29.1.21

"Pobreza é estrutural também porque o elevador social não funciona "

Leonídio Paulo Ferreira, in DN

A Fundação Francisco Manuel dos Santos vai apresentar neste ano os resultados de dois grandes estudos, um sobre a pobreza em Portugal e outro sobre os impactos económicos, políticos e sociais da covid-1, revela Gonçalo Saraiva Matias, diretor de estudos da FFMS.

Entre os projetos que a fundação tem para 2021 há dois grandes estudos - um sobre a pobreza em Portugal e outro sobre o impacto da covid-19. Neste momento, eles não são praticamente a mesma coisa? A covid-19 não vai influenciar decisivamente a pobreza em Portugal?
Sim. Há claramente uma relação entre o problema da covid e da pandemia e a pobreza, embora estes estudos tenham âmbitos muito diversos. O estudo da pobreza cobre o problema da pobreza em Portugal mesmo antes da covid-19. Infelizmente, o problema da pobreza em Portugal não é um problema recente, não começa com a covid-19, muito longe disso. Esse estudo é feito ainda antes da pandemia e vai estudar - é por isso que ele é muito interessante e é isso que traz de inovação em relação a outros estudos sobre este tema - trajetos de pobreza. Portanto, ele vai olhar para pessoas, vai olhar para famílias, e vai perceber como é que essas famílias estão em pobreza, como é que evoluíram na sua situação de pobreza e como é que algumas puderam sair dela, ou não, e outras entraram na pobreza. Nós vamos olhar para percursos e projetos específicos de pessoas e perceber como é que elas evoluíram nessa situação. No seguimento que faremos do estudo, vamos olhar para esses perfis no contexto da pandemia e perceber como é que a pandemia influenciou esses perfis. Agora, infelizmente, temos de concluir - e a área da pobreza e da desigualdade é uma área a que a fundação se tem sempre dedicado muito -, temos de reconhecer que as questões de pobreza e de desigualdade são muito radicadas em Portugal e que só podem ter agravado com a pandemia. O estudo da pandemia, nesse aspeto, vai olhar para as consequências económicas e familiares da pandemia.

Olhando para o estudo da pobreza, quando diz que estudaram percursos de indivíduos ou de famílias, consegue antecipar se a pobreza em Portugal é muito transmitida geracionalmente? É possível dizer que o elevador social em Portugal funciona mal?
Exatamente. Podemos dizer que temos em Portugal uma pobreza endémica, uma pobreza que é estrutural. É estrutural, em parte, também por isso, porque o elevador social não funciona. Nós vemos nesses perfis, nesses percursos de pobreza, uma enorme dificuldade de as novas gerações saírem da pobreza. Algo que, há algumas décadas, estava a funcionar melhor, também porque nós partimos de um patamar mais baixo e a educação tinha um efeito multiplicador na saída da pobreza e no acesso aos bens económicos. Hoje, vemos que esse elevador social é muito mais difícil de funcionar - alguns dizem até que ele está avariado.

Nessa pobreza endémica que há em Portugal, o fator geográfico, ou seja, viver na grande cidade ou na periferia, viver no litoral ou viver no interior, explica-a ou ela encontra-se espalhada por todo o país?
Infelizmente, ela encontra-se espalhada por todo o país. Nós tivemos na experiência da anterior crise económica - 2011 a 2014 - já uma pobreza no contexto urbano. Portanto, hoje podemos encontrar perfis de pobreza quer no contexto rural quer no contexto urbano, e a lição que tirámos da anterior crise económica que, infelizmente, agora está a ser vivida novamente, é de que a pobreza em contexto urbano é ainda mais grave do que a pobreza em contexto rural.

