26.12.07

Há 417 crianças que ninguém quer adoptar

Helena Teixeira da Silva, in Jornal de Notícias

Dos 12 245 menores institucionalizados em Portugal - incluindo já os 2698 que estão em famílias de acolhimento - apenas uma ínfima parte está em situação de adoptabilidade. Os dados mais recentes do Governo, apurados em Novembro, indicam que são 1356. O problema, no entanto, agrava-se quando a quase totalidade dos candidatos à adopção diz estar na disposição de receber, apenas, crianças perfeitas, brancas e, de preferência, acabadas de nascer.

Idália Moniz, secretária de Estado da Reabilitação, criou novos instrumentos - dois documentos a aguardar a promulgação do presidente da República - para cumprir o prometido objectivo de diminuir o número de crianças colocadas em instituições. Mas defende que o trabalho poderá não ser facilitado se a pretensão dos candidatos continuar a pautar-se por um leque de requisitos extremamente limitador.

"Uma criança de tenra idade, sem problemas de saúde e sem deficiências, e com a cor de pele muito branquinha, terá um período de permanência numa instituição muito curto. Mas, se não obedecer a este perfil, poderá esperar cinco, dez anos, sem que nunca apareça alguém", afirmou [ler entrevista ao lado].

De facto, os números disponibilizados pelo Executivo demonstram que 95% dos 2291 candidatos inscritos querem uma criança entre os zero e os três anos; 93% não estão na disposição de receber crianças com problemas de saúde ligeiros ou graves, ou com deficiências. E 83% exigem uma criança de raça exclusivamente caucasiana. A média, já sem contemplar as preferências raciais, é objectiva 94% dos candidatos desejam crianças sem passado, desenhadas a regra e esquadro.

Inversamente, apenas quatro candidatos estão disponíveis para adoptar crianças com problemas graves de saúde, 151 não se incomodam com problemas ligeiros, 11 aceitam as deficiências. E só 171 candidatos dizem não ter preferência pela raça.

Como não é possível determinar dessa forma as características dos menores institucionalizados, sobra, actualmente, um universo de 417 crianças para as quais nunca chega a aparecer uma família. Mais de metade apresenta leves problemas de saúde, os outros têm algum tipo de deficiência ou são portadores de doenças graves. Este leque integra, também, crianças de cor.

25% de adopções até 2009

Ao universo de crianças que ninguém parece querer adoptar, acrescem centenas de processos que se arrastam durante vários anos - ou porque os pais continuam a visitá-los, mesmo que fugazmente; ou porque não autorizam a sua adopção; etc. -, sendo que a Lei 147/99 prevê que cada processo deveria ser revisto a cada seis meses.

Em média, uma criança permanece cinco anos numa família de acolhimento, quando, num cenário ideal, não deveria ficar lá mais de ano e meio, para evitar estabelecer laços afectivos que, posteriormente, serão interrompidos. Apesar disso, Idália Moniz garante que tem havido maior sensibilização por parte dos magistrados e das equipas técnicas das instituições para atenuar esse problema.

"Antigamente, só eram encaminhadas para adopção crianças em fim de linha. Era uma proposta quando já não havia nenhuma outra solução. Hoje, os números demonstram que, de facto, a adopção pode ser um projecto de vida viável e estruturante para crianças sem problemas de saúde". A estatística revela, ao longo deste ano inteiro, um aumento gradual de crianças em situação de adoptabilidade. Se em Janeiro havia 715; agora há 1356. Com adopção decretada, no início do ano havia dez; hoje há 256.

Neste sentido, a secretária de Estado reitera que até ao final da legislatura, em 2009, 25% dos menores institucionalizados serão integrados num seio familiar.

A meta, no entanto, não a desresponsabiliza de agilizar e profissionalizar as restantes figuras que, teoricamente, servem para proteger os menores. É por isso que, no enquadramento dos novos diplomas, as famílias de acolhimento deixarão de poder ter laços biológicos com as crianças que acolhem - em 2002, 70% das famílias eram biológicas - , podendo inclusivamente ser-lhes exigida formação específica para prestar o acolhimento. As famílias passarão a ser monitorizadas.

