Aline Flor, in Público on-line
Aprovação agridoce reconhece a trabalhadores “direito a desligar” sem consequências, mas adia em três anos o compromisso da Comissão Europeia em produzir uma directiva, dando primazia à concertação social. O que não significa que os Estados-membros não possam actuar antes.
“Não podemos abandonar milhões de trabalhadores europeus que estão exaustos com a pressão de estar sempre ligados e pelas longas horas de trabalho. É este o momento de nos colocarmos ao lado deles e dar-lhes algo que merecem: o direito a desligar.” Há um certo sentido de urgência nas palavras de Alex Agius Saliba, eurodeputado de Malta que foi relator de uma proposta de iniciativa legislativa aprovada na quinta-feira pelo Parlamento Europeu (PE) que recomenda à Comissão Europeia que legisle sobre o chamado “direito a desligar”, ou seja, de “não exercer actividades ou comunicações relacionadas com o trabalho através de ferramentas digitais, directa ou indirectamente, fora do tempo de trabalho”.
Com a crise pandémica, de acordo com dados do Eurofound, mais de um terço dos trabalhadores europeus estão em teletrabalho. Mas se por um lado a tecnologia e ferramentas digitais tornaram possível a muitas empresas manter-se a funcionar com os trabalhadores à distância, há também consequências negativas: as horas de trabalho esticam-se com mais frequência, as fronteiras (a começar pelo espaço físico) entre trabalho e vida privada esbatem-se, a saúde física e mental dos trabalhadores ressente-se com um sistema que lhes pede para estarem “sempre ligados”. “Não queremos acabar num sistema onde tratamos os nossos trabalhadores como máquinas ou como robôs”, alertou o eurodeputado de Malta.
No debate parlamentar que decorreu na quarta-feira, o comissário europeu para o Emprego e Direitos Sociais, Nicolas Schmit, sublinhou que “a digitalização criou novas oportunidades”, reconhecendo que “a nova economia não pode desenvolver-se fora dos quadros normais das leis do trabalho”. “Não podemos pedir que alguém esteja disponível 24 horas por dia”, afirmou o comissário luxemburguês.
Burnout
O impacto na vida e na saúde dos trabalhadores pode ser extremo, algo que não acontece só devido à pandemia ou ao teletrabalho. Para Bernardete Torres, que “chegou ao limite” há três anos, foram cinco anos a trabalhar “praticamente 24 horas por dia, sendo constantemente solicitada quer por email, telefonemas, redes sociais”. Vieram as dores de cabeça todos os dias, falta de concentração, irritabilidade. “Deixei de fazer coisas de que gostava, sentia-me constantemente desanimada, saturada, decepcionada por não conseguir corresponder, esquecia-me de comer, não dormia em condições”, relata ao PÚBLICO. Quando deixou o trabalho, em 2018, estava “completamente esgotada”.
“Aquilo que nos permite estar em teletrabalho é a tecnologia, e a tecnologia, que devia estar ao serviço dos trabalhadores até para reduzir o horário de trabalho e facilitar as tarefas de trabalho, o que está a fazer é a contribuir para uma exploração ainda maior, para esta desregulação dos horários, e não tem mesmo de ser assim”, alerta a eurodeputada do PCP Sandra Pereira, vice-presidente da comissão do Emprego e dos Assuntos Sociais do PE, onde o relatório foi analisado antes de ser votado em sessão plenária.
A proposta de directiva que acompanha a recomendação do PE à Comissão Europeia refere que “os Estados-Membros devem assegurar que os empregadores criam um sistema objectivo, fiável e acessível que permita medir a duração do tempo de trabalho diário de cada trabalhador”. “A disponibilidade tem que ser remunerada mesmo quando não é utilizada”, explica o eurodeputado do BE, José Gusmão, que como relator-sombra acompanhou a redacção da proposta. “A directiva é mais vaga do que o que teria preferido”, realça, notando tratar-se de uma regulação necessária sobre algo que “não é propriamente um direito novo” - o direito a um período de descanso. “Trata-se de assegurar o efectivo cumprimento desse direito”.
Adiamento
Em termos concretos, a directiva da Comissão Europeia deverá definir os requisitos mínimos do teletrabalho, reforçar o direito a receber informação suficiente e expectativas claras sobre o horário e condições de trabalho, assim como os períodos de descanso, e proteger de retaliações os trabalhadores que ignorem as comunicações de trabalho fora do horário previsto.
Mas uma emenda aprovada na véspera da votação final, depois de um acordo entre o grupo dos Socialistas e Democratas (a família política do PS, a que também pertence o relator da recomendação) e do Partido Popular Europeu (onde estão PSD e CDS), coloca um travão à execução desta proposta: a Comissão Europeia deve dedicar os próximos três anos a debater o tema com os parceiros sociais, para só depois legislar sobre o assunto. Um “adiamento absurdo”, lamenta José Gusmão, do BE, que acusa o PPE, que “exigiu essa cláusula”, de estar a adiar o processo “para um momento em que seja mais fácil rejeitá-lo”. Por essa altura, sobrarão poucos meses ao actual mandato do Parlamento Europeu, o que significa que a entrada em vigor de eventuais leis pode demorar vários anos - nunca a tempo de proteger os trabalhadores durante a pandemia e o seu rescaldo.