Consegue explicar esse conceito de grave?
Sim. Se olharmos para a distribuição do rendimento, é evidente que temos muito mais rendimento no litoral e nas grandes cidades do que no interior, obviamente que o interior é mais pobre e produz menos riqueza. Quanto a isso não temos dúvidas, mas quando olhamos para os perfis de pobreza, quando olhamos mais em detalhe, vamos encontrar pobreza nos dois contextos. Porque é que a pobreza no contexto urbano é mais grave do que a pobreza em contexto rural, como eu dizia há pouco? Porque no contexto rural há ainda uma economia de subsistência. Temos uma população mais envelhecida e que está muito habituada, até por tradição, a ter uma economia de subsistência. Portanto, apesar de ter uma pobreza que em termos absolutos até pode ser mais acentuada, é uma pobreza que em termos individuais acaba por não ser tão penalizadora como a urbana porque as pessoas têm a sua subsistência própria, têm a sua leira de terra, têm o seu cultivo de subsistência e, portanto, essa pobreza acaba por ser atenuada de alguma forma por esse modo de vida. A pobreza urbana é mais penalizadora porque as pessoas não têm essa economia de subsistência e há uma rede de solidariedade muito mais frágil do que aquela que existe no contexto rural - o contexto de vizinhança, de solidariedade, de família, é muito mais desagregado no contexto urbano do que no contexto rural. Nós encontrámos - e isso é uma lição da crise muito dura, a pobreza no contexto urbano é quase absoluta - situações em que as pessoas - e isso vê-se nas cidades - voltaram a procurar no lixo, voltaram a procurar formas de alimentação e estão em situações de subnutrição muito, muito graves. Depois, há também aquilo que se pode designar como uma pobreza envergonhada no contexto urbano. Enquanto no contexto rural há muito mais essa partilha das condições de vida, no contexto urbano há quase uma valorização também da imagem e do modo como as pessoas se projetam para o exterior muito mais do que no contexto rural. Essa pobreza envergonhada leva a que as pessoas não procurem convenientemente ajuda, não procurem as suas redes de suporte, não procurem essa ajuda na família.

Esse estudo da pobreza foi feito antes da chegada da pandemia, mas há outro estudo grande feito neste ano pela fundação que mede os impactos económicos, sociais, da pandemia. Fazendo ainda a ligação com a pobreza, o facto de alguns tipos de trabalhadores poderem estar em teletrabalho e outros não; o facto de as condições das crianças em casa divergirem muito e estarmos num sistema em que não há aulas ou são online, tudo isso potencia o agravamento das desigualdades?
Sim. Antes de mais, gostava de enquadrar este estudo. Penso que é o maior estudo e o mais profundo sobre esta matéria em Portugal. Nós entendemos na fundação que um evento como este da pandemia que estamos a viver justificava, ou quase exigia de uma instituição como a nossa, que pudéssemos lançar um grande estudo até para ficar para memória futura - é muito importante a ideia da memória futura -, pois nós daqui a 15 ou 20 anos vamos querer saber o que é que se passou na pandemia, quais foram os efeitos que a pandemia teve, uma vez que isto é um evento único nas nossas vidas e, certamente, vai mudar o nosso país para sempre. Nós achámos que era fundamental este estudo para memória futura. O estudo vai assentar em três áreas - na área económica; na área das instituições e, aqui, também no contexto internacional; e na área da sociedade. Vai ser um estudo transversal. Não vamos fazer estudos parcelares, não vamos fazer o estudo económico da pandemia ou o estudo social da pandemia ou o estudo político da pandemia, vamos fazer um estudo transversal que é para perceber em temas e eixos fundamentais qual é o impacto da pandemia. É claro que há uma área muito importante e à qual nós damos destaque neste estudo, que é precisamente a área social. A pandemia tem e vai ter impactos sociais muito relevantes, nomeadamente nas famílias. Já está a ter - nós vemos o crescimento do número de divórcios, vemos o crescimento dos problemas da saúde mental porque, de facto, a nossa sociedade não está estruturada, as nossas famílias, as nossas casas, não estão estruturadas para aguentar um período de confinamento...

