16.12.07

O Natal de quem vive só

Gina Pereira, in Jornal de Notícias

Mesas serão hoje recheadas com um prato de bacalhau com todos


A festa chegou a estar ameaçada, com o roubo, há precisamente uma semana, de muita da comida e roupa que, ao longo dos últimos meses, tinha sido oferecida à Comunidade Vida e Paz (CVP) para a tradicional festa de Natal dos sem-abrigo. Mas a onda solidária que se gerou depois de noticiado o assalto acabou por garantir que , durante este fim-de-semana, haveria na cantina da Cidade Universitária, em Lisboa, alimentos e roupa suficientes para oferecer a quem precisa. A boa-vontade foi tanta que, adiantou ao JN Elizabete Cardoso, voluntária da organização, vão sobrar víveres para distribuir por outras organizações de apoio a carenciados.

A iniciativa arrancou sexta-feira à tarde e prolonga-se até esta noite, terminando com uma distribuição de presentes, depois do jantar de bacalhau com todos brinquedos para as crianças; sacos-cama, mantas e mochilas para os adultos. Ontem, durante toda a tarde, houve sempre gente à porta, para fazer a identificação e entrar no recinto, devidamente enfeitado. A boa organização dos voluntários - ao todo inscreveram-se 1300 pessoas para ajudar nesta festa - fez com que tudo decorresse sem percalços.

Não foi pela comida que Maria Oliveira, 54 anos, decidiu ir à festa. Vive há duas semanas num centro de acolhimento da Santa Casa da Misericórdia, depois de meses a dormir na rua, às vezes dentro de um carro abandonado. Tem família, "mas é como se não tivesse". Já foi cozinheira e trabalhou em limpezas. Agora não tem trabalho, nem qualquer fonte de rendimento. Sentada a uma mesa a lanchar, estava feliz. "Sinto alegria no ar".

Neusa Quinhas, 42 anos, nem sequer passou pela zona da comida. Vítima de violência doméstica, tomou a difícil decisão de sair de casa há apenas dois dias. Está abrigada num centro de acolhimento, mas como abandonou o lar com o que tinha no corpo, decidiu ir à procura de alguma coisa para vestir. Saiu com dois sacos de roupa e a confiança de que "alguma coisa" há-de arranjar para "levar a vida em frente".

Rui Manuel, 50 anos, soube da festa "na rua", para onde foi empurrado há alguns meses, depois de vários problemas familiares. Já foi sócio de um restaurante, mas agora tenta sobreviver com o pouco dinheiro que ganha quando consegue biscates como cozinheiro. "Aos 50 anos é complicado. E como sou diabético ainda pior". O último patrão dispensou-o por causa da doença.

Rui, que já dormiu ao relento no Terreiro do Paço e no Cais do Sodré, conseguiu abrigo num armazém abandonado, na zona de Santos. Sempre que pode, tenta cozinhar a sua própria comida porque a doença não lhe permite ingerir os alimentos que, todas as noites, são distribuídos pelas carrinhas de apoio aos sem-abrigo. Tem uma forma peculiar de olhar estas associações. "Enquanto estiverem na rua, continuam a alimentar o 'monstro'", diz, criticando o facto de muitos sem-abrigo estarem "habituados a esta vida" e não darem o devido valor aos apoios que recebem. "Usam as roupas uma única vez e deitam fora. É feio!"

Maria Teresa de Jesus, 58 anos, tem oito filhos, mas nenhum a quer acolher. Já viveu na rua, agora está por caridade "em casa de um senhor". Achou a festa "o máximo". "Então para quem está sempre fechada dentro de casa...", desabafou, enquanto esperava pela sua vez no cabeleireiro assegurado por voluntárias. Ia cortar o cabelo, pintar as unhas e arranjar as sobrancelhas, o que não fazia há anos. Um luxo.