Natália Faria (texto) e Manuel Roberto (fotografias), in Público on-line
À medida que a crise pandémica avança, aumentam os que de forma envergonhada engrossam as filas de distribuição de refeições. São os desempregados dos ginásios, da restauração, dos cafés e dos eventos, a juntarem-se aos sem-abrigo e reformados de sempre. Reportagem no projecto “Porta Solidária”, no centro do Porto.
“Épreciso declaração para vir buscar comida amanhã?”, pergunta baixinho a senhora, roupas limpas e cabelo cuidado, enquanto recolhe o seu saco da comida que há-de ser o seu jantar, numa pressa sem paragens e sem direito a perguntas intrusivas dos jornalistas. A pergunta repete-se na boca de vários dos que, na quinta-feira à noite, a poucas horas de o país se fechar num novo confinamento geral, enfrentaram o frio para recolher a refeição gratuita no projecto “Porta Solidária”, que a paróquia do Marquês tem a funcionar no centro do Porto.
O relógio passa pouco das 17h e já dezenas de pessoas se alinham dentro dos resguardos sem falar. Um silêncio profundo e envergonhado naquela meia dúzia de metros, por onde, em pouco mais de duas horas, passam diariamente cerca de 600 pessoas a ir buscar comida. Faz muito frio, frio a sério, daqueles que não se resolvem com casacos quentes e cachecóis. Ainda assim, há crianças com mochilas escolares às costas guiadas pela mão dos pais, homens com sapatos reluzentes e portátil a tiracolo, jovens com polares e sapatilhas de marca que, a julgar pela indumentária, se esperaria ver num festival de música muito mais do que numa fila para uma refeição grátis.
“Aos sem-abrigo e aos reformados que vivem em quartos de pensões, juntaram-se os que trabalhavam no sector do turismo e da restauração, nas esplanadas, que tinham empregos diferenciados mas com contratos precárias ou sem qualquer contrato. Muita gente ligada ao pequeno comércio, aos cabeleireiros e esteticistas, os personal trainers dos ginásios”, avisara já o padre Rubens Marques, que coordena este projecto, dimensionado para 40 refeições e que, segundo antevê, aumentará dentro de pouco tempo para mais perto de um milhar, quando mais empresas começarem a sucumbir ao segundo confinamento geral. “Muitas destas pessoas que, durante o Verão, tinham voltado a trabalhar, ainda que sem vínculo ou a recibos verdes, vão voltar a ficar sem emprego”, antecipa.
Estes são os que se esquivam às perguntas, acelerando o passo à medida que passam pelos dois pontos de distribuição de comida: no primeiro, um saco com três sandes (de queijo, marmelada e compota), quatro iogurtes e um pão seco; no segundo, sopa, pão e um tupperware descartável com massa de frango, além de kiwis. A seguir à segunda mesa de distribuição, com atoalhados cor de laranja daqueles impermeáveis para ser mais fácil a desinfecção, um homem, também sem qualquer sinal exterior de pobreza encardida, tenta travar as lágrimas enquanto explica a uma voluntária que está em risco de perder a filha de 12 anos por já não ter como pagar a renda de casa. “Já foi à Segurança Social?”, pergunta, solícita, a mulher, assegurando-lhe que, a não ser que haja maus-tratos, ninguém lhe tirará a filha por falta de rendimentos. “Maus-tratos!? Eu tiro da minha boca para pôr na da minha filha! E na Segurança Social, neste momento, não atendem ninguém…”, desespera-se o homem, que sai dali com pacotes de leite extra e uma referenciação para outro serviço.
"Isto psicologicamente destrói as pessoas"
Na fila, continua o ver-se-te-avias com as pessoas a chegar e a sair como se levassem cães a morder-lhe os calcanhares. Emília, 74 anos, empregada doméstica interna no tempo em que muitas famílias se davam a esse luxo, perde apenas o tempo suficiente para dizer que a pandemia tanto se lhe deu. “Já estava mal antes, mal continuo”, despacha, explicando não casou nem teve filhos para não ver repetir-se vida fora o exemplo com que cresceu do pai a bater na mãe e nos filhos dia-sim-dia-sim, de modo que, extintas as forças para trabalhar, se viu sozinha num quarto com direito a microondas. A vergonha, se a sentiu, já desapareceu há muito. “Venho da Areosa para aqui todos os dias. Não percebo esta juventude que se vê agora aqui: fizessem como eu que quando trabalhava tinha cama e mesa e não pagava água nem luz nem telefone”.