Portanto, não é só a questão das desigualdades sociais, quando fala aqui do social também se está a referir a outro tipo de fenómenos, nomeadamente, os divórcios e outros tipos de comportamentos familiares.
Exatamente. Vamos olhar para a sociedade em termos micro e em termos macro e perceber qual é o impacto que isto tem na nossa sociedade. Claro que, em termos de desigualdade, uma situação como esta também agrava essa desigualdade. Por um lado, agrava a pobreza porque nós temos uma crise económica muito acentuada e essa é uma outra dimensão que o estudo vai analisar, mais uma vez a nível macro e micro, não é só o impacto económico que isto tem no país como o endividamento, mas também qual é o impacto que tem nas famílias, no emprego. Há uma crise económica muito acentuada e há uma perda muito acentuada de emprego e, depois, ainda por cima não há uma afetação do emprego por igual, pois há áreas que estão especialmente afetadas com o é o caso do turismo, das pequenas empresas, dos prestadores de serviços, daqueles que têm menor estabilidade, que sofrem o impacto brutal desta crise económica em resultado da pandemia. Todas essas desigualdades vão acentuar-se, há uma perda de rendimento muito significativa e, evidentemente, nas famílias é muito diferente um confinamento - isso foi muito discutido em certa altura - que é vivido numa casa com todas as condições e com uma divisão para cada pessoa ou num pequeno apartamento onde uma família numerosa tem de conviver. As consequências que isto tem no plano do desenvolvimento individual, do desenvolvimento das crianças e até num assunto que é hoje fundamental que é o da saúde mental, é completamente diferente. Alguém que vive meses e meses a fio confinado com uma família numerosa num pequeno espaço vai sentir consequências psicológicas e de desenvolvimento individual que são duradouras, até na própria convivência entre as pessoas, como digo, a questão dos divórcios é uma questão que está muito agravada por isto.

Vou passar para a sua componente de professor de Direito Constitucional - neste contexto de que estamos a falar, da pandemia, as próprias instituições, o próprio Estado, a própria Constituição, tiveram aqui um desafio tremendo com esta pandemia, ou seja, nós não tínhamos a experiência de viver em estado de emergência. As respostas têm sido as possíveis?
Sim. De facto, isto para um constitucionalista é um desafio único, porque nós não tínhamos tido em toda a vigência da nossa Constituição, nos últimos 45 anos, um estado de emergência. A última vez que tivemos foi em 1975, antes da vigência da Constituição, e por razões e num contexto muito diferentes. Não nos passava pela cabeça, ninguém em Portugal sabia o que era viver em estado de emergência, tivemos de nos adaptar e de aprender um pouco como fazer. Há um primeiro aspeto que eu gostava de destacar em termos institucionais no que respeita ao estado de emergência, que é importante e que resulta da nossa Constituição - eu acho que a nossa Constituição respondeu muito bem a este desafio. Esse primeiro aspeto tem que ver com a necessidade de consenso institucional para a declaração do estado de emergência, que era uma coisa que nós só conhecíamos na teoria e que depois, na prática, acabou por funcionar bem. O que é que eu quero dizer com isto? Estamos a viver nesta semana a décima declaração de estado de emergência e para cada uma delas, destas dez declarações de estado de emergência, é necessário haver uma declaração que é feita pelo Presidente da República; é necessário haver uma não oposição ou um parecer do governo favorável; e é necessário haver uma autorização da Assembleia da República. Portanto, temos os três principais órgãos do Estado - Presidente da República, Assembleia da República e Governo - a estarem de acordo quanto a esta declaração. Quando falo em Assembleia da República estou a referir-me naturalmente a todos os partidos que lá estão representados, portanto há também esse consenso político que tem de resultar aqui. Ora bem, isto é fundamental, pois a pior coisa que podíamos ter num contexto pandémico, num contexto de estado de emergência, era uma falta de sintonia institucional. Numa primeira fase, aliás, Portugal foi muito elogiado por isso. Houve outros países nossos vizinhos que lidaram de forma muito mais tardia e pior com a crise, justamente porque não tinham esse consenso institucional. Acho que esse consenso institucional, em boa medida, foi promovido pela Constituição e pelo modo como nós desenhámos o estado de emergência que, num certo sentido, forçou toda a gente a pôr-se de acordo, forçou toda a gente a ter de se pronunciar. Claro que nem tudo correu bem, claro que tivemos depois momentos de falta de sintonia, mas esses momentos de falta de sintonia aconteceram mais quando a pandemia, num certo sentido, abrandou, o que correspondeu ao período do verão. Alguns até disseram que era bom o regresso da política, porque esta tinha estado como que adormecida durante o tempo inicial, de choque do estado de emergência. Depois, quando houve um certo relaxamento, voltou a política, voltou a controvérsia, voltou o debate. Essa controvérsia manteve-se ali durante os meses de verão, mas quando a pandemia volta a piorar o consenso volta.

