31.12.07

Os temas que este ano mereceram a intervenção de Cavaco Silva

Joana Ferreira da Costa, in Jornal Público

Maior intervenção, alguns recados, alguns vetos, alguns elogios. Eis os temas que mereceram mais atenção ao Presidente da República


Se o ano ficou marcado por uma actuação muito mais interventiva do Presidente da República, certo é que Cavaco Silva nunca entrou em choque com o Governo. O chefe de Estado lançou apelos, vetou num mês quatro diplomas emblemáticos da política socialista e deixou ao longo do ano repetidos recados ao Executivo. E este mostrou-se quase sempre disponível para os acolher. Uma actuação correctiva do Presidente, que, apesar dos repetidos avisos à navegação ou ao debate, também deixou elogios à actuação de José Sócrates.

Novo Aeroporto para Lisboa
A intervenção de Cavaco Silva foi fundamental para que o Governo recuasse na intenção de lançar este ano o concurso público para a construção da infra-estrutura na Ota. O Presidente pediu um "debate aprofundado" e estudos independentes sobre a localização do futuro aeroporto de Lisboa. A maioria socialista fez-lhe a vontade: o Parlamento debateu o assunto e o Governo suspendeu a decisão, encomendando uma análise comparativa dos vários estudos que defendem localizações alternativas para o aeroporto. A decisão final do Executivo estava prometida para meados de Dezembro, mas foi adiada para o próximo ano.

Aborto
Cavaco Silva promulgou a lei que despenalizou o aborto até às dez semanas, mas esteve longe de esconder o seu desagrado pelo conteúdo do diploma, enviando ao Parlamento uma vasto conjunto de recomendações de alteração à proposta do Governo. Quase todas acabaram por ser acolhidas pela maioria, que deixou de fora a recomendação de mostrar à mulher que vai abortar a sua ecografia e restringiu a informação sobre alternativas ao aborto a uma brochura a entregar à grávida. Já quando o Governo madeirense se negou a aplicar a nova lei no arquipélago o Presidente veio a público defender que esta recusa é um caso para a justiça e que os cidadãos madeirenses que se sintam lesados devem recorrer aos tribunais.

Natalidade
Como contraponto às questões do aborto, Cavaco Silva foi o primeiro a alertar para "a gravíssima" recessão demográfica em Portugal, que tem das mais baixas taxas de nascimento da Europa. O Presidente insistiu na necessidade de medidas de incentivo à natalidade, mas também de maiores respostas sociais e da comunidade ao problema. O Governo, pouco depois, anunciava a criação de um abono para grávidas a partir dos três meses e uma majoração do abono de família para o segundo e terceiro filhos, entre os 12 e os 36 meses.

Educação
Defensor de "um novo olhar sobre a escola", que deve depender menos do Estado e envolver cada vez mais as autarquias e a comunidade, o Presidente defendeu claramente uma maior autonomia das instituições de ensino que não teve eco nas decisões da maioria. Num ano marcado por alterações de peso e pela contestação à política educativa socialista, Cavaco Silva foi também um crítico atento do novo estatuto do aluno e não se cansou de apelar ao diálogo entre Governo e professores, cuja figura, insistiu várias vezes, deve ser "prestigiada".

Políticas do mar
Os apelos à importância das políticas do mar foram repetidos ao longo do ano, mas em Novembro subiram de tom as críticas do Presidente ao Governo: a Comissão Interministerial para os Assuntos do Mar, constituída nove meses antes, deve passar da "retórica" à "acção", apresentando um plano detalhado de aplicação da estratégia nacional para o mar. O chefe de Estado recordou que com esta inacção Portugal está a desperdiçar oportunidades no aproveitamento da costa e da zona de exclusão marítima.

Saúde
Cavaco Silva nunca respondeu directamente às medidas políticas que geraram uma onda de contestação popular um pouco por todo o país: o fecho de blocos de parto, do atendimento nocturno nos centros de saúde ou das urgências hospitalares. Mas foi deixando vários recados: salientou que ninguém pode ficar de fora da assistência pública de cuidados de saúde, frisando que há populações e zonas do país em "clara desvantagem", e alertou para a necessidade de as políticas e as suas consequências serem profundamente explicadas aos cidadãos. Ao mesmo tempo, tem defendido a importância do sector privado e social como complemento do sector público na prestação de cuidados de saúde.

Fragilidade da economia
O Presidente fez vários apelos à correcção do problema orçamental do país, ao mesmo tempo que defendia a urgência de o Estado, as autarquias e as empresas regressarem "à convergência real" com a Europa. Num desafio ao Executivo, o Presidente da República defendeu a necessidade de se criarem condições para uma maior competitividade económica, garantindo, ao mesmo tempo, a coesão social e regional. E frisou que o novo quadro comunitário de apoio "é um instrumento verdadeiramente estruturante para a economia", devendo colocar Portugal na média da UE.

