18.1.21

Alfama: estudo calcula em 45 milhões investimento para pôr fim à pobreza energética

Ana Brito, in Público on-line

Estudo do Center for Environmental and Sustainability Research da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Nova calculou o potencial de renovação do edificado e da integração de energias renováveis em Alfama, para descarbonizar o bairro e combater a pobreza energética.

Num país em que “só se consome 5% da energia que se deveria consumir para cumprir o regulamento térmico de conforto interior” das habitações, a capital, Lisboa, é um exemplo de como a má qualidade dos edifícios, aliada às condições socio-económicas da população, pode empurrar uma franja significativa de portugueses para uma situação de pobreza energética que só agora começa a estar no topo das prioridades a nível europeu e nacional.

A aplicação a Lisboa do índice de vulnerabilidade à pobreza energética por freguesia desenvolvido por investigadores do Cense (Center for Environmental and Sustainability Research) da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (FCT – UNL) mostra as zonas da cidade onde há maior probabilidade de encontrar pessoas em situação de pobreza energética, no Inverno e no Verão, ou seja, pessoas cuja qualidade de vida e saúde são directamente afectadas pelo desconforto térmico das suas habitações. E Alfama está entre as mais vulneráveis do município, principalmente no Inverno.

“A pobreza energética está intimamente ligada à qualidade dos edifícios, não há volta a dar”, sublinha ao PÚBLICO o investigador do Cense que lidera a equipa que desenvolveu o índice regional de pobreza energética, João Pedro Gouveia. “É claro que as pessoas também não têm dinheiro para se aquecer, mas se tivessem uma casa minimamente confortável, outros problemas já não seriam tão graves”, refere o investigador, que liderou um projecto (incluído na iniciativa europeia Sushi – Sustainable Historic City District) que diagnosticou o problema de pobreza energética em Alfama e traçou um roteiro de soluções para aplicar nesta zona emblemática da capital portuguesa o conceito de bairro de energia positiva.

Neste conceito, que está a desenvolver-se a nível europeu, exploram-se várias dimensões como a renovação do edificado e a integração de energias renováveis para se criarem localizações neutras em termos de emissões, em que se procura que a energia produzida supere a que é consumida.

Em Alfama, concluiu-se que “a reabilitação total resulta numa redução das necessidades energéticas no Inverno e no Verão respectivamente de 84% e 20%, com um investimento total de 45 milhões de euros”, que inclui a renovação de coberturas e janelas, isolamento de paredes e a instalação de tecnologias de produção fotovoltaica.

Com este diagnóstico feito (e que pode ser replicado para o resto do país), a autarquia lisboeta poderá usar os dados “para perceber que tipo de financiamento é que consegue desenhar, com base naquelas que são as suas prioridades”, explica João Pedro Gouveia.

Transição equitativa

Considerando a cidade de Lisboa como “um bom exemplo”, em que existem “objectivos concretos” de mitigação da pobreza energética e de descarbonização, o investigador considera que um dos grandes desafios é saber como é que se pode apoiar a transição nas cidades sem “sem deixar os consumidores mais vulneráveis para trás; isso é que é o mais importante”.


Se o Governo lançar programas que co-financiem, “por exemplo, 70% de investimento em janelas ou carros eléctricos, estará a alcançar a classe média, média alta”. Se assim for, “vamos ter uma parte da população com solar fotovoltaico e carro eléctrico e que se calhar até conseguiu isolar a sua casa, mas os restantes ficam ainda mais vulneráveis, porque em vez de usarem as renováveis para conseguir baixar o preço da energia, se calhar, como há menos consumidores [a pagar os custos fixos da rede] o preço ainda pode subir”, exemplifica.

A descarbonização do país e das cidades “tem de ser equitativa, porque senão ainda vão aumentar ainda mais as desigualdades sociais, num país que já é dos mais desiguais a nível europeu em termos de rendimentos”, sublinha o especialista, que defende a criação de “programas orientados para as pessoas com menos capacidade socio-económicas”.

Hoje, o único instrumento directo de apoio à população em pobreza energética (que se estima que em Portugal sejam pelo menos dois milhões de pessoas) são as tarifas sociais de electricidade e de gás natural, que são soluções de curto prazo e não atacam o problema na raiz.

João Pedro Gouveia, que está a ajudar o executivo a desenhar a estratégia nacional de combate à pobreza energética, entende que os municípios são fundamentais “numa escala mais alargada de longo prazo” no combate a este problema, porque têm um contacto mais directo com certas fatias da população. Em Lisboa, os dados indicam que há muito trabalho pela frente.

O índice do Cense, que mede a diferença entre a quantidade de energia que, em teoria, um edifício deveria consumir para garantir uma temperatura interior confortável e aquela que é consumida, e que avalia também a capacidade das famílias em implementar medidas de mitigação do desconforto (avaliando variáveis socio-económicas como o rendimento, a idade e a escolaridade), demonstra que é em freguesias como Ajuda, Santa Maria Maior, São Vicente, Penha de França, Beato e Marvila que é mais provável encontrar pessoas que não têm capacidade financeira para aquecer devidamente as suas casas nos meses frios.

