17.7.23

Ninguém tem de ser escravo de pagar uma casa e não conseguir fazer mais nada”

Cristiana Faria Moreira (Texto ), Matilde Fieschi (Fotografia) e Rui Gaudêncio (Fotografia) , in Público

Reportagem Estado da Nação. Na região de Lisboa, há 942 mil famílias que, se tiverem de ir ao mercado, têm de despender mais de 40% do seu rendimento com a casa. “Eu estou farta de procurar.”

Todos os dias, Rosário e o namorado correm os sites de arrendamento e venda de casas à procura de alguma oportunidade. E todos os dias sentem o futuro um bocadinho mais adiado. “Talvez um dia consiga. Como eu, há milhares de pessoas à procura.” E há nisto alguma coisa que deixa esta professora de História de 29 anos a sentir-se defraudada. “Acho que isto é comum a toda a geração dos anos 80 e 90, a quem os pais disseram ‘se tu estudares, se fores trabalhador, se fores qualificado, vais ter uma vida brutal'. Mas não estamos a ter essa vida brutal, onde é que isso está? O que é que aconteceu num espaço de duas gerações, para eu, com 29 anos e a ganhar mais do que a minha mãe ganhava quando começou a trabalhar, não conseguir sair de casa?”

Com a sua idade, os pais estavam a trocar para a segunda casa que compravam, desta feita na freguesia lisboeta de Arroios. E é ali que Rosário ainda vive com eles e onde gostava de conseguir uma casa para si, para o namorado e “para os próximos”. “Neste momento, é impossível. Não tenho poder de compra. Não consigo casar-me, não consigo ter filhos, não consigo sair de casa dos meus pais. Gostava de comprar casa. Não tenho de comprar uma mansão. Agora, que quero uma casa para mim e para os próximos, quero.”

Rosário Rocha da Silva dá aulas de História há dois anos. É professora contratada e ganha cerca de 1150 euros líquidos. Ela sabe que não tem mais direitos do que outros a viver no centro da cidade. Há muito que isso deixou de ser para todos, mas acredita que “as pessoas têm direito a morar onde nasceram” e de viverem próximas da família. Mas não deixa de fora a possibilidade de ir morar para um município vizinho. Aliás, as suas buscas por casa são alargadas, ainda que a imprevisibilidade dos transportes a faça também temer sair de Lisboa. “A questão dos transportes não é uma coisa à parte, tem de ser algo pensado de forma interligada. Não quero estar dependente do carro para tudo.”


Os amigos estão mais ou menos na mesma situação. Há muitos que ainda estão em casa dos pais apesar de terem empregos estáveis. Os que já saíram de casa contam muitas vezes com a ajuda dos pais ou dos avós a encherem-lhes a despensa ou a dar-lhes refeições. Alguns vêem-se obrigados a ter mais do que um emprego e outros emigraram, sobretudo para países do Norte da Europa. “Eu também já pensei 'o que é que posso fazer mais além de dar aulas?'” Emigrar passa-lhe cada vez mais pela cabeça, embora não esteja no primeiro plano. "Sendo professora e falando cinco línguas fluentemente, sou necessária lá fora. E há uma coisa que ouvi dos meus pais desde sempre: ‘Filhas, se vocês tiverem de ir vão.' Mas é triste.”

Os pais disseram ‘se tu estudares, se fores trabalhador, se fores qualificado, vais ter uma vida brutal. Mas não estamos a ter essa vida brutal, onde é que isso está?Sara Rocha da Silva
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Emigrar, separar-se, voltar a casa dos pais

Pedro não escapou a esse destino, quando se apercebeu de que seria difícil recuperar parte da independência que tinha perdido, que, depois dos 40 anos, não podia continuar a viver em casa dos pais, à qual voltara depois de uma separação. Em Fevereiro passado, foi mais um dos que decidem partir. “Estava farto. Sentia que nunca ia conseguir. E apareceu-me esta oportunidade a ganhar três vezes mais na Irlanda. E arranquei.”

Pedro Silva, de 42 anos, até já tinha estado emigrado na Suíça. A crise “empurrara-o” para esse destino, já que ficara sem o trabalho na área do Turismo quando foi “apanhado pela troika”. Emigrou, mas a separação trouxe-o de novo à casa dos pais, em Almada, no final de 2019. O plano inicial era ficar em casa dos pais um, dois meses até conseguir “uma fonte de rendimento estável” e começar a procurar a casa.

