Reportagem Bernardo Mendonça (texto), Tiago Miranda (fotos), in Expresso
O gelo da rua entra na morada dos portugueses e faz aumentar a mortalidade. Casas com mau desempenho térmico são uma realidade expressiva no país
Nas últimas semanas, o sofá de Idalina Nunes passou a ser a sua cama e a sala o novo quarto improvisado. Isto porque é a divisão do seu pequeno apartamento alugado, em Lisboa, onde o frio é mais suportável. Encontramo-la enrolada num xaile e mantas, aquecedor a óleo à sua beira e um saco de água quente a aquecer-lhe os pés. “São o meu problema: os pés e... a carteira.” Não diz a idade, deixou de contar os anos há muito. Tem passado a tarde a ver uma partida de snooker na televisão para espantar o tempo e o frio, mas é à noite que o gelo da rua mais lhe invade a casa. “Só me recordo de sentir assim um frio tão intenso na minha infância, quando vivia na minha aldeia, para os lados de Leiria, quando ia descalça para a escola e a neve caía do céu em farrapos.” Idalina levanta-se e encosta as mãos nas frestas das janelas para nos mostrar como a friagem do exterior entra sem piedade.
Quando já não há mantas que lhe valham, liga o ar condicionado no modo aquecimento, um investimento recente. “Usei as economias para me refrescar nos dias insuportavelmente quentes de verão, mas agora ando a usá-lo também para me aquecer. O ar condicionado e o aquecedor estão a ser os meus salva-vidas, mas nem quero ver a conta que vem aí…” E estende-nos uma carta que recebeu da EDP a informá-la da atualização dos preços da eletricidade, que desde janeiro aumentaram. “Já consegui baixar a potência para pagar menos. Tenho uma reforma pequena, não consigo chegar a tudo. E se tenho medo de apanhar o vírus, também receio adoecer com este frio em casa.”
Trafaria, César Ferreira e Hugo, o filho mais velho, vivem à volta da botija de gás, já que a eletricidade falta a toda a hora
O receio de Idalina é legítimo. Os mais idosos são um dos grupos de maior risco de doença e morte nestas vagas de frio. De acordo com dados do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) — que desenvolveu um sistema de alerta e de impacto, em tempo real, do frio extremo na saúde da população, o sistema FRIESA, com cobertura dos distritos de Lisboa e do Porto —, as temperaturas mínimas observadas e previstas para os próximos dias terão um impacto significativo sobre a mortalidade nestes dois grandes distritos.
“No inverno de 2016-2017 houve em Lisboa e no Porto 839 mortes diretamente atribuídas ao frio, um número particularmente alto em comparação com os outros anos. E, infelizmente, este inverno iremos atingir um impacto semelhante se se mantiverem as previsões das temperaturas baixas. É também expectável que o frio agrave o prognóstico de infeções por SARS-CoV-2 e outras doenças respiratórias e circulatórias. Os maiores impactos ocorrem em especial nos grupos etários a partir dos 65 anos. Uma realidade que se estenderá certamente a todo o país”, alerta Susana Silva, do Departamento de Epidemiologia do INSA.
O problema é que uma quantidade expressiva de portugueses não encontra nas suas casas o abrigo necessário para os invernos mais severos pelo mau isolamento térmico dos edifícios e a falta de serviços energéticos adequados. Uma situação que afeta não só os mais pobres como tem feito tremer de frio a classe média.
SEM DINHEIRO PARA AQUECIMENTOS
De acordo com dados recentes do Eurostat, Portugal está em quarto lugar entre os países da Europa que menos conseguem pagar aquecimento satisfatório nas suas moradas. Quase um quarto dos inquiridos portugueses (18,9%) afirmou ter dificuldade em pagar pelo seu conforto térmico.
Também no apartamento lisboeta de Luís Santos, de 30 anos, e de Joana Tavares, de 37, o frio tem sido dos diabos. Apesar de a casa alugada deste economista e desta designer de comunicação ser charmosa e visualmente agradável, as baixas temperaturas têm obrigado o casal a usar gorro e luvas dentro de portas, além de múltiplas mantas e aquecedores elétricos e a óleo, para cumprirem o teletrabalho. “Esta casa não conserva o calor. Calafetámos todas as janelas, mas não fez diferença nenhuma, o frio continua a entrar, porque são janelas de madeira antiga. O desperdício energético é brutal e a despesa em energia também está a ser enorme. Somos só dois a viver aqui, e em novembro recebemos uma fatura de eletricidade de 103 euros. A mais alta de sempre. Em dezembro pagámos 69 euros e mal aqui estivemos. Estamos a temer o valor da fatura sobre o consumo de janeiro, em que usámos mais os aquecedores.” Luís deixa uma sugestão: “Seria bom influenciar os senhorios a intervirem nas casas que alugam para que passem a ter boa eficiência energética.”
“Se tenho medo de apanhar o vírus, também tenho receio de adoecer com este frio em casa”
Um dos incentivos surgiu o ano passado, com o Programa de Apoio a Edifícios Mais Sustentáveis, que veio facilitar medidas como a instalação de janelas eficientes, isolamentos térmicos, painéis fotovoltaicos e sistema solar térmico, entre outros. Neste caso, o Fundo Ambiental oferecia cerca de 70% da despesa. A procura foi muita e até ao passado dia 31 de dezembro foram submetidas 6996 candidaturas, esgotando a totalidade da verba de 4,5 milhões de euros para 2020 e 2021 (ver texto ao lado).
