26.12.07

Teresa escolheu passar a noite de Natal com os sem-abrigo

Andreia Sanches, in Jornal Público

Há mais pessoas a querer abdicar da consoada tradicional para ter a experiência de passar o Natal a fazer voluntariado


Quando decidiu que este Natal seria diferente de todos os outros, que não seria passado com os filhos e os netos, nem com a mãe ou com a tia do Norte, achou que não devia contar-lhes logo. Pensava que a família ia ficar triste. E quis poupar-lhes o desgosto por mais algum tempo. Por fim, revelou-lhes os seus planos. Desta vez, na noite da consoada, estaria na rua, a distribuir meias, figos e orações a pessoas sem abrigo. "E a minha mãe disse-me: "Se eu pudesse, também ia contigo!"". Afinal, ninguém ficou triste.

Maria Teresa Mendes tem 53 anos, é católica, faz presépios e vive em Lisboa. Tem quatro filhos e três netos e sempre passou a noite de Natal com a família. A sua experiência de voluntariado resumia-se, até agora, a dar aulas, a ensinar os outros a fazer presépios. Mas há uns meses decidiu ir ter com a Comunidade Vida e Paz, uma das organizações que se dedicam a apoiar os sem-abrigo na capital.

Ofereceu-se para acompanhar, durante esta quadra, as equipas de rua que todos os dias do ano levam uma ceia e roupa a cerca de 450 pessoas que não têm casa. "Nunca fiz voluntariado deste tipo." Já sabe que foi integrada numa equipa.

Amanhã, quando na maioria dos lares portugueses as atenções estiverem divididas entre o bacalhau cozido com couves, as prendas e a programação televisiva, Maria Teresa Mendes estará algures entre Arroios, Almirante Reis e Praça de Londres. Não é a única.

No ano passado, já tinham chegado à Comunidade Vida e Paz - uma instituição particular de solidariedade social de inspiração cristã - vários pedidos de pessoas que, não tendo qualquer ligação à organização, se ofereceram para na noite de Natal acompanhar as equipas de rua. Este ano foram ainda mais, diz a irmã Cristina Duarte.
Há quem se voluntarie sozinho, mas também quem por vezes queira levar o pai, um irmão, um filho. E há quem acabe por não mais se desvincular da instituição. "No ano passado houve pessoas que depois do Natal quiseram continuar, mas isso é muito frequente no resto do ano também: as pessoas vêm uma vez e depois querem continuar", continua Cristina Duarte que lembra que a Comunidade trabalha todos os dias do ano, e não só na noite da consoada. Todos os meses distribui 27 mil sandes e 1800 litros de leite. No ano passado, 119 sem-abrigo ingressaram no programa de reinserção da instituição.

"Um sorriso, um abraço"

"Estou-me a preparar muito", contava esta semana Maria Teresa que o PÚBLICO encontrou rodeada de cartolinas coloridas, à mesa da loja, na comercial Rua Augusta, onde este ano esteve a funcionar o Presépio na Cidade - um projecto de leigos católicos que se propõe a "dar a conhecer o Menino Jesus à cidade de Lisboa" e a "repor o verdadeiro sentido do Natal". Por estes dias, visitam hospitais e prisões, falam do Menino Jesus, fazem trabalhos manuais.

Em tempos, Maria Teresa Mendes teve negócios na área da restauração, depois trabalhou num lar, mais tarde dedicou-se à arte sacra. Há dez anos começou a fazer presépios - e já fez dezenas deles - ganhou vários prémios. Este ano, algo aconteceu e sofreu uma grande desilusão. Diz que encontrou "a alegria no sofrimento".

Desde então envolveu-se em vários projectos. "Quero criar um movimento ligado ao Menino Jesus e um Museu do Presépio, com workshops para crianças e onde se possam fazer várias exposições", diz. Também ajudou na festa de Natal da Comunidade Vida e Paz, juntamente com mais mil voluntários, e participa nas actividades do Presépio na Cidade. Dentro do espírito de Natal - que acha que não tem que ser o do mero consumismo - ofereceu-se para trabalhar na noite da consoada.

Aos sem-abrigo, continua, quer levar "um sorriso, um rosto bonito e um abraço, se eles quiserem ser abraçados, claro!" Quer dedicar-lhes o seu tempo, sem pressas, para que a noite de Natal "seja uma noite especial", sejam eles "católicos ou não". Conta regressar a casa tarde, "às duas ou três da manhã".

Com ela levará também pagelas (estampas com imagens de santos e uma oração), meias e figos - com mais três amigos, conseguiu arranjar 300 pares de meias e 300 pacotinhos de figos para oferecer com a ceia de Natal que as equipas da Comunidade Vida e Paz distribuem. "Não conheço ninguém da equipa com que vou", diz a sorrir. Os amigos vão noutros turnos.

Maria Teresa Mendes não esconde a expectativa. Quer que os sem-abrigo sintam que "são pessoas importantes" - "porque se estamos ali com eles é porque são tão ou mais importantes do que a nossa família". E mostra orgulhosamente a oração que mandou imprimir nas pagelas para distribuir: "... Ver em cada Homem um irmão/ Amá-lo na tristeza e na alegria! Amá-lo sempre, de novo, em cada dia".

Qual era a maior alegria que ela podia ter neste Natal? "Que ele fosse o início da libertação do cartão", responde. Por outras palavras: que quem dorme nos passeios coberto de papéis tivesse uma vida nova em 2008.

119 sem-abrigo ingressaram no ano passado no programa de reinserção da Comunidade Vida e Paz, uma instituição particular de solidariedade social de inspiração cristã.