Se dependesse de si, José Fernando, um electricista de 50 anos sem perspectivas de voltar a arranjar emprego, não punha cá os pés. “Isto psicologicamente destrói as pessoas. Claro que a família e os amigos não sabem, mas não é por isso que custa menos cá vir”, declara, rabo-de-cavalo, brinco na orelha e óculos pousados sobre a cabeça, congratulando-se pelo facto de a máscara lhe esconder o rosto. Depois de anos a aguentar uma renda de 450 euros, mudou-se há dois meses para uma casa social cuja renda desceu para os 69,67 euros. “A minha mulher trabalha, ganha 600 euros e qualquer coisa, mas o dinheiro fica contadinho. Só não venho todos os dias porque tenho de pagar um euro e vinte para cá e outro tanto para lá”.
Do lado de dentro do edifício colado à igreja, o padre Rubens Marques explica que o serviço foi concebido para “as pessoas que estão no limite”. Por isso é que, além da distribuição gratuita da refeição, asseguram a distribuição domiciliária de cabazes alimentares, “para evitar ao máximo que as pessoas que têm casa, fogão e energia, tenham de aparecer aqui com crianças”.
Mesmo assim, uma antiga trabalhadora na área da organização de eventos cujo nome não vem ao jornal (“por causa do estigma”, desculpa-se) prefere percorrer a pé os 45 minutos de caminho que a separam de casa, em Vila Nova de Gaia. “Se tiver de cozinhar em casa, gasto mais em água e electricidade”, explica, para acrescentar, meio a sério meio a brincar, que a caminhada, que é diária desde que em meados de Março a pandemia e o respectivo confinamento reduziram os eventos e os espaços de animação nocturna a zero, é uma forma de se manter em forma: “O dinheiro deixou de chegar para o ginásio.”
Vê-se que é bonita, apesar da tez morena tapada pela máscara e o cabelo pelo gorro. Entre os amigos, nem os mais chegados a sabem nesta fila. “Muito menos aqueles com quem trabalhava, porque sinto que, se soubessem que cheguei ao ponto de ter de pedir uma refeição grátis, não voltaria a ser contratada outra vez”, diz, num discurso limpo, e explicando que, quando estava empregada, a recibos verdes, trabalhava como barmaid e ajudava a recepcionar os convidados. “Até Fevereiro, ainda tenho o subsídio de desemprego a entrar, mas é pouco, não chega a quatrocentos euros”. O filho, que trabalhava como segurança de eventos desportivos e nocturnos, também ficou sem trabalhar. “A minha sorte é que, há uns anos, decidi comprar a casa ao banco e agora as moratórias estão a ajudar. Sem isso, já estaríamos na rua.”
Sem fim à vista para a pandemia, e receosa de que, mesmo com a vacinação disseminada, as pessoas resistam a largar a máscara e voltar a juntar-se em eventos com muita gente, teme que os 44 anos de idade a façam velha para encontrar trabalho. “Basta ver os anúncios de emprego”. Por enquanto, está a conseguir manter em dia a prestação ao banco e as contas da água e da luz. “Mas já estou com uma dívida gigante no condomínio. A senhora da limpeza tem de receber o seu ordenado, há a electricidade do próprio prédio, e neste momento não estou a contribuir para nada disso”, relata, como quem sente necessidade de justificar a sua presença nesta fila. “Arranjava sempre desculpas para não vir. Tinha vergonha. Agora, tornou-se mais normal. Quando não há dinheiro a entrar, temos de procurar formas de comer.”
O boom da pobreza ainda está a chegar
Por ironia, e porque a pandemia não poupa ninguém, muito menos os que ganhavam a vida nos restaurantes, o cozinheiro de serviço, que aproveitou os layoff intermitentes para se voluntariar a vir aqui cozinhar, está também ele agora com medo de perder o emprego. “A situação dos restaurantes não está nada boa. Onde trabalho temos uma garantia verbal do patrão que disse que, se a situação se normalizar depois de Março, voltámos ao layoff mas temos os empregos assegurados até lá. Mas ninguém garante nada”, explica Gustavo Ferreira, concluída já a confecção da massa que o trouxe a esta cozinha. “Vi um anúncio no Facebook, pedindo ajuda e doações, e decidi oferecer o meu trabalho. Aqui é muito diferente do restaurante: as preparações e a mise en place são completamente diferentes, até porque não há uma ementa imensa como no restaurante. Mas faço com muito gosto”, recua.