Pegando nessa sua palavra -"consenso" - em relação à pandemia, aquilo que se notou em Portugal, mas até mais noutros países, foi talvez uma falta de consenso em relação ao perigo que trazia esta pandemia, com um campo quase negacionista. Aqui aproveitava a sua experiência de investigação nos Estados Unidos, e nós sabemos que a clivagem muito forte existente nos EUA já vinha de antes de Donald Trump, mas provavelmente acentuou-se com ele. É possível dizer que a pandemia veio tornar ainda maior essa divisão na sociedade americana, nomeadamente quase que aparecia um campo republicano negacionista e um campo democrata mais pragmático?
Penso que sim, claro que sim. Essa crise é uma crise que não nasce com a pandemia, vem de muito antes. Eu acho até que a grande clivagem hoje - e não é só nos EUA, ela também está presente na Europa, na América Latina e um pouco por todo o mundo - é entre os moderados e os radicais, muito mais do que uma clivagem ideológica entre esquerda e direita, republicanos e democratas, é uma clivagem entre os moderados e os radicais. Claro que Donald Trump liderou, até em termos mundiais, esse movimento de radicalização. É um movimento que é muito potenciado pelas redes sociais, pelo antagonismo, até pelo combate à globalização, contra o internacionalismo, contra o multilateralismo, a favor do unilateralismo no fundo. Esse antagonismo, que é uma guerra de trincheira, uma guerra tribal, parte muito de um combate sobre factos radicais e sobre factos que, muitas vezes, partem de uma base falsa. Por isso é que a missão da Fundação Francisco Manuel dos Santos e de instituições como a nossa é hoje muito mais importante do que alguma vez foi. Pelo menos, os factos têm de ser reais. O problema desta clivagem radical é que parte de factos absolutamente falsos, e Donald Trump cresceu muito na base disso, na base de factos falsos e da criação de antagonismos. Isso agrava-se com a pandemia porquê? Porque a pandemia tem todos os ingredientes. Antes de haver pandemia, o que é que provocava este antagonismo? Era a imigração, era a insegurança, era o terrorismo, portanto, tudo aquilo que instila medo nas pessoas. O medo traz irracionalidade, o medo leva a que as pessoas acreditem em qualquer coisa por mais fácil e diabólica que ela seja. Ora, a pandemia é o caldo ideal para isso, porque a pandemia traz medo e, com ela, factos que são absolutamente falsos. Nós temos de partir de factos reais, nem mais nem menos do que aquilo que eles são. Convido todos os leitores a visitarem o site da Pordata onde estão os números da crise e os factos. Estão lá os factos em relação a Portugal e em relação ao mundo. Isso é que me parece fundamental. Nos Estados Unidos, apesar de tudo, a eleição de Joe Biden traz um horizonte de esperança, porque há um regresso ao multilateralismo, o que significa um diálogo profícuo no mundo, que era algo que Donald Trump tinha abandonado, e, por outro lado, há também um regresso a uma política de verdade.