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O​ custo de viver na Irlanda é similar ao de Portugal, com a excepção de os salários serem "muito mais altos”, repara, embora também lá haja também graves problemas no acesso à habitação. “Há quartos a mil euros no centro de Dublin, e casas a dois, três mil euros”, observa o motorista.


Há 942 mil em situação de "inacessibilidade habitacional"

São os jovens, as famílias em mobilidade profissional, recomposição familiar ou no regime de arrendamento que estão entre a população mais afectada pela crise da habitação na Grande Lisboa — a região do país onde vive quase um terço da população do país.


Na última década, “cerca de metade do crescimento do número de agregados registado no país” foi registada nesta região, mas o aumento de famílias residentes “não foi acompanhado por um aumento equivalente ao nível dos alojamentos”, nota o Diagnóstico das Condições Habitacionais Indignas na Área Metropolitana de Lisboa (AML), que analisa as condições de habitação da região.


Está [tudo] caríssimo. E estamos nos subúrbios. Ninguém tem que ser escravo de pagar uma casa e não conseguir fazer mais nada o resto do mês, a não ser comer

Pedro Silva
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Este contexto colocou 942 mil famílias com residência fiscal na AML (62% do total) em situação de "inacessibilidade habitacional". Quer isto dizer que, “se tiverem de recorrer ao mercado, não encontrarão no seu município de residência uma habitação adequada sem ter de despender mais de 40% do seu rendimento em encargos com a habitação, seja por via da aquisição, seja do arrendamento”, refere o diagnóstico.

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Resta-lhes manterem-se na casa que ocupam, mesmo que seja “inadequada”. Os jovens, como Rosário, vêem o seu futuro adiado, as famílias, pressionadas com “custos elevadíssimos” com a habitação, põem em causa a “satisfação de outras necessidades básicas”. A solução acaba por ser mudar para outro município, ainda que isso possa afastar as famílias da sua rede e do próprio emprego. Na última década, a população de municípios centrais da região, como Lisboa, “migrou” para municípios limítrofes, como Alcochete, Mafra, Montijo e Palmela, concluiu também o diagnóstico.

Um futuro hipotecado

Quando se passeia pelas ruas de uma vida e recua à meninice, são os cheiros que surgem na memória de Sara: “As peles da antiga loja de malas, as madeiras, o café da fábrica” ali ao pé da sua casa, vizinha do Panteão Nacional.

“Ninguém tem de ser escravo de pagar uma casa e não conseguir fazer mais nada”
Sara Baptista, de 46 anos, nasceu e cresceu naquele bairro e, quando teve a oportunidade, arrendou uma casa no prédio onde nascera. Foi em 2002. O filho ali nasceu também e aquele pareceu sempre um lugar bom para ele crescer, onde a vizinhança conhecida sempre lhe podia deitar um olho.

Até que, no ano passado, chegou ao correio uma carta de oposição à renovação do contrato. O senhorio morreu durante a pandemia e os herdeiros tomaram essa decisão. Sara paga 320 euros por um T2 antigo. Já pagou mais, à volta dos 450 euros, mas durante os anos da troika perdeu o emprego e negociou uma descida da renda com o senhorio. Ele nunca a voltou a aumentar.

O contrato de arrendamento de Sara terminou em Maio passado. Ela ainda tentou uma actualização da renda, mas os novos senhorios “não quiseram conversas” e puseram em cima da mesa um processo de despejo. “Já me informou de que será o próximo passo. E isso tem sido uma tormenta todos os dias", lamenta Sara, que não quer arrastar um processo nos tribunais. "Mas não tenho solução, a questão é essa. Nem mesmo as novas medidas do Governo vão funcionar. Existe também o apoio da câmara, mas não é assim tão fácil aceder.”

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Estou pobre demais para concorrer a umas coisas [apoios à habitação] e estou rica demais para outras
Sara Baptista

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Às vezes chegam-lhe com anúncios de 600 euros. “Comparado com Lisboa, 600 euros é bom, mas vou-me atirar para uma casa de 600 euros se há meses em que o ordenado não chega aos 700 euros? Como é que pago o resto?”

