6.9.21

O princípio do fim do “milagre” económico português?

Ricardo Cabral, opinião, in Público on-line

A covid-19 traduziu-se num choque negativo na balança comercial portuguesa que pode ser, pelo menos em parte, permanente.

Na passada semana, o INE publicou as estatísticas sobre a evolução trimestral da economia portuguesa (as estatísticas das contas nacionais trimestrais).

No 2.º trimestre de 2021, o PIB nominal cresceu 14,5% em relação ao trimestre homólogo, uma taxa excelente, mas que ainda assim apenas deixa o PIB nominal praticamente ao nível do 1.º trimestre de 2019. Em termos reais, o PIB cresce 15,5% em relação ao período homólogo do ano anterior, porque o INE estima que os preços caíram 0,9% nesse período.

Pela primeira vez desde o 1.º trimestre de 2020, o PIB anual cresce em termos nominais, no ano terminado no 2.º trimestre de 2021, ainda que a uma taxa modesta de 0,1%.
Razões para considerar que a crise covid-19 foi completamente ultrapassada?

Infelizmente não. A balança comercial (de bens e serviços) está a puxar o PIB para baixo, com um efeito negativo crescente, que se tem agravado de trimestre para trimestre. No 2.º trimestre de 2021, o défice da balança comercial atingiu 3,7% do PIB, quando no 2.º trimestre de 2019, antes do início da pandemia, a balança comercial apresentava um excedente de +0,2% do PIB. É necessário recuar uma década (2.º trimestre de 2011) para observar um défice da balança comercial igual ou superior.

Por outras palavras, no 2.º trimestre de 2021 e em termos nominais, a procura interna já ultrapassou o pico atingido antes do deflagrar da pandemia covid-19, suportada pelo consumo bem como, em menor grau, pelo investimento.

Mas, com o contributo negativo da balança de bens e serviços que, em termos anuais, se aproxima dos 3% do PIB (défice de 2,6% do PIB no ano concluído no 2.º trimestre de 2021), é pouco provável que o PIB nominal supere os níveis atingidos em 2019 já em 2021.
A pandemia veio colocar em causa o modelo de desenvolvimento do país

Como se vem defendendo há muito nesta coluna, a crise do euro – de endividamento externo de vários estados-membros da Área do Euro que resulta de uma deficiente arquitectura da União Económica e Monetária – não foi verdadeiramente resolvida. As autoridades europeias empurraram o problema com a barriga, com consequências negativas para o desenvolvimento da economia portuguesa no médio e no longo prazo.

É certo, a política monetária contribuiu para reduzir a taxa de juro, assegurando uma muito melhor dinâmica das dívidas externa e pública de países como Portugal.

Por outro lado, a política de austeridade europeia adoptada por sucessivos governos nacionais deprimiu a procura interna de forma a reduzir a taxa de crescimento das importações, resultando num aumento da taxa de cobertura das importações de bens em torno de 65%-70% entre 1996 e meados de 2011, para em torno de 80%-85% desde 2012.
Apostar tudo em dois cavalos: turismo e benefícios fiscais para o imobiliário

Face aos constrangimentos europeus que restringem a autonomia (e a soberania) das autoridades nacionais e as políticas públicas, a estratégia de política adoptada acabou por se traduzir numa especialização nos sectores onde o país apresenta vantagens comparativas e na criação de incentivos fiscais para atrair para Portugal não-residentes com elevado património, nomeadamente, vistos “gold” e o estatuto dos não-residentes habituais.

A instabilidade no Médio Oriente e a redução dos preços do transporte aéreo estimularam de modo significativo o crescimento do turismo de curta duração que, com o desenvolvimento da oferta nacional, deram então uma preciosa ajuda para uma década de ouro da indústria do turismo nacional.
 