"Não se adopta para salvar o mundo, mas por responsabilidade"

Maria e Tom - Adoptaram filho com epilepsia

É bem provável que da visita a uma instituição de menores em risco ninguém saia exactamente como entrou. Maria não saiu. Por muito habituada que estivesse, por imperativo da profissão, a mover-se ali, não ficou imune ao menino que, um dia, viu num recreio de outros meninos, a brincar sozinho com uma caneta. "Duas meninas tiravam-lhe sistematicamente o objecto da mão. Cheguei lá e devolvi-lho". Ele agradeceu na única linguagem que conhecia com um sorriso. E ela, que transportava na barriga a primeira filha, nunca mais conseguiu apagar da memória a imagem. "Não sei o que foi; só sei que houve uma química muito grande", tenta explicar o inexplicável, a jornalista de 32 anos . Passou 24 meses inteiros a falar daquele dia, daquele menino. Tom, americano de 54 anos que veio para Portugal há cinco, por ela, por amor, não precisava acumular mais provas. "Vamos lá conhecer o rapaz", disse-lhe. "Quando dei conta, já era o meu filho", sorri. O menino, entregue à instituição com 20 dias, esperou quatro anos para ter família. Era bebé quando chegou, e todos querem bebés, mas não bebés como ele: com epilepsia mioclónica benigna, doença que atrasa o desenvolvimento. Em casa deles, no entanto, o preconceito fica à porta. "Quando o conheci", conta a mãe, "ele não andava, mal falava, ainda usava fraldas, salivava permanentemente. Não sabia sequer fantasiar". Os médicos, ainda por cima, insistiam que ele teria um problema neurológico grave. Maria dizia que não, acreditava que com atenção e estimulação, o processo seria reversível. E relatórios posteriores haviam de dar-lhe razão.

O menino provocador, que gostava de receber mas não sabia dar, é hoje um menino grande de quatro anos, meigo, autónomo. Continua a ser acompanhado no Centro de Paralisia Cerebral, mas nada o poderá travar. Parece um processo fácil, quase romântico, mas Tom, ele próprio adoptado aos nove meses, assegura que não é. "Não se adopta para salvar o mundo, mas por responsabilidade. Se o mundo tem sido bom para nós, por que não havemos de ser bons para alguém no mundo? Não se trata de filosofia cósmica. Apenas de dar o que se recebe".

"Processo de adopção é uma lotaria que se constrói todos os dias"

Fernanda e Pedro - Adoptaram casal de irmãos

"Os primeiros quatro dias são mel. Os seis meses seguintes, fel". De súbito, a explosão de afecto protelada por crianças que nunca conheceram o colo quente, o abraço apertado, o "vou gostar de ti para sempre" de um pai, salta para o confronto. Regras, horários, deveres da escola despertam conflito em quem cresceu na queda livre de nunca ser de ninguém. Depois, um dia, vem a acusação sacramental "Mas tu não és meu pai". Pedro, 42 anos, aguentou estoicamente de todas as vezes que o seu amor foi posto à prova - e foram muitas. Quando o derradeiro desafio chegou, sentia-se preparado. Respondeu devagar: "Posso não ter sido eu quem te fez, mas ser pai é estar presente. É rir, falar, educar, brincar, dar casa". A conversa marcava o início da cumplicidade estreita entre o engenheiro mecânico e o rapaz que agora conta 16 anos - ambos apaixonados por carros antigos. Pai e filho conheceram-se em 1997. "Não foi preciso período de adaptação; foi amor à primeira vista", atesta o pai.

Fernanda, a mãe, havia imposto a si própria uma meta engravidar até aos 35 anos. A fulgurante carreira de economista ditara tacitamente o tempo que estaria disposta a esperar. Esperou, mas não aconteceu. "Em vez de entrar em depressão, decidimos virar a página: adoptar". À Segurança Social disseram querer receber duas crianças até aos cinco anos, desde que não tivessem problemas de saúde. Reconhecem que parecerá egoísta, mas será mais a consciência das próprias limitações. "Não saberíamos lidar com isso". Propuseram-lhes um casal de irmãos: menina de quatro; rapaz de sete. E quatro dias para decidirem. "Se não tivesse aceite - mesmo sem nunca lhes ter visto o rosto - nunca me perdoaria", confessa aos 44 anos, "eternamente grata" pelo que os filhos fizeram dela: uma pessoa melhor. A menina, desde o primeiro dia, nunca mais lhe largou o colo. E, de vez em quando, ainda pergunta: "Gostas de mim até ao céu?" A mãe, que não consegue falar sem os olhos húmidos, continua a responder: "Até ao infinito, até onde não consegues ver". Como respondia ao filho de cada vez que ele dizia não gostar dela: "Nao faz mal, eu gosto de ti por nós os dois". Numa adopção nunca se sabe o que vai acontecer. "É uma lotaria que se constrói todos os dias."