Ana Cristina Pereira, in Público on-line
No total, a Judiciária deteve este ano 173 pessoas por crimes sexuais contra crianças e jovens. Com a pandemia, as crianças que passam mais tempo online sem supervisão ficam mais expostas a predadores.Há cada vez mais pornografia infantil a circular à superfície e nas profundezas da Internet. No ano passado, a Polícia Judiciária deteve 173 pessoas por crimes sexuais contra crianças e jovens. Pelo menos 32 estiveram envolvidas nalguma forma de pornografia infantil – fotografia ou vídeo.
Ainda esta segunda-feira a PJ anunciou a detenção de um homem de 28 anos. Através da Net, levou uma menina de 11 anos a produzir fotografias e vídeos, “despida e em poses sexualizadas”, para lhe enviar. Por três vezes, convenceu-a a encontrar-se com ele e sujeitou-a a práticas sexuais.
Os alertas ecoaram na alvorada da pandemia de covid-19. Com o confinamento decretado em Março, toda a população passaria mais tempo na Internet – a trabalhar, a estudar ou a entreter-se. As crianças que ficassem online sem supervisão ficariam mais expostas a predadores.
As crianças e jovens podem tornar-se vítimas por: 1. vulnerabilidade, quer relacional (expressões de carência) quer técnica (falta de competências de segurança online); 2. ausência ou fraca supervisão parental; 3. tendência excessiva para partilhar, incluindo material sexual gerado pela própria pessoa; 4. muito tempo online todos os dias; 5. utilização de redes sociais e outros meios de comunicação online, especialmente através de dispositivos móveis; 6. tendência para fazer amizade com estranhos online; 7. abordagem relaxada das interacções / comunicações sexualizadas online; 8. falta de conhecimento técnico (uso de palavras-passe fortes, como lidar com links suspeitos, etc.).Europol
O caso desta segunda-feira, investigado pela directoria de Lisboa e Vale do Tejo, já não é o primeiro deste ano. No dia 6, o Departamento de Investigação Criminal de Setúbal identificou, localizou e deteve outro homem de 30 anos que, “além de ser consumidor e distribuidor de pornografia de menores, terá, ao longo de cerca de dois anos, abusado sexualmente de uma menina, actualmente com 10 anos”.
Antes, as fronteiras eram claras, começa por explicar Carlos Farinha, director nacional adjunto da Polícia Judiciária. A maior parte dos crimes sexuais contra crianças e jovens acontecia num contexto de grande proximidade. Fora isso, havia alguns casos sem qualquer relação prévia (prostituição infantil e assalto sexual) ou alguma iniciada pela Net. Agora, tudo se pode misturar. O acesso aos telemóveis e à Net vulgarizaram a produção e difusão de imagens. Quer com isto dizer que não foram só aqueles 32 detidos que recorreram a pornografia infantil. O material surgiu na investigação de outros detidos por crimes sexuais contra crianças e jovens.
Novo fenómeno
Um caso divulgado no dia 27 de Dezembro, pelo Departamento de Investigação Criminal de Aveiro, é paradigmático do novo fenómeno. O homem, de 24 anos, criou um perfil usando um nome inventado e uma fotografia falsa. Fazendo-se passar por um adolescente, metia conversa com raparigas entre os 11 e os 15 anos. No plano da descoberta, incitava-as a partilhar imagens íntimas cada vez mais ousadas. Quando se recusavam a continuar aquele jogo, partia para a chantagem e a extorsão. Dizia-lhes que se não fizessem o que queria divulgaria o material que tinha em sua posse.
Na operação de busca domiciliária, a PJ deparou-se com “milhares de conversações”, tidas através do Messenger, “contendo centenas de ficheiros multimédia – vídeo, imagem e áudio – em que as crianças aparecem desnudadas, com plena exibição e manipulação de zonas corporais íntimas”. A espiral foi tão grande que não só foi indiciado por abuso sexual e pornografia infantil, mas também por violação.
“Temos de falar de prevenção primária junto da vítima”, diz Farinha. “Para evitar determinado tipo de conduta ou de vitimização é preciso maior intervenção de escolas, professores, pais, ainda que às vezes estes sejam assuntos que antes de determinada idade não se abordem, por se julgar que a sexualidade não está representada antes da puberdade”, salienta. “O que é facto é que pode estar.” Em suma, a educação parece-lhe a chave para crianças e jovens saberem o que podem e o que não podem partilhar pela Internet.
Investigações de actividade suspeita online quase quadruplicam
Afiança a Europol que várias polícias da União Europeia se vêem confrontadas com uma quantidade tão “avassaladora” de material referente a abuso sexual de crianças que nem sabem para onde se virar. Em Portugal, a Polícia Judiciária também regista um aumento considerável.
Carlos Farinha, director Nacional Adjunto da PJ, pega nas investigações da actividade online associada a pornografia de menores: “Em 2017 e 2018 andávamos nas quatro centenas e meia e em 2019 tivemos um aumento significativo para as nove centenas e em 2020 passámos para os dois milhares.”
Parece-lhe importante perceber que o número de sinalizações “não corresponde ao número de predadores”. “Tudo isto carece de um esforço investigatório para separar o trigo do joio”, salienta. “Pode haver sinalizações de pesquisas não intencionais deste tipo de conteúdos”, exemplifica. E pode haver “predadores que se contactam, que se agrupam ou mesmo que se federam”, razão pela qual a cooperação internacional é tão relevante.
No seu último relatório sobre crime organizado na Internet, a Europol atribui este aumento a dois factores fundamentais: mais produção de conteúdo pornográfico e melhores mecanismos de detecção. E admite que, como os recursos não são infinitos, “muitos investigadores enfrentam diariamente a tarefa de fazer escolhas impossíveis entre investigar um caso em vez de outro”.
O material fica com o agressor, é partilhado numa base de um para um ou em comunidades que usam aplicações com comunicação criptografada, como o WhatsApp, ou plataformas alojadas na dark web. Ainda há poucos dias, a Europol desmantelou uma rede que se servia de um fórum ali alojado para traficar droga e pornografia infantil. Com as restrições de viagens impostas pela pandemia de covid-19, as autoridades estão a descobrir um maior recurso de predadores a serviços de livestreaming. Faz-se mediante pagamento, sobretudo a partir das Filipinas.