6.5.07

"Em Portugal não há crise de generosidade"

Andreia Sanches, in Jornal Público

É uma gigantesca operação de solidariedade que envolve 16 mil voluntários - um recorde - em todo o país. A recolha de alimentos nos supermercados termina hoje


É uma da tarde e mais de 24 toneladas de pacotes de massa, arroz, farinha, leite e muito mais já deram entrada no armazém do Banco Alimentar Contra a Fome, em Lisboa. "Isto até arrepia. Não sente a energia?", interroga Filipe Gil, que há oi-
to anos participa nas campanhas de recolha de alimentos. O armazém parece uma fábrica: milhares de produtos num enorme tapete rolante vão sendo separados por centenas de mãos a uma velocidade estonteante e colocados em caixas. Manuel, de 18 anos, tem a tarefa de só retirar da passadeira esparguete. "É a minha primeira vez", diz a sorrir.

Alcina Chaves, de 74 anos, reformada, anda para cá e para lá com pacotes de papas para bebé. A António, de 12 anos, foi incumbida a missão de se enfiar dentro de uma caixa maior do que ele para "separar os frascos de grão dos frascos de feijão". José Lopes, professor universitário, está no armazém. Filipe Gil, de 40, ajuda a pesar os produtos...

Duas vezes por ano o cenário repete-se: uma gigantesca operação de recolha de alimentos em todo o país, destinada a atenuar a fome de 210 mil portugueses, é montada. Estima-se que entre ontem e hoje cerca de 16 mil voluntários - o maior número de sempre - tenham estado envolvidos.

Participam turmas inteiras, famílias inteiras, grupos de escuteiros, grupos de reformados... Pedro Dias, de 23, é locutor de profissão. Duas vezes por ano é também um dos responsáveis pela estação de rádio de circuito interno especialmente improvisada para estes dias no armazém de Alcântara. Quando à volta do tapete rolante os voluntários começam a dar sinais de cansaço põe música mais animada "para lhes dar energia".

Uma pull de empresas de seguros garante que cada participante tem um seguro, outras emprestam carros e máquinas empilhadoras, outras ainda oferecem almoço e águas para os milhares de pessoas que estão envolvidas. A operação leva meses a montar, diz Maria João Torres, coordenadora da campanha em Lisboa.

Há voluntários que estão "bem na vida" e outros que "precisam, eles próprios, dos alimentos do banco alimentar", continua João Torres. Os tempos são de crise? "Em Portugal não há crise de generosidade. Parece que as pessoas ainda ficam mais conscientes dos problemas dos outros." O primeiro banco alimentar do país nasceu em 1992. Hoje, já existem 13.

"Bom dia! Quer contribuir?"

Alguns dos pacotes de esparguete que Manuel retira do tapete para juntar a uma caixa só de massas poderão ter sido, horas antes, uma conquista do sorriso da pequena Mónica, de 11 anos. Por detrás "de cada pacotinho destes há uma história", garante Maria João Torres.

Mónica é uma das cerca de 200 pessoas (entre pais, alunos e professores) da Escola Salesiana de Manique que se mobilizaram para colaborar na recolha de alimentos no Carrefour de Oeiras (um dos 800 estabelecimentos onde se pede aos clientes que "alimentem" os bancos alimentares). "Bom dia! Quer contribuir?", pergunta de saco em riste e sorriso no rosto a quem passa.

"Já dei", ou "obrigado, mas não vou às compras", são algumas das respostas mais frequentes. Há quem diga também: "Vá pedir ao Sócrates", mas isso é mais raro. "A maior parte das pessoas são simpáticas, mesmo quando não dão", garante Mónica. Ao lado, Margarida, também com 11 anos, tenta entregar um saco do banco a um homem que passa por ela a cem à hora. O homem diz "não quero" e menos de um minuto depois volta para trás: "Pronto, comoveste-me!"

O frenesim aumenta à medida que a tarde avança. Em Alcântara, Pedro Dias anuncia aos microfones que já foram recolhidas mais de 50 toneladas... e toda a gente interrompe o que está a fazer para bater palmas. Pedro Duarte, de 29 anos, estudante de Relações Internacionais, acaba de estacionar no parque mais uma carrinha cheia até cima, com mais sacos do supermercado de Oeiras. Um pequeno exército de escuteiros apressa-se a descarregar.

A campanha termina hoje. E à meia-noite os armazéns estarão a abarrotar. Num deles, em Lisboa, será celebrada uma missa, entre pacotes de arroz e massa, para os voluntários católicos que quiserem participar. Em Novembro há mais.