A presidência da UE
Ao longo do ano, o Presidente da República fez vários elogios à acção do Governo. O mais rasgado foi, sem dúvida, quanto à presidência da UE, em que considerou "excelente" o trabalho do Governo português, que culminou com um "resultado histórico" na cimeira onde foi aprovado o Tratado de Lisboa. Já quanto à ratificação do tratado, Cavaco já manifestou ser contra um referendo. Uma bota que o primeiro-ministro terá ainda de descalçar, já que se o referendo foi uma promessa eleitoral socialista, ele contraria o acordo de cavalheiros feito pelos Estados-membros na Cimeira de Lisboa para evitar que o sucesso alcançado a 27 possa ser travado pela vontade de cada um dos países.

Os vetos
Agosto foi o mês dos vetos presidenciais. Cavaco Silva travou nada mais nada menos do que quatro leis emblemáticas da política do Governo: a lei orgânica da GNR, a lei do Estatuto do Jornalista, lei que previa o levantamento do sigilo bancário em casos de reclamação do contribuinte e a da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado. A maioria socialista respondeu a muitas das alterações propostas pelo Presidente, à excepção da lei da Responsabilidade Civil, que foi aprovada no Parlamento praticamente sem alterações, por uma maioria "expressiva". A razão invocada pelo Presidente para, claramente contrariado, promulgar o diploma sobre o qual manteve todas as dúvidas que o levaram ao veto inicial.
Cavaco Silva elogiou a presidência portuguesa
da UE, que culminou com o Tratado de Lisboa

O que disse Cavaco
["Em segundo lugar] é importante que 2007 fique marcado por melhorias visíveis no nosso sistema de ensino. A formação dos jovens é determinante para combater as desigualdades".

O que fez o Governo
A diversificação da oferta - aumentaram os cursos profissionais, de educação e formação e tecnológicos nas escolas públicas secundárias - conquistou mais alunos para as escolas. São hoje mais de dois mil os cursos que dão uma certificação escolar mas também profissional e há 35,4 por cento de alunos matriculados em vias profissionalizantes. Segundo os números do Governo, 18.500 alunos frequentam, este ano lectivo, o ensino secundário. De resultados pode ainda falar o Governo quanto ao Programa Novas Oportunidades: mais de 300 mil pessoas retomaram os estudos.

O que disse Cavaco
"A qualidade no ensino, o estímulo à excelência e o combate sem tréguas ao insucesso e abandono escolar têm de ter sinais positivos já em 2007"

O que fez o Governo
Foi de "resultado histórico" que o Governo falou no último debate mensal na Assembleia da República, ao exibir as taxas de redução do insucesso escolar. Nos dois últimos anos, no ensino básico, os chumbos baixaram oito pontos percentuais, segundo revelou José Sócrates, e foi reduzido também o abandono precoce, entre os jovens dos 18 aos 24 anos. No ensino secundário, a taxa de reprovações ficou abaixo da fasquia dos 30 por cento, embora a tendência de descida já venha de trás. José Sócrates tem, pois, estatísticas para mostrar, mas uma análise detalhada dos números revela debilidades. No 12.º ano, com exames nacionais, no ano lectivo 2006/2007 a percentagem de chumbos subiu aos 38 por cento, embora seja oito por cento inferior à do ano anterior. F. F.

O Governo fez do controlo das contas públicas a sua aposta principal e deve terminar este ano cumprindo o objectivo dos 3 por cento de défice

O que disse Cavaco
"É chegado o tempo de ultrapassar a fase de reduzido crescimento económico e de acertar o passo com os nossos parceiros europeus, consolidando um novo ciclo de desenvolvimento"

O que fez o Governo
Em rota de divergência com a União Europeia há largos anos, o PIB português não passa dos 75 por cento da média europeia, o que coloca Portugal atrás de países como a Eslovénia, a República Checa, a Grécia e Chipre. Mas antecipam-se melhores dias para contrariar este fosso de desigualdade persistente. Segundo a última previsão da OCDE, em 2008 Portugal poderá crescer 2,2 por cento, ou seja, ligeiramente acima a média europeia (2,1 por cento é a previsão para a zona euro). Uma subida tímida, mas que, mesmo assim, quebra o ciclo de continuada divergência.

