18.1.21

Pandemia e exploração deixam na mendicidade imigrantes que trabalham nos campos do Alentejo

Carlos Dias(Texto) e Rui Gaudêncio (Fotografia), in Público on-line

Há pessoas sem abrigo, outras em casas abandonadas, muitas a pedir ajuda à Cáritas. A antecipação do fim da campanha da azeitona e a pandemia deixou muitos estrangeiros numa situação aflitiva. Alvo da exploração de empresas de prestação de serviços, há quem se queixe ainda de salários em atraso. “São cada vez mais os que não têm nada para comer”, conta um empresário.

Ano após ano o cenário repete-se. A partir de meados de Setembro, milhares de cidadãos estrangeiros chegam a Beja vindos de cada vez mais longe. Vêm do subcontinente indiano — Nepal, Índia, Paquistão, Bangladesh. Ou da África subsariana — Senegal, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Gâmbia e Gana. Mas também do Leste europeu — Moldova, Ucrânia, Roménia. E ainda do Brasil. A campanha da azeitona termina, em anos normais, no início de Fevereiro e garante trabalho. Mas este não foi um ano normal. A safra sofreu uma quebra que ronda os 40%. Menos produção, significa uma redução na mão-de-obra necessária, acrescido do encurtamento do tempo da campanha que, desta vez, no final de Dezembro, estava praticamente concluída.

A pandemia agravou a situação. Houve mais instabilidade laboral, “com mais paragens nos trabalhos agrícolas”, diz ao PÚBLICO, Isaurindo de Oliveira, presidente da Cáritas Diocesana de Beja. A maior parte destes migrantes trabalha na agricultura e tem contratos sazonais. As remunerações rondam os 2,5 a 3,5 euros por hora, quando há trabalho, e muitos são sujeitos a condições de vida degradantes, como se pode testemunhar em sucessivas sentenças judiciais. Mais: "Se chove ou ficam doentes não recebem”, prossegue Isaurindo de Oliveira. "São cada vez mais os que não tem nada para comer”, diz um empresário ao PÚBLICO.

Há assim um fenómeno novo na cidade de Beja e noutros concelhos alentejanos onde a cultura de olival ocupa grandes extensões de terra. Pelas ruas e bancos dos jardins deambulam, sem destino, os imigrantes abandonados à sua sorte e a quem são devidos os salários que empresas que os contrataram lhes sonegaram, deixando-os na mendicidade, a recorrer ao apoio da Cáritas ou a pedir auxílio na rua, e sem possibilidade de voltar à sua terra. Sobrevivem das ajudas que as organizações de apoio social lhes prestam, sobretudo a Cáritas de Beja. Muitos vivem em casas superlotadas, sem condições, outros ocuparam edifícios abandonados. Começam a aparecer situações de pessoas sem abrigo a dormir em casas abandonadas, na periferia da cidade, próximo da estação dos caminhos-de-ferro. E outros, com rendas em atraso, estão em risco de perder a casa.

Muitos vivem em casas superlotadas, sem condições, outros ocuparam edifícios abandonados. Começam a aparecer situações de pessoas sem abrigo a dormir em casas abandonadas, na periferia da cidade, próximo da estação dos caminhos-de-ferro. E outros, com rendas em atraso, estão em risco de perder a casa.

Com o fim da campanha de recolha de azeitona, “o número de pessoas que nos apareceram de repente com problemas alimentares é muito grande”, diz Isaurindo de Oliveira. Só no Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM) foram realizados no último ano 243 atendimentos.

Uma dessas pessoas atendidas é Iama Mané, uma jovem natural da Guiné-Bissau, que trabalhou na agricultura e está desempregada há três meses. “A minha vida sem trabalho é muito triste”, vai dizendo. Mas é mais do que isso. Conta que mantém um conflito com a senhoria da casa onde vive com uma tia. “Bate constantemente à porta com brutalidade para me exigir o pagamento da renda, mas eu não tenho condições para cumprir. ‘Por favor não é assim!’ E ela responde: ‘Eu não posso esperar mais pelo dinheiro.’” São 330 euros que paga por um quarto e uma sala.

