26.1.21

População cigana mobilizou-se mais do que nunca para votar

Ana Cristina Pereira, in Público on-line

Resultados de André Ventura provocam apreensão, sobretudo no Alentejo, onde activistas julgam ter pesado mais a ciganofobia do que qualquer outro factor.

Apesar do inédito esforço de mobilização, os resultados das eleições presidenciais nem deixaram dormir alguns membros da população cigana, como Luís Romão, da associação Sílaba Dinâmica. “Uma tristeza enorme” saber que só ali, no seu concelho de residência, em Elvas, André Ventura obtivera 2086 votos, 28,8% do total.

“Quando um partido fascista, racista, extremista alcança 10% numas eleições nacionais, dois dígitos, é muito mau sinal”, corrobora Bruno Gomes Gonçalves, vice-presidente da Associação Letras Nómadas. “Fico muito triste.”

Inquieta-os, sobretudo, o Alentejo, onde Ventura obteve as maiores percentagens. Apesar do sentimento de abandono, do avanço da agricultura intensiva, do envelhecimento da população local, da afluência de mão-de-obra estrangeira, nada lhes parece ter pesado tanto como a ciganofobia.

Embora haja mais portugueses ciganos a viver nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, no Alentejo as comunidades são mais visíveis – representam uma maior percentagem da população total, enfrentam grande grau de exclusão, algumas ainda são nómadas. “Tenho algum receio do que pode acontecer nas autárquicas”, diz Bruno Gonçalves. “Tenho receio que [o Chega] possa vir a eleger vereadores, representantes nas assembleias e a ganhar alguma junta.”

Nunca se vira tanta mobilização no seio da população cigana. Activistas de Norte a Sul procuraram, dentro das suas comunidades, motivar eleitores. A Sílaba Dinâmica fez um vídeo e a Academia de Política Cigana uma animação, que estas e outras associações partilharam nas redes sociais em datas concertadas. Várias pessoas participaram em acções de campanha. Algumas manifestaram-se contra o discurso de Ventura.

Jamais a população cigana se terá sentido tão tomada como alvo, desde que a democracia foi instaurada. Bruno Gonçalves nem usa o verbo atacar, mas “enxovalhar”. A esse propósito ocorre-lhe o dia em que Ventura atacou Ana Gomes dizendo que defender ciganos e polícias é “defender tudo e o seu contrário”. E logo outros exemplos.

Nas redes sociais, Luís Romão cansou-se de ver comentários sobre o recurso ao rendimento social de inserção, quando os poucos estudos feitos pelo Instituto de Segurança Social apontam para 3,8 a 6% de beneficiários de etnia cigana. “É uma gota no oceano, mas o ódio é tanto que cega as pessoas.”

Sentado numa mesa de voto, Osvaldo Grilo, da Associação Cigana de Coimbra, pôde observar a inédita adesão da sua comunidade. “Muitas pessoas votaram este domingo pela primeira vez.” Vê-las deu-lhe a sensação de que o trabalho de proximidade não fora em vão.

Aquele dirigente foi dormir com um “sentimento de dever cumprido, mas muito desiludido”. “Tenho muito medo”, confessa. “Isto é muito mau. Tanta gente lutou para termos uma democracia e agora há pessoas que querem uma ditadura, um fascismo. Para mim, isso é um movimento, não é política. Política é construção, é democracia, não é incentivo ao ódio e à discriminação.”

“Foi uma grande vitória haver tantos ciganos a votar”, torna Luís Romão. O desfecho, para si, é que mais parece um balde de água fria. Desconfia que, levados pelo discurso da subsidiodependência, até amigos seus “votaram na extrema-direita”. E isso provoca-lhe uma dor com a qual ainda está a aprender a lidar. “Os meus filhos são pequenos. Que futuro podem vir a ter? Sabemos o que tem estado a acontecer noutros países…”

Natália Serrana, a jovem licenciada em artes plásticas e multimédia que desenvolveu o material de animação de incentivo ao voto, revela-se menos pessimista. “Apesar de não ter ganho a pessoa na qual depositei o meu voto, fiquei aliviada”, diz. “Teria sido catastrófico se fosse André Ventura a ganhar.” Não foi. Ficar em terceiro não é ficar em primeiro.

Nota que há um caminho de consciencialização que só agora começa a ser percorrido. Ela própria está a preparar outro material de animação sobre o sistema político, no âmbito da Academia Política Cigana, projecto apoiado pelo Conselho da Europa. “Espero que toda esta situação abra os olhos às pessoas”, suspira. “E que a população cigana se mobilize ainda mais nas próximas eleições.”

Ainda este ano, realizar-se-ão eleições autárquicas. A lógica é distinta, mas Bruno Gonçalves julga haver algumas lições a tirar. Desde logo esta: não responder ao insulto com insulto, procurar, sim, desmontar as mentiras, o discurso. Isso obriga a uma maior preparação. E, neste caso específico, a um maior conhecimento sobre a realidade das comunidades ciganas. “Ele descontextualiza mesmo os estudos”, aponta, alegando que manter-se-á atento e não hesitará em apresentar queixa contra o que entender ser discurso de incitamento ao ódio e ao racismo. Importante será também forçar a discussão de ideias concretas, em vez de deixar que declarações preconceituosas ou falsas tomem conta dos debates.

“Tem de se trabalhar melhor”, torna Luís Romão. “Tem de haver outras políticas.” E há que agravar a penalização do discurso de ódio, de modo a travá-lo. “Ontem vi uma pessoa que desenhou uma câmara de gás, publicou a fotografia do seu projecto, dizendo: ‘a câmara de gás está preparada para aniquilar os ciganos’. E não se pune estas pessoas. Podem dizer tudo e mais alguma coisa.” Em seu entender, isto tudo tem de ficar claro. “Uma pessoa com dois dedos de testa não vota em quem tem como bandeira aniquilar uma comunidade.”