5.9.07

Mulheres discriminadas em diagnóstico e tratamento de doenças cardiovasculares

Catarina Gomes, in Jornal Público

O acesso mais reduzido das mulheres a "serviços de alta qualidade" pode ser o motivo
de consequências mais graves em termos de sequelas e da sua maior mortalidade hospitalar


Se uma mulher vai ao médico queixando-se de "uma dor no peito", esta tende a ser mais facilmente entendida como sinal de depressão ou ansiedade do que como um sintoma de doença cardíaca, refere a socióloga Ana Fernandes.

Uma análise dos dados dos hospitais públicos portugueses concluiu que as mulheres têm menos acesso a técnicas de diagnóstico e tratamento mais sofisticados na área das doenças cardiovasculares em comparação com os homens, revela o estudo Saúde e cuidados de saúde em Portugal: A importância do género, encomendado pelo Ministério da Saúde a investigadores da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.

A prática encontrada em Portugal já tinha sido detectada em vários estudos internacionais, refere a socióloga da Escola Nacional de Saúde Pública, Ana Fernandes, coordenadora do trabalho onde também são autores Julian Perelman e Céu Neves. O que se conclui é que também em Portugal "a formação médica não está a dar a devida atenção às doenças cardiovasculares nas mulheres. A mulher tende a ser secundarizada", sublinha.

A doença cardiovascular (que inclui o enfarte e a angina do peito) continua a ser tendencialmente mais associada ao homem, quando tal deixou de ser verdade. Em 2003 representava nove por cento de todas as causas de morte nos homens e pouco menos nas mulheres (8,6 por cento), mas na faixa etária de mais de 65 anos já mata mais mulheres do que homens (15,3 e 14,7 por cento).

Elas vão mais ao médico

Os investigadores analisaram dados de 192,058 utentes com doença cardiovascular (de 2000 a 2004) e chegaram à conclusão de que "os dispendiosos testes e tratamentos não são igualmente aplicados a homens e mulheres."

Por exemplo, o cateterismo (técnica de diagnóstico de alta tecnologia) foi feita para 38,3 por cento dos homens, face a 22,6 por cento das mulheres. Uma das formas de tratamento mais sofisticadas (a revascularização) foi aplicada em 25 por cento dos casos masculinos, face a 11,4 por cento dos femininos.

Em geral são as mulheres quem mais recorre a serviços de saúde (fazem mais análises clínicas, vão mais ao médico de família) mas quando se trata de "tratamento mais especializados parece haver desigualdade no acesso", lê-se no estudo de 171 páginas a que o PÚBLICO teve acesso. Os investigadores não excluem, portanto, que o acesso mais reduzido da mulher "a serviços de alta qualidade" possa ser a causa de consequências mais graves em termos de sequelas da doença cardiovascular e da sua maior mortalidade hospitalar. Dos doentes analisados, 12 por cento das mulheres morreram no hospital, face a 7,8 por cento dos homens.

Os investigadores concluíram também, em semelhança a estudos internacionais, que a tendência para práticas clínicas discriminatórias existe mais quando ainda não há diagnóstico. "Quando a doença cardíaca é clinicamente manifesta, há menos espaço para diferentes interpretações entre os médicos."

Perante estes dados, Ana Fernandes nota que esta é uma área em que é possível intervir, nomeadamente ao nível da prevenção destas doenças orientadas para a mulher.

Ao mesmo tempo os autores do estudo defendem que é preciso desenvolver uma estratégia "para levar os médicos a terem mais consciência dos problemas relacionados com o género, procurando por exemplo eliminar preconceitos, tais como "o enfarte de miocárdio é uma doença masculina"", lê-se no documento.
João Silva Nunes, cardiologista que colaborou no estudo, afirma que "por tradição e por um certo atraso na evolução do conhecimento há ainda uma certa secundarização da mulher na doença cardiovascular".

O médico nota que pode haver "atitudes diferentes na valorização dos sintomas" e nas "atitudes no diagnóstico e na terapêutica". Isto talvez aconteça porque "a doença é mais expressiva no homem e acontece mais cedo na sua vida". "Nas mulheres as queixas podem levar os médicos a pensar noutras causas de doença (digestivas, reumatismais) por se apresentarem muitas vezes de modo atípico."

O estudo decorreu entre Fevereiro de 2006 e Fevereiro de 2007 e surgiu da preocupação com problemas relacionados com as diferenças de género em saúde expressa pelo Grupo de Aachen, grupo de trabalho constituído por ministros da Saúde socialistas de países da União Europeia.

"Igual" diferente de "mesmo"

O assunto merece um crescente interesse da parte dos investigadores. No encontro anual da Sociedade Europeia de Cardiologia, na segunda-feira, em Viena, Áustria, concluiu-se uma vez mais que os mesmos tratamentos invasivos para doenças cardíacas podem salvar a vida dos homens e pôr em risco a das mulheres.

Num estudo do Hospital Universitário de Linkoping, na Suécia, feito a uma escala reduzida, com 184 mulheres doentes, os médicos suecos descobriram oito mortes entre as pacientes que receberam tratamento mais agressivo e apenas uma morte num grupo que seguiu outro tratamento.

A investigadora do estudo, Eva Shawn, frisou que as mulheres devem ser tratadas em pé de igualdade com os homens, mas igualdade não significa o mesmo tratamento", cita a AFP.

12% das mulheres com doenças cardiovasculares morreram no hospital face a 7,8 por cento dos homens, revela o estudo