16.12.07

"Os filhos também não são nossos. Também fazem a vida deles"

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

Os Ramalhetes embalam um bebé de seis meses. Os Dias, duas crianças de sete e um rapaz de 14


Quando viram a primeira campanha Procuram-se Abraços - Acolhimento Familiar de Crianças, não correram a inscrever-se. Falavam em adoptar desde os tempos de namoro. A ideia de se entregarem a uma criança e de se separarem dela parecia-lhes demasiado dolorosa. Repensaram. A filha, de oito anos, precisa de partilhar o mimo, não vá transformar-se numa adulta insuportável. Sobram miúdos carentes de "um carinho, de um amparo", enquanto a sua família se recompõe.

Paula e José Ramalhete integram a nova geração de famílias de acolhimento que desponta em Famalicão - 29 captadas, seleccionadas, formadas desde Março de 2006 pela Mundos de Vida, a primeira instituição particular de solidariedade social com competência para actuar como instituição de enquadramento do acolhimento familiar; outras dez a caminho. Submeteram-se a um processo de selecção integrado num plano de formação. Aprenderam a colocar-se "no lugar da criança acolhida, no lugar da família biológica", a aceitar as despedidas que hão-de vir.

Esperavam acolher crianças em idade próxima da filha. De repente, propuseram-lhes um bebé de seis meses. De repente, era preciso encontrar um berço, uma banheira, "tudo". De repente, o que fora da filha e passara para um sobrinho tornava a casa, para aquela vítima de negligência grave. Mas... porquê eles? Porque podiam "responder às necessidades de um bebé", retorque a assistente social Celina Cláudio. Têm horários flexíveis (ela é directora financeira e ele é técnico oficial de contas e professor), aguentam de bom grado as "noites sem
dormir".

Há laços que se criam nestas "noites sem dormir" - e nestes dias. Não por acaso, a Mundos de Vida exclui deste programa famílias candidatas à adopção. "Podiam trabalhar no sentido contrário ao pretendido, fazer tudo para a criança não regressar à família", compreende Paula. No limite, até podiam recusar entregar a criança. E seria um problema como alguns que têm dado à estampa e que, no entender do presidente da associação, Manuel Araújo, estão mais relacionados com "posse" do que com dádiva.

Apesar dos "maus exemplos" que chegam aos jornais, Araújo julga disparatado confinar um bebé a um centro de acolhimento só para impedir vínculos afectivos. Sublinha a necessidade de clarificar papéis, de não eternizar o que é temporário. Narra a história de uma família biológica que visitou a criança 70 vezes em "três ou quatro meses" e acabou por convidar a família de acolhimento a apadrinhá-la.

Que não haja ilusões: por mais que se aumente o esforço de reabilitação das famílias biológicas, há acolhimentos impossíveis de encurtar. Como o de um rapaz de sete anos acolhido por Arminda Dias. Os avós, os pais, todos presos numa rusga que varreu um célebre bairro de Braga.

Perguntas inesperadas

Arminda leva o miúdo a Santa Cruz do Bispo, Matosinhos, ver a mãe detida. A rapariga ouve o filho tratá-la por tia e repete o trato. Está "agradecida". Ele até parece ter mudado de mundo. De início, o miúdo bem disparava perguntas estranhas: "Porque se come três vezes por dia? Porque se toma banho todos os dias? Porque se muda de roupa todos os dias?" Não se lembrava de alguma vez ter comido sopa.

É preciso uma grande dose de "generosidade" para ser família de acolhimento à moda da Mundos de Vida - encarar esta tarefa como um trabalho humanitário e não como um modo de ganhar dinheiro ou uma antecâmara da adopção. "A pessoa tem de fazer isto por gosto", comenta Arminda. A cabeleireira não pensa na separação. "Os filhos também não são nossos, também crescem e se desvinculam, fazem a vida deles". Os dela contam 17 e 18 anos, já conquistaram a sua autonomia, já nem "preenchiam" aquele seu gosto de se sentir útil enquanto vê crescer. Os três miúdos que agora acolhe fazem-no e ela ri-se por dentro. Graças a eles, a sua casa voltou a encher-se de cor. Até a irmã já quer ser família de acolhimento.

29
Número de famílias seleccionadas e formadas pela associação Mundos de Vida para acolher crianças