeroportos, as máscaras cirúrgicas, as ruas desertas das cidades.” De onde lhe veio esta frase antes desta experiência real?
É muito estranho, sim. Acabei o romance em Março [de 2020] quando as coisas estavam a ficar muito graves aqui nos Estados Unidos e o meu editor decidiu que tinha de publicar o romance rapidamente, em vez do que seria normal: esperar um ano até ser publicado. Fê-lo em nove meses. O livro está aí. Não sei como está a ser nas livrarias porque há muito tempo que não vou a nenhuma, mas parece que as pessoas o estão a ler e a fazer comparações com este tempo. E parece também que estão a ler todo o tipo de livros e a falar de livros. Não sei se aí também está a acontecer isso. Está em Lisboa?

Sim
Ah, tenho saudades. Estive aí várias vezes para o Lisbon & Sintra Film Festival [onde foi algumas vezes jurado]. Era um grande prazer. Talvez discutam também cinema. Em Nova Iorque duvido. As coisas estão fechadas. Mas para voltar à sua pergunta, sei que quando escrevi aquilo não estava, de certeza, a tentar prever o que quer que fosse, nem tenho essa capacidade. É qualquer coisa que acontece e não sei explicar. Terá a ver, talvez, com o modo como me relaciono com a linguagem. E tem a ver ainda mais, acho, com o modo como funciona a cabeça de um escritor.


Pode exemplificar?
Sempre tive um sentido visual muito vívido, e esse sentido visual também se aplica às palavras, às palavras numa página. Escrevo numa velha máquina de escrever, uma Olympia em segunda mão. Tem um tamanho de letra maior do que o habitual, e vejo uma ligação enorme entre as letras numa palavra e entre as palavras numa frase. E comecei a notar isso, em especial quando estava a trabalhar no romance Os Nomes, em meados dos anos 80. Nessa altura passei a escrever um parágrafo por página e comecei a ver com maior clareza. Os olhos, da mesma maneira que a mente, tornavam-se totalmente envolvidos, ligados como nunca tinham estado. Parece que qualquer coisa nova nascia dessa ligação. Passei a trabalhar sempre assim. Talvez nasça disso uma espécie de percepção nova ou capacidade de profecia, como se costuma dizer sobre mim, meio a brincar. Eu brinco com isso, não me sinto profeta de nada [risos].

Mas há uma sintonia com ansiedades reais, como lhe lembrou recentemente um jornalista. E, também sobre isso, num texto publicado no Los Angeles Times, a escritora Rachel Kusnher...
Ah, sim, conheço-a.

Ela dizia que neste livro é como se “ele lesse o futuro na trama do presente”. E continua: “para isso, é preciso estar realmente interessado no momento histórico em que se está a viver”. Não é a primeira vez que lhe fazem este tipo de observações. Sente que tem um tipo especial de atenção ao mundo, isso a que muitos têm chamado a sua capacidade de fazer profecias através da literatura?
Não sei. Sei que tudo começa sempre com uma ideia muito visual, como neste caso, a do ecrã em branco. É uma imagem forte que me faz parar. Em muitos romances... Por exemplo no último antes deste...

Sim. Olhei pala minha janela e vi, talvez a uns três quarteirões de distância, um grande edifício de apartamentos e muitas janelas, e depois as próprias salas e os quartos, com toda a espécie de coisas, uma profusão de elementos. Tudo muito geométrico. E isso inspirou-me à ideia de começo do livro. “Todos querem ser donos do fim do mundo. Foi isto que o meu pai disse, parado diante das janelas curvas do seu escritório de Nova Iorque...” E há depois uma sucessão de ambientes com portas e janelas a determinarem o ritmo e o ambiente. Varia de um livro para o outro, mas há sempre uma imagem.

Neste momento em particular há muita gente a questionar-se sobre o papel da literatura e do que podem ou devem os escritores fazer. Muitos foram desafiados a escrever sobre esta pandemia como se tivessem uma espécie de capacidade de ler ou de interpretar o que está a acontecer...
Pois é, é verdade.

O que acha que podem os escritores em tempos como este, de crise global? É preciso esperar?
Os escritores de ficção talvez tenham de esperar, mas claro que os jornalistas, os ensaístas, os historiadores podem sentir-se inspirados para começar a escrever de imediato. Entendo isso. Nunca me sentei para trabalhar num texto de ficção com base em alguma coisa que tivesse acabado de acontecer. Houve um tempo relacionado com os ataques ao World Trade Center em que me vi envolvido imediatamente, mas demorei muito tempo a escrever um romance sobre isso. Antes escrevi um ensaio, em grande parte porque o meu sobrinho e a família viviam a apenas um quarteirão de distância das torres. Lembro-me de sentir uma necessidade de, assim que me fosse possível, ir até à baixa de Manhattan. Só para tomar notas. E escrevi um ensaio, uma coisa muito curta [In the Ruins of the Future, publicado na Harper’s Magazine], mas demorei a levar esse tema para um romance.