Ana Barrocas, mediadora sociocultural na Cáritas de Beja, é quem faz o primeiro atendimento dos migrantes que aqui acorrem, para apurar quais as necessidades e respostas que podem ser dadas. Diariamente, é colocada perante o cortejo de dramas humanos. “Quando eu deixar de sentir o meu lado humano perde-se o sentido da vida”, comenta. Iama conta-lhe que está a procurar trabalho. “Mas não consigo encontrar.” E tem outro problema em mãos. A família está em Bissau e recebiam a sua ajuda porque são muito pobres. Agora, nada pode fazer por eles.

A realidade tal como ela se expressa, ainda está longe de ser a de um acolhimento eficiente e humanizado dos cidadãos estrangeiros que procuram trabalho nos campos do Alentejo: “Apenas conseguimos fazer cócegas nalguns pelos da pele”, conclui Isaurindo Oliveira. O PÚBLICO solicitou esclarecimentos sobre esta situação que se vive no Alentejo ao Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e ao das Infra-Estruturas e da Habitação, mas não obteve resposta.

Abandono e fome

Actualmente, a Cáritas Diocesana de Beja presta atendimento a imigrantes oriundos de 27 países. Vêm suprir as carências de mão-de-obra na apanha da azeitona, da amêndoa, da uva e de frutos vermelhos. Ninguém sabe quantos serão. A Associação Solidariedade Imigrante (Solim) que presta apoio a cidadãos estrangeiros, admite que possam chegar aos 30 mil. O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) adianta que no distrito de Beja residem cerca de 12 mil imigrantes. No entanto, o número dos que chegam ilegalmente ao sul do país para trabalhar está por quantificar.

A partir da capital do Baixo Alentejo, são levados para os mais diversos locais da região para trabalhar nas culturas intensivas, por vezes, em condições degradantes.

Os contratos de trabalho fazem sempre referência ao salário mínimo, mas nuns casos “são pagos à hora, noutros à semana, à quinzena ou ao mês e, às vezes, com atrasos e irregularidades”, diz o presidente da Cáritas.

Os contratos de trabalho fazem sempre referência ao salário mínimo, mas nuns casos “são pagos à hora, noutros à semana, à quinzena ou ao mês e, às vezes, com atrasos e irregularidades”, observa o presidente da Cáritas.

As rusgas que todos os anos as autoridades (GNR, ACT e SEF) realizam para detectar a presença de trabalhadores ilegais, o tráfico de seres humanos ou infracções às condições de trabalho, não têm inibido quem pratica crimes. Boa parte dos implicados em redes de tráfico de seres humanos é sancionada com pena suspensa, como se pode constatar no mais recente julgamento no Tribunal de Beja. A sentença proferida a 4 de Dezembro condenou, a pena suspensa, cinco cidadãos romenos e um moldavo pelo crime de auxílio à imigração ilegal. A apenas um, por ser reincidente, foi aplicada uma pena de prisão efectiva de quatro anos e nove meses.

Os imigrantes que vêm trabalhar no Alentejo e na nova agricultura, não são contratados directamente pelos proprietários ou rendeiros das explorações agrícolas. A legislação em vigor permite que fiquem à disposição de empresas prestadoras de serviços, constituídas por angariadores de mão-de-obra, muitos deles de outras nacionalidades. Os empresários agrícolas são acusados de serem coniventes e pactuarem com a exploração laboral dos imigrantes ou de aceitarem trabalhadores ilegais nas suas explorações.

José Manuel Castelo Branco, proprietário com outros membros da família de culturas de olival, vinha e hortícolas, em Baleizão, defende a necessidade de “uma fiscalização mais intensa” e considera um absurdo a facilidade com que algumas empresas de prestação de serviços “declaram falência para fugir aos pagamentos à Segurança Social”. “Os imigrantes são essenciais para nós”, refere o empresário, destacando o “respeito” que lhe merecem os trabalhadores estrangeiros que todos os anos contrata para as tarefas agrícolas. Reconhece que, pelo valor do seu trabalho, merecem ser “acarinhados”.