Já no Verão, estão no topo do ranking Ajuda, Beato, Marvila e Santa Clara, o que significa que nos meses quentes haverá mais probabilidade de encontrar aqui as pessoas que não se conseguem proteger dos efeitos do calor.

Repartido entre Santa Maria Maior e São Vicente, Alfama (com uma população de cerca de 2400 habitantes nos Censos de 2011) é extremamente vulnerável ao frio, mas também fica mal na foto com temperaturas elevadas. Para “estudar a viabilidade da implementação do conceito Positive Energy District [distrito de energia positiva] no bairro de Alfama”, o Cense FCT-NOVA analisou “o potencial de medidas de renovação do edificado para a redução das necessidades energéticas para aquecimento e arrefecimento, por subsecção administrativa”, o que corresponde mais ou menos a uma análise quarteirão a quarteirão.

Testaram-se soluções de renovação dos telhados, janelas e paredes da fachada em todo o edificado do bairro, representado por seis tipologias de edifícios utilizando dados de uma amostra de cerca de 4140 certificados energéticos.

Estas medidas, que garantem o cumprimento dos requisitos definidos no actual regulamento de desempenho energético dos edifícios de habitação, resultaram, num cenário de reabilitação total, numa redução das necessidades energéticas no Inverno e no Verão (considerando não os consumos energéticos reais, mas aqueles que seriam necessários para as pessoas estarem confortáveis no interior) de 84% no Inverno e de 20% no Verão.

Para a redução das necessidades de aquecimento, concluiu-se que a renovação das paredes é a solução mais eficaz, resultando numa redução de 48%, seguida da renovação das coberturas (27%) e das janelas (10%). “Para o arrefecimento, a renovação das coberturas é de longe a medida mais eficaz (27%)” – de uma forma geral, a renovação das coberturas foi considerada a medida “mais custo eficaz”, ou seja, com melhores resultados para o investimento necessário.

Foi também estudado o potencial de produção de electricidade com painéis fotovoltaicos, avaliando-se diferentes energias, e concluiu-se que a parte nordeste de Alfama, com maiores alojamentos tipo moradia, ou seja, prédios de dois andares, tem maior potencial para produção (cerca de 87% das subsecções têm um potencial de produção menor ou igual a 0,67 GWh por ano, enquanto que cerca de 17% regista potenciais entre 1,3 e 2 GWh por ano).

Dinheiro e informação

João Pedro Gouveia reconhece que a transição energética dos bairros e cidades do país não acontecerá “de hoje para amanhã”, nem existe uma receita certa para todos os municípios. No caso de Alfama, “esse investimento [45 milhões de euros] é se formos melhorar tudo. Mas o município, consoante os seus objectivos estratégicos, é que vê o que vai priorizar”. Aplicar conceitos de bairros de energia positiva em edificações novas “é fácil”, defende.

Uma zona histórica é de “muito mais difícil intervenção”, porque tem ruas estreitas, edifícios antigos e degradados e uma população envelhecida, características a que se somam regulamentações mais exigentes quanto ao tipo de intervenções nos edifícios e espaço público para preservar o valor histórico e arquitectónico. A análise do Cense acomodou já várias restrições, como a escolha de isolamento pelo interior para não alterar as fachas, e de tecnologias fotovoltaicas “se calhar mais caras e com menos rendimento”, como as telhas para produção de energia, mas sem o impacto visual dos painéis solares nos telhados.

“Se calhar, para testar projectos de renovação e quais são os melhores esquemas de financiamento e como se integram bem as renováveis, devíamos começar pelos bairros sociais, já que os municípios são donos dos bairros e é mais fácil fazer essa intervenção”, sugere o perito.

O problema que se encontra em Alfama “é transversal ao país inteiro e a questão que se coloca é perceber como é que se financia esta dinâmica, seja em Lisboa, seja no Porto ou noutra cidade”. É preciso muito dinheiro, e o contexto de pandemia não é fácil, porque é preciso acudir a tudo, “mas a realidade existe e é mesmo preciso trabalhar nisto”, frisa João Pedro Gouveia. “Quase me questiono como é que Portugal se pode chamar um país desenvolvido quando está nesta situação e há pessoas com dez graus ou menos em casa”, afirma.

Certo de que “é preciso fazer uma ligação muito estreita entre a pobreza energética e a vaga da renovação de edifícios” anunciada pela Comissão Europeia para melhorar o desempenho energético de cerca de 35 milhões de edifícios até 2030, o perito também defende que se combata a “burocracia e o desconhecimento”.

No caso dos municípios sugere mesmo a criação de pólos de apoio ao munícipe no âmbito da eficiência energética, que ajudem a esclarecer dúvidas sobre as melhores opções, indiquem empresas certificadas e informem sobre regulamentos e requisitos a cumprir. “Se vamos sempre pelas políticas nacionais em que o Governo diz ‘estão aqui 600 milhões para eficiência energética e agora vão a este fundo e concorram’, não chegamos lá, porque há muita iliteracia sobre estes temas”, vaticina.