Para o socialista Manuel Pizarro, que acompanhou o debate sobre o “direito a desligar” como membro da comissão do Emprego do PE, “ou tínhamos uma resolução com aquela emenda, ou não tínhamos resolução nenhuma”. Acredita que a situação de “meio confinamento” não permitiu o diálogo mais próximo entre eurodeputados, que poderia ter resultado num compromisso mais ambicioso, mas é taxativo: “Esta resolução é um passo em frente”. Sem obrigação da Comissão de legislar no imediato sobre o assunto, a discussão “fica entregue à concertação social”, descreve o eurodeputado socialista, sublinhando a importância de “manter o assunto na agenda”.
E encontrar uma solução que responda aos ritmos e exigências de uma heterogeneidade de sectores pode não ser tão simples. “Aplicar o direito a desligar significa encontrar um equilíbrio entre a natureza das tarefas, estilos de gestão, escolhas pessoais e regras a nível das empresas”, recordou o comissário do Emprego ao Parlamento Europeu, na quarta-feira. O relator Alex Saliba já conhece os argumentos: “O elemento da flexibilidade está lá”, explica. “Sabemos que existem realidades diferentes e que é impossível aplicar um direito a desligar one size fits all, temos que ver a realidade de cada local de trabalho… Mas há requisitos mínimos”, reforça.
Este compasso de espera da Comissão, nota a eurodeputada Sandra Pereira, não impede que os Estados-membros tomem iniciativa para proteger os trabalhadores. Em Portugal, onde o tema foi debatido sem resultados na anterior legislatura, a lei é particularmente vaga no que se refere à disponibilidade esperada dos trabalhadores, em particular os que estão em teletrabalho. “Até achamos que não devem estar à espera dos três anos para legislar sobre esta matéria”, sugere a deputada.
“Ou melhoras de vez, ou vai ser sempre a piorar.” Três histórias de burnout
“Foi um burnout total”, recorda Alexandre sobre o episódio que o deixou “nove meses de lenta recuperação”. Moído pela sensação de falta de reconhecimento, explica o webdesigner, “é pouco possível ter motivação para seja o que for”. “Uma pessoa sente-se uma merda.” O cansaço resultante das longas horas de trabalho foi crescendo até ao dia em que teve um ímpeto de sair do trabalho - “ou fritava de vez”. “O cérebro foi para algures durante umas horas”, recorda. “Recuperei a consciência no hospital de Coimbra.” Desde aí, tem sido acompanhado por um psiquiatra. Regressou à empresa algum tempo depois, mas impôs regras: tempo para criar sem interrupções, espaço tranquilo para trabalhar, respeito na comunicação. “Foi difícil à direcção perceber que não somos máquinas de criar coisas.” Da longa conversa com o PÚBLICO, pede que uma coisa não seja deixada de fora: a importância do acompanhamento da família, dos amigos mais próximos e do seu médico. “Não vivemos sozinhos.”
Também para Bernadete o acompanhamento médico foi essencial para o processo. Logo na primeira consulta com a psicóloga, foi-lhe dito que tinha de estar preparada para abandonar o emprego. Já em recuperação, conta que teve de “aprender a traçar limites” a si mesma, porque o burnout “não foi provocado apenas pela pressão externa mas também uma necessidade de estar sempre presente, em cima do acontecimento, de fazer com que tudo estivesse a correr bem, que o email era respondido de imediato… É complicado.” Só passado um ano é que sentiu energia e capacidade para procurar trabalho, mas as entrevistas de emprego não são fáceis. Há um certo “pânico de ser escolhida” e uma sensação que não desapareceu até agora, “de não ser competente se não conseguir responder no tempo certo”.
Paula Cordeiro sabia que algo estava errado, mas foi apenas quando viu a receita do seu médico que soube como aquilo se chamava: burnout. “Ficaste doente porque tinhas que ficar doente”, alertava o médico. “Ou melhoras de vez, ou vai ser sempre a piorar.” Com rinossinusite crónica, as crises estavam a tornar-se cada vez piores, a tomar antibióticos três a quatro vezes por ano. O corpo dava de si, e não era para menos: na altura, além da docência, acumulava a coordenação do departamento de ciências da comunicação do ISCSP, o cargo de pró-reitora e o de provedora do ouvinte da RTP. “Foi a loucura durante um tempo.” A vida familiar ressentiu-se. “Lembro-me de estar com os auriculares e o telemóvel no bolso, a conversar com o reitor, enquanto estava a cozinhar o jantar.” Nas aulas, a parte que lhe era mais natural, “estava em piloto automático”. “A responsabilidade do meu burnout foi minha”, reconhece, mas depois do susto e do alerta do médico, pôs travão a fundo: alterou a alimentação, procurou passar mais tempo perto do mar, começou a abandonar os cargos, um a um. Hoje, também tem por hábito fazer um “digital timeout”: ao fim-de-semana, afasta-se das redes sociais, não produz, “fica sossegadinha”.