Ana Sá Lopes, in Público on-line
Margarida Gaspar de Matos é psicóloga especializada em jovens, psicoterapeuta e professora catedrática da Universidade de Lisboa na Faculdade de Motricidade Humana.
Faz sentido esta interrupção das aulas durante 15 dias sem recorrer ao ensino à distância?
Nós estamos mesmo, como dizia Kundera, a viver a vida sem “ensaio geral”. O Governo tentou atrasar o fecho das escolas ao máximo, por se considerar a escola um risco menor , e pelos riscos psicossociais deste encerramento em populações mais vulneráveis ....depois tornou -se inevitável o fecho, mas foi considerado uma interrupção de emergência !
Os privados queriam manter-se a funcionar com ensino à distância mas o Governo proibiu. Por que razão, na sua opinião?
Entendo a relutância dos privados ... mas justamente os privados não tem internamente as iniquidades que há no público ! Da maneira que eu vejo a situação , o Governo está a tentar não criar maiores clivagens entre a população escolar “regular” e todas as crianças com vulnerabilidades ... que existem no serviço público ... o Governo preferiu andar passo a passo ...e certamente se daqui a 15 dias não for possível abrir , haverá ensino a distância! Não se pode comparar as contingências do ensino público e privado ... há muito mais miúdos no público , são uma população muito mais diversa e com muito mais vulnerabilidades . E parece-me que a ideia é criar “cenários” que não facilitem exclusões sociais.
A demora do Governo em fechar as escolas deve-se à ideia de que o ensino à distância prejudica as crianças mais pobres?
O ensino a distância é e será sempre um plano B. A escola é um ecossistema de aprendizagem mas também de socialização e bem estar! O online será sempre um plano B. Este plano B implica computadores , acesso a net, algum apoio em casa, condições em casa para o acesso e a concentração ... as crianças com menor estatuto sócio-económico têm menos frequentemente estas condições em casa. Mas não é só uma questão de pobreza ... há situações de convívio com violência doméstica, problemas de saúde mental dos progenitores, alcoolismo ... por isso tudo o tal plano B perturba (ainda) mais as crianças mais vulneráveis ...
O Governo prometeu que haveria material para que o ensino à distância corresse o melhor possível.. Isso aconteceu?
O primeiro confinamento apanhou (por todo o mundo) as escolas desprevenidas! Aqui em Portugal até se recuperou a “telescola “ uma iniciativa até original na Europa. A questão terrível desta pandemia é que se tem sempre que trabalhar por “cenários “. Daqui por 15 dias talvez (eu tenho pouca expectativa mas...) talvez as escolas tenham as condições de segurança para as aulas voltarem a ser presenciais ... ou no mínimo haverá melhor preparação para uma oferta ampla online. Mas as escolas abrirem presencialmente e mais de metade dos professores estarem em isolamento profiláctico também não é uma boa solução ...
Consegue prever o que se vai passar nas escolas quando passarem estes 15 dias de “férias"?
Ainda hoje estou a assistir a apresentações de projectos de doutoramento dos nossos alunos! Muitos deles são professores e também estão a achar difícil regressarem logo daqui por 15 dias! São jovens professores e estão confiantes. Referem que as plataformas já são muito mais usadas e professores e alunos estão mais treinados! Neste momento estava a gerar-se tanta “incerteza” que este fecho vai permitir recuperar um registo de “serenidade”, para os miúdos, pais e professores! E o Ministério tem 15 dias para criar cenários e planos de acção para cada um desses cenários! Se tiverem de ir "todos para casa”, temos que considerar a sério as vulnerabilidades de que já falámos! A mim preocupa-me agora e em primeiro lugar, fazer barreira a este aumento terrível da transmissão do vírus! Esta inquietação perturba-nos a todos, é potencialmente letal para todos e a incerteza é difícil de gerir! Em segundo lugar preocupa-me a segurança física, mental e alimentar de algumas crianças para as quais a escola é um cenário de segurança. Dizia-me um miúdo "come-se sempre melhor na escola”. Esta afirmação foi para mim assustadora , até porque do nosso estudo sabemos que em geral os miúdos não gostam mesmo da comida do refeitório da escola ... imagine agora miúdos para quem aquela comida terrível é considerada a melhor opção alimentar por alguns .... ainda neste nosso estudo verificamos que há miúdos que referem violência em casa ... Uma das coisas a garantir é a segurança alimentar e física/mental . Accionar a distribuição alimentar (está a ser feito) e as comissões de protecção ...
Preocupa-me a saúde mental dos miúdos ... para além dos miúdos com vulnerabilidades específicas .... há aqui muita carga de incerteza ...de fadiga pandémica, de desesperança , de falhas importantes na socialização própria destas idades ... do receio pela saúde física deles e dos familiares ( em especial Covid) do receio pelo futuro da situação profissional dos pais ... muita preocupação e incerteza para um período de vida com outras tarefas de desenvolvimento mais desejáveis....
Por fim (apenas em quarto lugar) estou preocupada com as aprendizagens! Este é um assunto muito sério a ser levado muito a sério num futuro muito próximo... mas para mim o mais simples de resolver e o menos urgente! Talvez até venha a ser uma mais-valia, obrigando a uma revisão curricular e didáctica