Mas estas medidas não estão acessíveis a todos e obrigam a fôlego financeiro. Aires Mateus é de opinião que a maioria dos portugueses não tem dinheiro suficiente para recuperar as suas casas. “Insisto: é preciso mais políticas e dinheiros públicos, porque os que existem são manifestamente insuficientes. Se não os portugueses não ‘rapavam’ tanto frio. Qualquer cidadão português tem direito à natural aspiração de não ter frio em casa. Mas isso é ainda um luxo. E não pode ser.”
A POBREZA ENERGÉTICA
A socióloga Luísa Schmidt, investigadora do ICS da Universidade de Lisboa, que coordenou, com Ana Horta, a dimensão socioeconómica de um estudo recente da Agência Nacional de Energia (Adene), tem um nome para esta realidade preocupante que afeta tantos portugueses: pobreza energética. “Esta questão é ainda muito pouco considerada no país pelas instituições, e só muito recentemente começou a ter atenção política, porém abrange muitos portugueses, dos mais pobres à classe média.”
Schmidt alerta para que a pobreza energética é causada pela seguinte equação: “Baixa qualidade de construção de muitos edifícios residenciais, com consequente mau desempenho energético, mas também os elevados preços da energia e os baixos rendimentos de uma grande parte da população. Nesta mesma linha, e surpreendentemente, temos um dos mais elevados índices de excesso de mortalidade no inverno, que está associado à pobreza energética.” De acordo com o último Census, de 2011, mais de quatro milhões de portugueses usavam aparelhos móveis para aquecer a casa e quase um milhão e meio não tinha nenhuma forma de aquecimento.
Contactado pelo Expresso, o Ministério do Ambiente e da Ação Climática reconhece o problema e afirma estar a preparar medidas para o mitigar. “É reconhecido que, de um modo geral, o parque nacional de edifícios existente não apresenta as condições adequadas de habitabilidade a todos os seus ocupantes, nomeadamente o conforto térmico e acústico e a qualidade do ar interior, originando assim a ocorrência de problemas de saúde.” Por isso mesmo, no âmbito do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), Portugal deverá disponibilizar 300 milhões de euros nos próximos cinco anos para a reabilitação energética das habitações, uma medida que está a ser negociada com a Comissão Europeia.
Estes apoios serão aplicados a fundo perdido, com uma taxa de financiamento a definir na sequência dessas negociações. “Alterar comportamentos e ideias preestabelecidas é efetivamente o mais difícil de se alcançar, mas também conduz a mais resultados efetivos, pelo que devem ser concentrados esforços no processo de consciencialização dos proprietários e utilizadores relativamente aos benefícios globais da renovação energética, entre os quais a redução que pode ocorrer na fatura de energia, a melhoria do conforto e da saúde dos habitantes e o aumento do valor do imóvel.”
As medidas são urgentes. Dados recentes do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (EU-SILC) indicam que entre 21,3% e 32,8% das habitações portuguesas têm problemas de infiltrações nos telhados, humidades nas paredes, nos pisos ou nas fundações e ainda apodrecimentos nas janelas e nos pisos. O valor torna-se ainda mais elevado se comparado com a média da UE, que varia entre 13,3% e 16,1%. Luísa Schmidt alerta: “A situação é grave e faz de Portugal um dos casos mais problemáticos da Europa. É o que adverte a Rede Europeia de Ação Climática, que defende que o país precisa de uma verdadeira mudança, sobretudo no que toca à eficiência energética dos edifícios. Não há nenhum estrangeiro que não se queixe do frio em Portugal.”
O FRIO DOS MAIS POBRES
Para os pobres, o inverno é ainda mais duro. Situado a poucos metros da praia de São João, com uma bela vista para Lisboa, o Segundo Torrão, na Trafaria, em Almada, é um bairro clandestino com características de favela, criado há 40 anos por pescadores, onde habitam entre 2500 e 3000 pessoas em condições precárias. E se a água canalizada já lá chegou, a eletricidade nem tanto. A maioria das casas tem puxadas ilegais dos poucos postes que existem, com novelos caóticos de cabos, que nas horas de maior uso rebentam com os fusíveis e deixam o labiríntico bairro no profundo breu.
César Ferreira, de 54 anos, motorista, desempregado desde março do ano passado, já deixou de contar as vezes em que ele e a família ficaram à noite na escuridão. São oito ao todo a viver naquela habitação, com os tijolos da parede à mostra: a mulher, o filho mais velho, a nora, a sogra e os três netos. “Ao final do dia, mal as pessoas começam a chegar dos trabalhos e a ligar os aparelhos, os postes disparam. Vale-nos a lanterna do telemóvel, as velas e o aquecedor a gás.” A Câmara de Almada já prometeu eletricidade, mas o processo estagnou. César mostra-nos os quadros elétricos instalados no local, que aguardam a chegada dos postes que irão assegurar a distribuição de energia. “Não me importo de começar a pagar luz. Estarmos constantemente às escuras é que não.” E conclui: “É preferível em casa usarmos um casaquinho a mais e um gorro do que ficarmos sem luz. Mas há vizinhos que não querem saber e ligam tudo. E depois vai tudo abaixo.”