Nos arredores de Beja e no lugar de Quintos, Hugo Pereira, o proprietário de uma exploração de morangos, tem ao seu serviço 20 trabalhadores paquistaneses e indianos, que residem em contentores com cozinha, casa de banho e ar condicionado no interior da exploração. “Tenho funcionários que trabalham comigo há quatro anos. São dedicados, organizados e metódicos, merecem consideração. No entanto, conheço casos muito maus, em que se trata mal os imigrantes, que deixam as suas famílias para virem ganhar a vida para tão longe das suas casas.” No seu caso diz que tem trabalho para eles, todo o ano, contrariando o cenário que se observa quando termina a campanha da azeitona.

Um português que contrata imigrantes conta como “os desgraçados que trabalham no duro” são defraudados por empresas de prestação de serviço. “Assim que recebem a verba acordada no contrato que fazem com os empresários agrícolas, dão logo baixa da empresa e desaparecem com o dinheiro dos trabalhadores, e com o que deviam entregar na Segurança Social"

Um português que contrata imigrantes para os colocar nas explorações agrícolas na região de Beja confirmou ao PÚBLICO, sob anonimato, por razões de segurança, o modo como o erário e “os desgraçados que trabalham no duro” são defraudados por empresas de prestação de serviço. “Assim que recebem a verba acordada no contrato que fazem com os empresários agrícolas, dão logo baixa da empresa e desaparecem com o dinheiro dos trabalhadores, e com o que deviam entregar na Segurança Social e nas Finanças.”

Este modus operandi “origina situações muito preocupantes do ponto de vista humano e social”. Não entregam aos que trabalharam sob as suas ordens “o salário a que têm direito”, frisa o presidente da Cáritas de Beja.

O empresário português descreveu ao PÚBLICO várias situações de falta de pagamento de salário, de abandono e de fome. “É a toda a hora a telefonarem-me a pedir ajuda. Nos casos mais extremos, compro-lhes arroz e frangos. São cada vez mais os que não têm nada para comer”, garante, junto à Igreja de S. Amaro e do castelo de Beja onde estão “alojados” vários cidadãos indianos sem trabalho.

Sidy Toure Trabalhou na apanha da azeitona e está sem trabalho. Aguarda que o patrão o leve para a apanha de laranjas mas não sabe onde nem quando pode começar, embora, acentua, tenha sido o patrão que disse para ele se legalizar e o está a ajudar nesse sentido

27 nacionalidades

Os imigrantes atendidos no CLAIM são provenientes de 27 nacionalidades. A faixa etária mais predominante nestes trabalhadores encontra-se entre os 26 e 35 anos. No que diz respeito às habilitações, o nível de escolaridade mais frequente é o ensino secundário.

Assim que foi decretado o estado de emergência nacional, seguido do estado de calamidade, praticamente todos organismos públicos e privados pararam com o seu funcionamento. “Os imigrantes ficaram privados de trabalhar e consequentemente sem qualquer fonte de rendimento” e as instituições que são fundamentais para regularizar a sua presença no território nacional também fecharam as portas e “ficaram congestionadas ou até mesmo inacessíveis telefonicamente, nomeadamente SEF, Serviço de Finanças, IEFP, etc. ”, observa a Cáritas de Beja.

As consequências fizeram-se sentir nos atendimentos do CLAIM, “dispararam de forma acentuada uma vez que se tornaram uma das poucas portas abertas onde os imigrantes poderiam encontrar apoio e uma orientação”, sublinha Isaurindo Oliveira. Chegam aqui “à procura de melhores condições de trabalho e apoios sociais”, mas também para denunciar “trabalho precário e exploração laboral.”

