Há questões culturais, históricas e sociais para se passar tanto frio no inverno em Portugal. Estar confortável em casa ainda é um luxo
O primeiro fim de semana com novas medidas de confinamento foi marcado por imagens. A maioria veio da rua: imagens de gente em fila para votar antecipadamente nas eleições presidenciais, imagens de grupos a descumprir o dever de recolhimento. Carlos Aires, bastonário da Ordem dos Engenheiros, viu todas essas imagens, mas viu também outras, que vieram de dentro de casa.
“Fotografias de um casal em casa enrolado em cobertores e com um aquecedor à frente. É confrangedor”, confessa. O Expresso contou algumas dessas histórias, de quem nem em casa consegue fugir do frio. Como muitas outras, são histórias de desigualdade e de pobreza. “Com os salários que há em Portugal, as pessoas só podem ter casas dessas”, onde se passa frio, explica o bastonário. Mas o dinheiro não é a única variável em falta. Então afinal, por que se passa tanto frio em casa em Portugal?
Há uma resposta cultural e outra histórica. “A maior falácia é a de que temos um clima ameno”, frisa Carlos Aires. “É vulgar, no Alentejo, um local com 45ºC no verão atingir -4 no inverno. É uma amplitude de quase 50 graus.” Nada disto é novidade, nem pode ser atribuído às alterações climáticas. “Sempre foi assim, e depois, de cada vez que vem uma vaga de frio, gritamos 'ai, ai, ai'”.
A ideia culturalmente aceite fez nascer prédios e moradias onde o conforto térmico, no verão ou no inverno, nunca foi prioritário. Nos anos de 1950, lembra Carlos Aires, como no boom da construção entre as décadas de 70 e 80, “havia no mercado práticas e materiais inadequados”.
As janelas de alumínio, o vidro simples, os telhados com fugas — “a telha vã, como lhe chamamos” — deram origem a um parque habitacional hoje “envelhecido”, e em grande parte “com humidades interiores”, feito de construções “mal orientadas”, que, outra vez o clima, não aproveitam o sol que aquece o país durante mais de metade do ano. “Há casas que nunca apanham sol, o que no verão pode ser muito bom, mas no inverno é um martírio” transformado em humidade e bolor.
Muitos dos edifícios em Portugal foram construídos sem pensar na orientação solar, consideram especialistas
PATRICIA DE MELO MOREIRA
“É triste que num país com tanto sol não consigamos tirar partido disso. É muito fácil orientar bem um edifício”, garante Aline Guerreiro, arquiteta coordenadora do Portal de Construção Sustentável (PCS), que em 2017 lançou um inquérito, em parceria com a Quercus, sobre o conforto térmico em casa, ao qual 80% dos interpelados responderam que têm de gastar muita energia para estarem confortáveis. Três anos depois, acredita a arquiteta, não há resposta substancialmente diferente para dar. “É um problema de fundo, porque foram usados os materiais mais baratos durante muito tempo.” O PCS prepara novo inquérito para “perceber o que mudou”.
Quanto a isso, Aline Guerreiro não está particularmente otimista. A arquiteta conta que mesmo hoje, em consultas de apoio à construção de edifícios sustentáveis, a prioridade é sempre baixar o preço, recorrendo a materiais à base de petróleo para isolar os edifícios. “Esses materiais, que são muito mais baratos, são péssimos em durabilidade”, por oposição à cortiça e a outras matérias-primas que, mais duráveis, não obrigam a trocas permanentes.
“A dificuldade é convencer as pessoas a pensar a longo prazo”, confessa a arquiteta. E mudar os fatores que atraem um comprador. “Não adianta aparecer uma casa bonita com hidromassagem, que é uma coisa que agarra logo as pessoas, se depois obrigar a gastos enormes para se manter quente”.
Falta mudar a mentalidade. E não apenas a dos consumidores. Aline Guerreiro deu aulas de Arquitetura no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, e lembra que a questão ainda não é transversal. “Os cursos estão muito voltados para a estética. Os estores, por exemplo, devem ser postos sempre do lado interior” da casa, para a aquecer. Mas não é isso que acontece, porque professores e alunos ainda procuram a nota artística. Até a sustentabilidade é ainda “um apontamento”.
UM SÉCULO DE VIRAGEM
O que acima se descreve não é a regra do século XXI. A partir de 2006, passou a ser obrigatório apresentar o Certificado de Eficiência Energética, que impõe um isolamento eficiente aos novos edifícios ou aos reabilitados, nomeadamente nas janelas. Para estas novas construções, o desafio que hoje se coloca é de confiança.
Aline Guerreiro considera que é preciso uma fiscalização rigorosa, para que não haja edifícios que se dizem isolados, mas não são. Já Carlos Aires recorre algumas vezes à expressão “não vender gato por lebre”. Diz que é uma questão de justiça os consumidores serem protegidos, já que não têm conhecimentos técnicos para perceber as condições de uma casa. “Tem de haver uma ficha técnica assinada por todos os intervenientes a explicar o que foi feito, e tem de ser entregue ao comprador. Se, por ventura, houver alguém que minta, então aí é um caso de justiça”, atira o bastonário dos engenheiros.
O momento é de viragem e de oportunidades. Carlos Aires lembra os esforços do Governo, nesta e na anterior legislaturas, que “têm de ser reconhecidos”, não só na inclusão do tema da eficiência energética no Plano de Recuperação e Resiliência como em vários programas pontuais, como o “Edifícios Mais Sustentáveis”, que em 2020 cobriu parte das despesas de melhoramento energético em casas anteriores a 2006. Estes programas são, porém, “ainda insuficientes”.
Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero, que há dias lançou um alerta e uma série de conselhos a quem passa frio em casa, pede que “a climatização necessária seja feita fundamentalmente com recurso a fontes de energia renováveis”. É que, além do peso na fatura dos consumidores e das infames estatísticas sobre um frio que mata, “o aquecimento ambiente ainda tem uma componente de poluição associada a vários níveis, conforme o tipo de equipamento utilizado”.
E são vários, elenca o dirigente: o gás natural, um combustível fóssil; sistemas elétricos, “que ainda têm alguma utilização de combustíveis fósseis na sua produção”; lenha nas lareiras, “que conduz à libertação de partículas para a atmosfera que são nocivas para o nosso sistema respiratório”.
Para os três especialistas ouvidos pelo Expresso, a prioridade é reabilitar, reabilitar, reabilitar. É certo que “há casas em que não vale a pena investir um cêntimo”, como avança Carlos Aires, mas “por princípio, é pior destruir e fazer de novo do que remendar”, contrapõe Aline Guerreiro, a começar por isolar as fachadas, prédios inteiros, alterar as caixilharias.
Em qualquer caso, “estamos a falar de milhares de milhões de euros” e de alguns anos de travessia num deserto frio. Até que não haja mais ninguém a passar um confinamento em casa, ao frio. Ou a morrer de frio, como reforça Carlos Aires. “É o mínimo aceitável.”