16.9.07

"Nunca houve nem nunca haverá fortaleza nenhuma"

Hugo Manuel Correia / / Farol de Ideias, in Jornal de Notícias

António Vitorino lembra que a UE não pode dar a paz como garantida e que esta será sempre prioridade

A União Europeia corre o risco de se tornar numa fortaleza, rodeada por uma multidão a querer entrar?


António Vitorino| Há alguma retórica política que alimenta a ideia da fortaleza. É um puro irrealismo. Nunca houve nem nunca haverá fortaleza nenhuma. É evidente que eu não sou defensor de uma Europa para a qual possam vir todas as pessoas. Isso não faria sentido! Seria aliás um acto irresponsável de que as primeiras vítimas seriam os próprios imigrantes. Porque se viessem aqui para o desemprego estariam a afundar a sua exclusão social. Agora, não é possível ter a ilusão de que um continente rico, como é o europeu, em acelerada queda demográfica, em que se envelhece muito rapidamente... É óbvio que a pressão migratória vai manter-se. O que é preciso é que haja canais de imigração legal que sejam definidos em função da capacidade de integração dos imigrantes nas sociedades europeias de acolhimento.

Detecta sinais de proteccionismo ou de um regresso ao proteccionismo na UE?

Sim. A realidade económica europeia é um diálogo permanente entre a abertura e o proteccionismo. Essa é a história da construção do mercado interno, hoje ainda mais, quando a Europa está confrontada com uma concorrência à escala global. Há quem tenha sempre a tentação de pensar que a melhor maneira de reagir perante a concorrência é o proteccionismo fechar as portas e ficarmos aqui quietinhos. Mas esses esquecem-se de que se nos fecharmos, outros também se fecharão. E as oportunidades que temos de exportar produtos e serviços também se fecharão para os Europeus, e isso seria muito negativo.

É por isso que estou preocupado com o facto de ter havido um impasse nas negociações na Organização Mundial do Comércio em relação à chamada ronda negocial de Doha, porque vejo aí mais um incentivo para que se reforcem as tendências proteccionistas, que são completamente injustificadas no mundo global em que vivemos.

A relação entre UE e EUA poderá agravar-se ou sairá reforçada enquanto um bloco político ocidental?

Creio que a relação transatlântica é essencial para a estabilidade, a paz no mundo e também para o próprio projecto Europeu. Eu diria que esta relação transatlântica é uma relação fundamental, mas marcada também por tensões económicas e políticas. O que é preciso é que se aprofundem as relações económicas.

A Chanceler Alemã Angela Merkel lançou a ideia de um mercado transatlântico mais aberto, porque também há muito proteccionismo do lado americano. Os americanos fazem muitas vezes um discurso de "free trade" e de comércio livre, e são os primeiros a darem sinais de proteccionismo preocupante. Mas a relação económica é sólida. É uma relação fundamental para criar riqueza e um maior dinamismo económico à escala global. Politicamente, estes últimos anos têm sido caracterizados pela divisão entre os europeus sobre muitas das atitudes da administração americana. São diferenças entre dois blocos que partilham o mesmo núcleo de valores civilizacionais e que, ao divergirem, têm que dialogar para encontrarem forma de superarem essas divergências.

Existe o perigo da UE se cristalizar enquanto bloco económico?

A base do projecto de integração europeia é económica. São as quatro liberdades de circulação de produtos, serviços, capitais e de pessoas. Nesse sentido, esta matriz económica originária não se pode perder. O que verificamos hoje, no mundo global em que vivemos, é que a pura integração económica é insuficiente e o seu sucesso depende também de avanços no domínio da união política.

Como é que a UE se pode consolidar como um projecto de paz e de prosperidade?

Acho que os europeus têm hoje uma consciência difusa de que a origem do projecto europeu é a paz. É a reconciliação franco-alemã. E muitas vezes nós tendemos a desvalorizar aquilo que consideramos adquirido. E como , felizmente, vivemos durante cinquenta anos em paz no continente europeu, a paz deixou de ter o valor de mercado que teve no passado. É um puro equívoco. E basta puxarmos um pouco pela nossa memória e lembrarmos que nos Balcãs ocidentais houve recentemente conflitos étnicos sangrentos, com muitas mortes. Houve ameaças sérias à paz no continente europeu e a paz é, e continuará a ser, uma das preocupações centrais do projecto europeu.

A prosperidade é uma questão de natureza diferente. Sobre isso, acho que os cidadãos têm dúvidas. O desafio é mostrar que a UE é uma alavanca para permitir a reforma das economias europeias no sentido de manter os valores da coesão e da solidariedade social, ao mesmo tempo que se aprofunda a qualificação das pessoas e a capacidade competitiva das empresas europeias. E é este valor acrescentado que a Europa tem para este projecto de reformas, que nem sempre traz boas noticias, porque muitas vezes exigem sacrifícios, são duras, difíceis e obrigam-nos a mudar de paradigma. Mas se não o fizermos, não seremos capazes de ser vencedores no mundo em que vivemos.