Nos esclarecimentos prestados ao PÚBLICO o Ministério da Administração Interna (MAI), diz que à semelhança de outros serviços da administração pública, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) “viu a sua capacidade de atendimento reduzida devido à situação pandémica que atravessamos”. Face a esta situação, “foram tomadas medidas de forma a garantir inequivocamente os direitos de todos os cidadãos estrangeiros” com processos pendentes no SEF.

Os cidadãos estrangeiros com processos pendentes no SEF ao abrigo Lei de Estrangeiros consideram-se em “situação de permanência regular em território nacional”. Dadas as circunstâncias, “podem aceder a todos os serviços públicos: obtenção do número de utente, acesso ao Serviço Nacional de Saúde ou a outros direitos de assistência à saúde, acesso às prestações sociais de apoio, celebração de contratos de arrendamento, celebração de contratos de trabalho, abertura de contas bancárias e contratação de serviços públicos essenciais”.

No que diz respeito aos documentos de residência, os vistos e documentos relativos à permanência de cidadãos estrangeiros em território nacional que “expiraram a partir de 24 de Fevereiro são aceites, nos mesmos termos, até 31 de Março de 2021”, informa ainda a tutela, frisando que a capacidade de atendimento dos serviços de atendimento ao público do SEF “tem vindo a ser ajustada sempre que possível”.

Esforço para evitar ruptura nos apoios

Feroz Khan veio da Índia e já tem a família consigo em Beja. Trabalhava num restaurante na praia da Comporta onde permaneceu durante dois anos, mas a empresa teve de fechar por ter sido identificado um surto de covid-19. Recorreu ao trabalho agrícola, mas há quatro meses que está sem trabalho. Como vive? Sorri antes da resposta. “É um grande problema. Peço aos amigos e à família que me ajudem financeiramente.”

Está legalizado e tem atestado de residência. “Mas não benefício do subsídio de desemprego e a esposa não trabalha porque temos três filhos.” Paga 350 euros de renda. Com as despesas da água, luz e gás o encargo sob para os 450.

“O trabalho agrícola sazonal levanta este tipo de problemas”, esclarece Ana Barrocas. “Com a pandemia, o apoio alimentar que é prestado sofreu um acréscimo enorme. E está a exigir um esforço constante para se evitar situações de ruptura nos apoios que prestamos” por ordem decrescente, a senegaleses, indianos e brasileiros. E mesmo com trabalho, muitos imigrantes continuam a procurar o nosso apoio.” O que ganham não chega para sobreviver, observa.

Acresce ainda “a imensidão de papéis e de burocracia que chega a ser extenuante”, reconhece Ana Barrocas. Que o diga Sidy Toure natural do Senegal e que não fala português. Pediu à Cáritas apoio para conseguir autorização de residência em Portugal. Diz que vive em Espanha e que está em Portugal desde Outubro. Ainda não tem número de utente no SNS. Vive com outros colegas africanos numa casa em Beja e paga 105 de renda, mais 25 euros pela água, luz e gás que consome.

“Com a pandemia, o apoio alimentar que é prestado sofreu um acréscimo enorme. E está a exigir um esforço constante para se evitar situações de ruptura nos apoios que prestamos”, diz Ana Barrocas

Trabalhou na apanha da azeitona e está sem trabalho. Aguarda que o patrão o leve para a apanha de laranjas mas não sabe onde nem quando pode começar, embora, acentua, tenha sido o patrão que disse para ele se legalizar e o está a ajudar nesse sentido.

Pediu também para se inscrever no curso de português. “Faço quase diariamente pedidos de inscrição de cidadãos estrangeiros” no Centro Qualifica da Escola Secundária D. Manuel I em Beja, ou esporadicamente no Instituto de Emprego e Formação Profissional, adianta Ana Barrocas, realçando a sua preocupação em aconselhar os imigrantes para adquirem formação em português. O problema é que a oferta de ensino “está muito longe de poder corresponder às solicitações que são feitas”.