“Eu não posso ficar na rua com três crianças”

"Os problemas que nos têm chegado são sobretudo de oposição à renovação de contratos. A questão do arrendamento é frágil", observa Luís Mendes, investigador do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa e membro da Associação dos Inquilinos Lisbonenses e do movimento Morar em Lisboa. A par disso, surgem situações que "roçam o assédio no arrendamento, de pressão por parte do senhorio", sublinhando contudo que a crise na habitação se está "a agudizar com a crise inflacionária e que já não envolve apenas os inquilinos do arrendamento, mas também quem paga prestações ao banco".
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A situação é ainda mais difícil para quem nem sequer tem um contrato de arrendamento. "Esta informalidade do arrendamento é muito tóxica. Distorce fortemente o mercado porque faz aumentar os preços, compete deslealmente", enquadra o investigador, defendendo ser preciso "fiscalizar, combater o arrendamento ilegal e informal".

Era numa situação semelhante, sem contrato de arrendamento, em que Mária Pereira, de 44 anos, vivia numa casa na Apelação, em Loures, até o senhorio lhe exigir que deixasse a casa em Abril passado. Não teve outra alternativa senão deixar a casa, onde vivia com os três filhos menores – com 16, sete e dois anos — e o marido. Uma amiga "emprestou-lhe" uma casa, mas terá também de deixar até ao final do mês. “Eu não posso ficar na rua com três crianças, não é?”


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Estou farta de procurar. Farta, farta, farta. E não há. E o que há está tudo fora de conta. E ainda a pedirem dois meses de renda, dois meses de caução... São valores exorbitantes
Mária Pereira


Mária tem um pedido de habitação feito à câmara. “Eu sei que há inúmeros casos de pedidos de habitação, eu considero-me um caso urgente e precisava que me ajudassem. Eu só preciso de um sítio onde ficar com os meus filhos.” Tem também procurado casas e recorrido a várias associações. “Eu estou farta de procurar. Farta, farta, farta. E não há. E o que há está tudo fora de conta. E ainda a pedirem dois meses de renda, dois meses de caução... São valores exorbitantes.”
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Por ali, a pandemia agudizou o problema, diz Aida Marrana, coordenadora do Centro de Actividades de Tempos Livres, instalado na Quinta da Fonte, que tem também tentado ajudar Mária. Sobretudo no que respeita aos casos de jovens que voltaram a casa dos pais, às vezes com os filhos e as mulheres.
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Não é exactamente o caso de Dina, mas na sua pequena casa do bairro da Fonte vivem dez pessoas, entre filhos e netos. São dois quartos e uma sala improvisados em mais quartos. “Tem de ser um espacinho todo contado. Duas meninas, uma com 17 e uma com dez, dormem no sofá da sala. Tenho dois meninos no quarto e estou a fazer uma divisão na sala para poder fazer um quarto mais, porque a câmara não me resolve o caso da minha habitação”, explica Dina Quaresma, de 44 anos.


50 mil famílias a viver em condições indignas

Dina mora na Quinta da Fonte há 25 anos, nuns prédios municipais construídos para realojar quem morava em casas precárias do Prior Velho. Na altura, era só ela e o marido e a filha de seis meses. Mas, entretanto, a família foi crescendo e crescendo. E eles foram casando. “Cresceram, namoraram-se, ficaram com as meninas. Depois tiveram de ficar com elas em casa porque a cultura cigana sabe que é um bocado assim. Só que a gente procurava as casas para eles, mas não conseguia.”

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Acho engraçado que a câmara diga que a gente não pode estar [a viver] em sobrelotação. A alternativa é pô-los fora?
Dina Quaresma

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Para o investigador Luís Mendes, é urgente que as câmaras e o próprio Estado recuperem os seus devolutos e "assumam a construção de mais parque público de habitação". E deixa ainda um reparo ao programa Mais Habitação, que diz ter "medidas que estão dependentes da bondade dos proprietários de querer fazer trabalho social com as suas casas". "O sector da habitação sempre foi o parente pobre do Estado social, um pilar eternamente adiado dos direitos humanos em Portugal."