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Gráfico 1. Balança de bens e balança de serviços (Portugal, soma móvel últimos 12 meses)

Sobretudo em resultado do crescimento dessa indústria (ter presente a relevância das receitas de exportação da TAP), o contributo da balança de serviços para o PIB, em contas nacionais, aumentou 4 pontos percentuais, de cerca de +3% do PIB em 2010 para quase +7% do PIB em 2019. O gráfico 1 revela o crescimento continuado do excedente da balança de serviços entre 2010 e 2019 (soma móvel dos últimos 12 meses, em milhões de euros). A balança de bens, em contraste, deteriorou-se entre 2013 e 2019.

O gráfico 2 mostra que o excedente crescente da balança de serviços, ao superar o défice da balança de bens, permitiu que a balança de bens e serviços fosse excedentária entre Dezembro de 2012 e Abril de 2020 (soma móvel dos últimos 12 meses, em milhões de euros), contribuindo de forma determinante para o equilíbrio das contas externas do país nesse período.
 

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Gráfico 2. Balança de bens e serviços e respectivas componentes (Portugal, soma móvel últimos 12 meses)
A covid-19 veio colocar em causa essa estratégia de política macroeconómica nacional

O maior dinamismo da procura interna em 2021 tem-se traduzido numa ligeira deterioração balança de bens. Contudo, até ao 2.º trimestre, as exportações de serviços continuam muito abaixo dos níveis registados até 2019 (em termos anuais, cerca de 12 mil milhões de euros abaixo, ou 5,8% do PIB).

O Verão parece ter dado um impulso ao turismo, mas parece pouco provável que o turismo volte a ter o papel e a importância que tinha até 2019 para a economia nacional. Pelo que se coloca a questão: onde encontrar actividade económica que possa gerar exportações líquidas de 3%-4% do PIB para substituir o contributo do turismo e reequilibrar as contas externas do país?
O PRR não é o “el dorado”

As associações empresariais do país (e alguns partidos da oposição) têm-se multiplicado em críticas ao PRR do governo com o argumento que vai pouco dinheiro para as empresas (e que a maior parte dos fundos vai para o sector público).

Essa crítica parece pouco fundamentada, porque se afigura que não são compreendidas as dificuldades das políticas públicas (e do governo) a este respeito. O PRR, como estabelecido, está empenhado em “dar” dinheiro às empresas. O problema é que a menos que se queira dar dinheiro directamente aos empresários sem que estes tenham qualquer obrigação de investir, não é fácil encontrar, em número e dimensão económica, projectos do sector privado estruturados que possam utilizar esses fundos para desenvolver a sua actividade e sobretudo aumentar as exportações (ou para substituir as importações).

O tecido empresarial português dificilmente será capaz de processar tal volume de dinheiro a fundo perdido em projectos economicamente viáveis.

É, por conseguinte, pouco provável que o PRR seja capaz de vir a dar um contributo muito significativo (i.e., de mais de 1% do PIB por ano) para a balança comercial portuguesa.
Enfiar a cabeça na areia?

Em síntese: a covid-19 traduziu-se num choque negativo na balança comercial portuguesa que, para já, parece ser de cerca de 3%-4% do PIB por ano na balança de serviços. É possível que esse choque seja, pelo menos em parte, permanente e se tal for o caso, o endividamento externo rapidamente voltará à sua trajectória de crescimento insustentável e, desta feita, não é com austeridade que corrigimos um problema desta dimensão como também não o foi em 2011-2013. Nessa altura, felizmente e em contraste, tivemos a ajuda do crescimento do turismo.

Por conseguinte, as autoridades nacionais enfrentam o enorme desafio de dinamizar a estrutura produtiva do país de modo a torná-la capaz de reequilibrar as contas externas do país num prazo relativamente curto (5 anos?), quase sem instrumentos de política industrial. Essa afigura-se uma missão bastante difícil, após décadas a insistir na mesma tecla – a das exportações –, sem sucesso, desta vez mesmo com os salários reais a descer (ou se calhar por isso mesmo). Seria bom não continuar a insistir numa estratégia que não resultou no passado.