A epígrafe de O Silêncio é de Albert Einstein. “Não sei com que armas se irá travar a Terceira Guerra Mundial, mas sei que a Quarta Guerra mundial se irá travar com paus e pedras.” Depois Einstein continua no romance com sua Teoria da Relatividade, mas sobretudo com alusões a um ensaio menos conhecido, o Manuscrito de 1912, sobre a Teoria Especial da Relatividade. A dada altura é mais uma vez sugerido que um terceiro conflito global pode ter uma forma diferente dos dois anteriores. Podemos estar, sem nos apercebermos, a viver qualquer coisa de semelhante ou com um paralelismo a uma Terceira Guerra Mundial?
Sim. Acho que é Martin Dekker que se refere à pandemia como uma Terceira Guerra Mundial. Einstein disse que a Quarta Guerra Mundial seria combatida como paus e pedras. Sabemos que a III é tecnológica, tem a ver com actos da tecnologia. Mas no contexto deste livro li o mais que consegui do Manuscrito de 1912. Não percebo muitas partes, mas ia lendo; está escrito numa linguagem muito técnica. Mas mantenho o livro muito perto. É grande, enorme. Mas gosto de o ter sempre por perto, gosto simplesmente de olhar para a capa, faz-me sentir bem ter ali o poder da ciência, o poder da mente humana, Einstein. Já próximo do fim acho que Martin Dekker diz que se imagina a caminhar ao lado de Einstein pelo campus de Princeton.

Diz: “Quero cruzar o campus de Princeton ao lado dele. Sem uma palavra, em silêncio. Dois homens a caminhar.”
Mais uma vez isso nasceu de uma imagem muito visual, vívida, que tenho do tempo em que visitei Princeton. Claro que Einstein não estava lá, mas mais uma vez fui impelido por uma coisa que estava minha memória de uma forma visual.

A memória é uma das ferramentas e também dos temas mais literários, agora necessariamente moldada pela tecnologia. Este também tem sido um dos seus assuntos. Como é que a memória e a literatura têm sido alteradas pela tecnologia?
Mudou muito. Sempre que a tecnologia vem, de um modo ou de outro, substituir coisas que tínhamos de fazer ou que podemos fazer, a questão é o modo como os indivíduos e estados irão usar a tecnologia: com propósitos benéficos ou com propósitos que visam criar o caos ou qualquer tipo de actividade criminal. A tecnologia permite todo o tipo de uso e essa é a grande questão. As identidades das pessoas ficam comprometidas por causa da guerra de outros, do interesse de outros por eles — seja que interesse for — , da intenção dos outros, daqueles que têm a capacidade de roubar ou de violar as suas identidades. A questão, ultimamente, é o quão perigoso se tornou o acesso à identidade pela tecnologia: a extraordinária capacidade que a tecnologia dá às pessoas, aos estados, às organizações terroristas de usar e adaptar o que diz respeito às nossas identidades.

Uma das suas personagens, Diane Lucas, poeta, diz: “Perdemos a nossa capacidade de nos assombrarmos, perdemos a curiosidade.” Isso tem a ver com o que estava a referir antes, o modo como a nossa memória se alterou e mudou também o acesso ao saber na ilusão de que tudo está à distância de um botão ou de um ecrã?
O problema é que nos estamos a tornar vítimas da tecnologia, mas não de forma prática. Estamos a tornar-nos vítimas de uma maneira mental e filosófica, de uma maneira que influencia profundamente não apenas o modo como pensamos de um dia para o outro, mas em relação à nossa própria identidade. Como é que pessoas que hoje têm dez, ou 15 ou 20 anos serão afectadas por estas mudanças quando tiverem trinta, quarenta ou cinquenta?. Não estou seguro quanto à resposta, mas serão de certeza fortemente afectadas.

Quando pensa nos seus romances, na forma sobre a qual foi escrevendo sobre o tema da tecnologia e as ansiedades e dúvidas que ele lhe foi suscitando desde que escreveu Americana, em 1971, e agora, com O Silêncio, quais acha serem as grandes questões que se mantêm centrais sobre o tema na sua literatura e o que é que se alterou substancialmente?
Só podemos falar disso em termos muito pessoais. E em termos pessoais a tecnologia mudou-me muito. Tenho uma máquina de escrever muito melhor agora do que tinha quando escrevi Americana [ri]. É um mundo totalmente diferente. Se tivesse hoje uma ideia parecida com aquela que me levou a escrever Americana, o romance seria muito diferente. Não sou capaz de dizer de que maneira. Levou-me uma eternidade a escrever, porque estava a tentar perceber como é que poderia ser um escritor de ficção. Escrevia sobretudo contos. Demorei dois anos a convencer-me que devia continuar e depois levei mais dois a terminar o livro e não fazia a mais pequena ideia do que fazer com aquilo. Não sabia como é que podia encontrar um editor, não sabia nada do mundo editorial ainda que vivesse em Manhattan. Sem o mostrar a ninguém, enviei-o para uma editora e eles aceitaram. Fiz apenas umas pequenas alterações e isso alterou tudo na minha vida. Desde então fui um escritor de sorte, e nunca me permiti esquecer o quanto tive sorte. É extraordinário!