O que disse Cavaco
"[É muito importante que se registem progresso claros] em primeiro lugar no domínio do desenvolvimento económico, que é essencial para que haja mais emprego, mais justiça social e melhores condições de vida"

O que fez o Governo
Apesar de José Sócrates garantir que nos últimos dois anos e meio foram criados, em termos líquidos, 106 mil novos empregos, as cifras do desemprego são negras, atingindo cerca de meio milhão de portugueses. Segundo o INE (Instituto Nacional de Estatística), a taxa de desemprego situava-se no 7,9 por cento no terceiro trimestre deste ano. E, de acordo com o IEFP (Instituto de Emprego e Formação Profissional), em Novembro estavam inscritos 400 mil desempregados nos centros de emprego, representando 83 por cento num total de 483 mil pedidos de emprego. Quanto à melhoria das condições de vida, as perspectivas não dão margem a entusiasmos. O Governo tem fixado os aumentos salariais na administração pública tendo por base a inflação prevista e bastará fazer contas para se adivinhar uma perda do poder de compra real. O aumento para a função pública será de 2,1 por cento, em 2008. Em Novembro, a inflação medida pelo INE situava-se nos 2,8 por cento.

O que disse Cavaco
"É crucial que 2007 fique marcado por uma recuperação do investimento"

O que fez o Governo
Os últimos indicadores darão alento aos mais cépticos. No terceiro trimestre deste ano, o crescimento do investimento foi de 4,2 por cento face ao mesmo período do ano anterior, algo que não acontecia desde 2004. A subida sugere a consolidação, virtuosa, da tendência que se verificou no segundo trimestre (0,4 por cento). E representa um trunfo para o Governo, se atendermos a que se registaram crescimentos negativos em 2005, em 2006 e nos primeiros três meses de 2007.

O que disse Cavaco
"O esforço do equilíbrio das finanças públicas é, sem dúvida, um factor para o crescimento económico sustentado, havendo, no entanto, que actuar por forma a preservar a coesão social e a solidariedade para com os que mais precisam"

O que fez o Governo

A frase de que "há vida para além do défice" faz já parte da história, mas o Governo fez do controlo das contas públicas a sua aposta principal e deve terminar este ano cumprindo (porventura até para melhor) o objectivo quê se propôs: atingir os 3 por cento. As dúvidas prendem-se com a estratégia seguida, sendo recorrentes as críticas de que este resultado foi conseguido muito à custa do aumento da carga fiscal e de um forte recuo no investimento público, e não tanto da redução do peso da despesa pública, ou seja, do peso do Estado. O aumento das pensões de reforma mais baixas e a criação de um complemento solidário para os mais idosos são duas medidas que podem ser apontadas como um esforço para a coesão social. Mas, ao mesmo tempo, a reforma da segurança social, feita com o objectivo de conseguir a sustentabilidade financeira do sistema, representa um corte significativo nas regalias e nos proveitos dos pensionistas. F.F.

O que disse Cavaco

"2007 é o ano em que devem ser concretizados passos para a melhoria do funcionamento da Justiça. No ano passado, reduziu-se alguma crispação que marcava o sector da Justiça. Foi mesmo possível chegar a um entendimento político alargado com vista à credibilização e ao reforço do sistema judicial. Dos protagonistas deste sector espera-se um contributo activo para a eficiência do sistema judicial".

O que fez o Governo

Não foi por falta da revisão de diplomas que a justiça se tornou mais eficaz. A maioria socialista aprovou a revisão dos códigos penal e do processo penal, alterou o regime de acesso ao CEJ (Centro de Estudos Judiciários) e consagrou a autonomia do Conselho Superior da Magistratura. Mas a controvérsia estalou quando, na lei dos vínculos, carreiras e remunerações da Função Pública, o Governo do PS quis consagrar a "funcionalização" de juízes e procuradores. O Tribunal Constitucional já declarou inconstitucional a norma relativa aos juízes dos tribunais judiciais, deixando de fora a jurisdição administrativa e a magistratura do Ministério Público. A norma vai ter de ser revista e se só deixar de se aplicar aos juízes dos tribunais judiciais irá suscitar reacções por parte dos juízes dos tribunais administrativos e dos magistrados do Ministério Público. Estes últimos poderão sempre contar com a posição do procurador-geral da República para suscitar nova intervenção do Tribunal Constitucional. Há um ano, o Presidente da República registava a "redução da crispação" e via "no entendimento político alargado (leia-se pacto de justiça)" condições para "a credibilização e reforço da confiança no sistema judicial". Mas o clima de descrença ressurgiu, alimentado pela convicção de que a voz dos juízes, dos magistrados e dos próprios advogados não é escutada pelo Governo. E por quem legisla. Na forja estão novos diplomas que podem gerar controvérsia, como é o caso do estatuto dos magistrados judiciais e a revisão do mapa judiciário.