Tem 47 anos, divorciou-se há três anos do Brasil onde nasceu e viveu até então, “não só por causa do Bolsonaro mas dos 57 milhões que votaram nele”, e preparava-se para acolher uma das duas filhas que, terminado o 12º ano, planeia estudar fotografia em Portugal. “Só espero que esta pandemia não vá para lá de Março”, diz como quem esconjura o risco de se tornar um dos que aguardam na fila por uma refeição.
Não é pequeno o risco, a crer no que relata a presidente da Cáritas Portuguesa, Rita Valadas. “Estão a aparecer famílias inteiras ligadas à restauração. Algumas pessoas eram donas de restaurantes ou que tinham negócios tipo uber e que a pandemia deixou com muitos problemas para resolver, algumas com dívidas, rendas e salários para pagar, mesmo que tenham posto os funcionários em layoff”, descreve quando o PÚBLICO lhe pergunta a que ponto mudou o perfil das pessoas que recorrem à Cáritas, para apoio alimentar ou financeiro. “Algumas destas pessoas que nos procuram entravam na Cáritas pela porta de quem dá. E têm agora imenso pudor em pedir”, acrescenta, justificando assim a aposta na distribuição de vales de alimentos e bens essenciais.
Apoio alimentar chega a 4% da população
A Cáritas Portuguesa apoiou mais de oito mil pessoas em dificuldades devido à pandemia gerada pelo novo coronavírus. Entre Abril e Dezembro do ano passado, mais de oito mil pessoas recorreram à ajuda prestada por aquela rede, constituída por 20 instituições diocesanas espalhadas pelo país. No tocante aos apoios financeiros, foram atribuídos 124.525 mil euros, repartidos pelo apoio ao pagamento de rendas (63%), despesas relacionadas com saúde (165) e pagamento de despesas de electricidade (10%).
Àquele valor, acrescem os 82.500 euros que a Cáritas distribuiu em vales destinados a suportar as despesas com alimentação e bens essenciais para a subsistência das pessoas. Num comunicado emitido esta semana, a Cáritas explica que os pedidos de ajuda decorrem maioritariamente da “redução significativa de rendimentos” pela perda de postos de trabalho e por rendimentos insuficientes para fazer face às despesas, sentidos pelos cidadãos portugueses mas também por “muitos migrantes que vivem de forma directa os efeitos desta pandemia”.
A estes apoios somam-se, entre vários outros, os prestados pela Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome, constituída por 21 bancos alimentares, que viu somarem-se 60 mil novos pedidos de ajuda, além das 380 mil pessoas “que já eram apoiadas antes da pandemia”, conforme adiantou ao PÚBLICO Isabel Jonet. “O número de pessoas que chegam à procura de apoio alimentar está a aumentar, sobretudo desde a última semana de Setembro, o que justificou a criação da Rede de Emergência Alimentar, que surgiu com uma forma de dar uma resposta mais célere a esta multiplicação de pedidos de ajuda alimentar, nomeadamente aos que nunca tinham estado nesta situação de pobreza e que, de um momento para o outro, ficaram sem rendimentos ou sem qualquer remuneração e que nem sequer sabiam onde se dirigir”, concluiu a representante daquela federação que que distribui “mais de cem toneladas de alimentos por dia destinados aos 4% da população que recebe neste momento apoio alimentar”.
“Os vales surgiram precisamente para proteger a dignidade das pessoas e evitar que estejam numa fila para uma refeição ou para um cabaz, porque é muito difícil a quem, tendo tido uma perspectiva de vida que era de sucesso e de ajuda aos outros, chegar a estas filas. Só depois de muita angústia, esforço e dor é que os vemos cá”, prossegue Rita Valadas, para quem, apesar do que já se vê, “e dos sinais exteriores de alguma facilidade na vida” que são visíveis entre as caras novas dos que ingressam na fila por uma refeição ou por um cabaz”, o boom da pobreza pandémica ainda está em lume brando.
“Sentimos um aumento dos pedidos de vales e de apoio alimentar, mas não são números que nos digam como vai este país. A situação social vai-se perceber quando estas panaceias temporárias, como os layoff do Estado e as moratórias dos bancos, acabarem. Por enquanto, há ainda muitas famílias fechadas em casa, angustiadas com o seu futuro mas em casa. Quando a crise pandémica acabar, e se começar a fazer a síntese dos seus resultados, é que a situação se vai tornar crítica”, antecipa a presidente da Cáritas.