23.4.07

"Aqui não passa Cristo", diz localidade "esquecida" do Porto

Joana de Belém, in Diário de Notícias

O cheiro é nauseabundo e intensifica-se com a chegada do calor, trazendo consigo dezenas de moscas. A casa de dois pisos, onde vivem cinco pessoas, não tem casa de banho: conta apenas com uma divisão exterior sem porta e com um buraco num canto, a lembrar tempos medievais. Apenas um dos exemplos do abandono a que se dizem votados os habitantes da Rua do Calvário, no lugar de Azevedo de Campanhã, "uma das maiores e mais esquecidas freguesias do Porto". "Aqui não passa Cristo", já se tornou palavra de ordem.

Há muito que os moradores reclamam junto do senhorio e da autarquia, mas "anda assim de ano para ano, e nada". Delmira Ana faz diálise e já foi "proibida pela médica de ir ao quarto de banho por causa dos micróbios". Por isso é obrigada a guardar junto à cama um balde para as necessidades, diariamente despejado com a ajuda dos vizinhos.

Acima da pequena divisão que é casa de Delmira reside Adelaide Rocha, também com a sua dose de justificados lamentos. "Tenho a casa toda escorada", diz, referindo-se às traves colocadas pela Câmara do Porto para amparar o tecto do quarto do filho. No chão, tábuas cobrem os inúmeros buracos que são "consumição" diária. "À noite, a gente está na cama e ouve 'truc... truc...'. São os barrotes a dar de si", conta ainda.

"Esta é a verdadeira Rua do Calvário, é um calvário viver aqui", atira logo outro morador, que atravessa a rua de paralelo com um carrinho de mão para ir levar ao lixo "lá ao fundo". O descontentamento na freguesia é geral. Ruas estreitas e por pavimentar, falta de transportes públicos e saneamento, lixo e matas por limpar. "A gente precisa de tudo, está despovoado, não temos aqui ninguém", reclama Augusta Jesus, que por vezes passa "um dia inteiro só para vender uma pastilha elástica ou uma cebola". As casas são velhas, "tudo a cair por aí abaixo", acrescenta a proprietária da exígua mercearia: "Não tenho esperança."

A falta de transportes para o centro do Porto é uma das maiores dores de cabeça dos moradores, que contam só com os serviços de duas operadoras privadas. "Mas é caro [1,20 euros] e às vezes estamos três quartos de hora à espera", dizem Fernando e Elisa Duarte. "Não temos transportes, saneamento, supermercado, o posto médico é uma miséria", contam. "Falta muita coisa, mas faz falta mesmo é o transporte", reitera Elisa, repetindo a frase já ouvida de outras bocas: "Até costuma dizer-se que 'aqui não passa Cristo'."