Diz muitas vezes, referindo-se a si mesmo, que é apenas um rapaz do Bronx.
Ahahah, pois sou.

O que é isso, um rapaz do Bronx?
Quanto mais velho fico mais me torno um rapaz do Bronx. Não há exagero algum nesta afirmação nem é uma boutade. Talvez seja normal para uma pessoa com uma certa idade. Estou sempre a pensar nesse passado e penso com imenso prazer. Na família em que cresci. Os meus pais eram imigrantes. Éramos onze pessoas a viver numa casa mínima no Bronx. Antes da pandemia, costumava voltar lá para visitar os tipos que eram os miúdos com quem cresci. Estamos todos com mais de 80 anos e encontramo-nos num restaurante no coração do Bronx italiano que é agora povoado por muitos latinos e sérvios, mas também muitos, muitos italianos; comemos um belo almoço e durante duas horas tudo o que fazemos é recordar. Lembramos o nosso passado com uma precisão extraordinária. E lembramos as mesmas coisas a cada almoço, a cada encontro, as mesmas piadas, os mesmos palavrões em italiano. Espero que isto um dia acabe, esta pandemia, e que possamos voltar a fazer o mesmo. Talvez isso me defina como um rapaz do Bronx, não sei.

Aposto que também falam de baseball, outro dos seus temas recorrentes.
[Dá uma gargalhada rouca como quem faz uma pausa] Falamos muito de baseball, sempre. E continuo, agora com o meu primo com quem costumo falar ao telefone já que não podemos estar juntos.

Qual é a sua equipa, é Yankee?
São os New York Yankes. Cresci no Bonx e quando era pequeno o meu pai levava-me aos jogos de baseball. Sentávamos numa parte do famoso estádio yankee chamada bleachers — as arquibancadas. Eram duas paragens de metro até chegar lá. Ali estava eu, aos dez anos, sentado nos bleachers com o meu pai. Depois continuei a ir enquanto adulto, com amigos, com os meus primos mais velhos. No futebol americano sou dos New York Giants. Ando a ver os jogos, a temporada acaba em Janeiro. Quando descrevi as jogadas de baseball no livro elas não vieram da minha imaginação. Estou sempre a ver jogos. Há dois dias, vi um jogo dos Giants e eles ganharam e estou bastante feliz com isso, muito animado, pelo menos até ao próximo domingo.

Quando pensa neste seu último livro vê-o em algum tipo de diálogo com os seus romances anteriores?
Talvez seja fácil os leitores mais sérios ou atentos da minha ficção aperceberem-se disso, mas acho que no meu trabalho há uma evolução em direcção ao silêncio, a um método mais estilizado. E mesmo, de algum modo, a brevidade do livro, o facto de ter menos de 120 páginas, é, para mim, uma evolução natural. Não quer sugerir mais nada. Não quer ter implícita a pergunta: o que pode vir a seguir? Talvez o que vier a seguir não seja ficção, se é que vai haver alguma coisa a seguir. Mas parece que os meus temas se uniram numa espécie de conclusão. Talvez seja. Não sei. Talvez o título, O Silêncio, preveja o meu futuro ficcional.

Acha que sim?
Não sei. Se chegar uma ideia irei certamente segui-la. Mas não sei o que será esse a seguir de que estamos a falar. E junto a isso o facto de a minha voz estar a desaparecer por completo. Outro silêncio. Deve ser a emoção de estar a falar com Portugal.

Vou deixá-lo descansar a voz. Mas antes, só para explorar essa possibilidade de ideia, ela poderá vir da sua observação de um momento como o actual, por exemplo?
Tem de ser qualquer coisa interna e do que posso fazer com isso, essa imagem ou sensação. Se acontecer alguma coisa que seja extremamente importante não tenho a certeza de escrever sobre isso. Certamente não o farei imediatamente, e de certeza que não o farei em forma de ficção. A ideia de um romance tem de acontecer devagar.


Senhor DeLillo...
Em italiano é De Li llo [soletra cada sílaba com um sotaque italiano, enrolando cada L, e num tom cantado], Donaldo DeLillo. É só Don, por favor. Peço desculpa pela minha voz, foi muito bom ter esta conversa. Ciao Lisboa e boa sorte.