Isabel Moura, in Público on-line
É tímido mas há um regresso às aldeias. E como são “as pessoas que chamam as pessoas”, o mapa do interior centro é feito com rostos. Um projecto dentro de um outro mais vasto, o Mapas Natureza, da INature, que de Julho até 17 de Outubro propõe uma programação multidisciplinar para dinamizar as áreas naturais da região centro.
Contrariando a tendência da desertificação, a pandemia empurrou os portugueses para os meios rurais. O interior foi, subitamente, o destino favorito dos que fugiam dos aglomeramentos. Jasper e Anthonia escolheram, há um ano, a aldeia de Faia, na Serra da Estrela, como casa. Os holandeses são duas das caras que integram o Pessoas-Mapas, um “projecto dentro do projecto Mapas Natureza”, como menciona Miguel Vasco, coordenador da iniciativa. Os mentores partiram da premissa de que para se falar de um território, nada melhor do que ouvir as suas gentes. De entre outras iniciativas, destacam-se, além do Pessoas-Mapas, o Rostografia por darem, literalmente, cara ao projecto.
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O projecto Mapas Natureza, da INature, cujo lema é “Paisagens em vez de paredes”, pretende, desde 30 de Julho e até 17 de Outubro, em dez áreas naturais do interior centro de Portugal, ser um “roteiro artístico que estabelece pontes de diálogo entre a natureza e a paisagem colectiva que é parte indissociável da vida comunitária de todas as cidades, vilas e aldeias que fazem parte do percurso”, pode ler-se no site do projecto. A programação iniciou-se em Sicó/Alvaizére, passou pelas Serras da Estrela e da Lousã e pelo Geopark NaturTejo. Passará ainda pelo Vouga - Caramulo, Serra do Açor, Serras de Aires e Candeeiros, Serra da Malcata, Vale de Foz Côa e terminará na Serra da Gardunha. A viagem pelas dez áreas naturais pretende dinamizar a região, bem como “mudar o olhar que se tem sobre as terras do interior”, diz Miguel Vasco.
O Pessoas-Mapas é uma série de 40 mini-documentários que retrata as múltiplas experiências de habitar os territórios abrangidos pelo projecto. Na primeira pessoa, os habitantes falam da forma como vivem naquelas terras, como viviam, o que anseiam, porque vieram. E ainda “como se relacionam com a comunidade, as suas ambições, os seus sonhos”, acrescenta o porta-voz da iniciativa.
Viver o agora, procurar a paz, apreciar o silêncio, viver em comunhão com a natureza parecem ser os lemas de vida de quem, por ali, decide viver. Foi o caso de Jasper e Anthonia, cujo sonho sempre foi criar um espaço ligado ao turismo. A pandemia antecipou o sonho do casal holandês. Ambos decidiram que era tempo de mudança. Optaram por não esperar pela reforma e avançaram para o sonho. É, aliás, a mensagem que passam no documentário que lhes é dedicado pela INature. “Se tens um sonho, por favor vai concretizá-lo, porque é mais fácil do que pensas”, recomenda Anthonia. Face ao medo que se possa sentir, Jasper incentiva defendendo que é preciso “quebrar o padrão. É pensar: eu consigo!”.
Como confidenciaram ao PÚBLICO, quando se depararam com a beleza da paisagem da Serra da Estrela, sabiam que o sonho deles estava ali, naquele lugar. Tudo fizeram para concretizá-lo. Venderam os bens no país de origem, fecharam os seus negócios, convenceram os pais a alinharem no projecto e, hoje, a Quinta da Portela é o magic place do casal. Com seis estúdios renovados, Jasper e Anthonia vivem essencialmente do turismo, embora também se venham dedicando à agricultura para consumo próprio. Jasper espera, no entanto, poder tirar um rendimento extra dessa actividade no futuro. O casal está mais feliz do que nunca, nesta aldeia com cerca de 200 moradores, que já consideram amigos. Jasper e Anthonia realçam a forma como foram acolhidos pelos habitantes da aldeia e a facilidade com que conseguiram criar uma rede de amigos em tão pouco tempo. “Algo impensável nas grandes cidades”, atira Jasper.
E o projecto do INature aproximou ainda mais os habitantes. À volta de uma programação multidisciplinar, desde música, caminhadas, workshops, conversas, a iniciativa pretende ser “um momento de encontro e partilha”, diz Miguel Vasco. É um convite à criação de novas memórias.
Isilda Mendes, habitante de Ferraria de S. João, concelho de Penela, é, também ela, uma das protagonistas do Pessoas-Mapa. É, sem dúvida, uma das “embaixadoras do território”, como Miguel Vasco qualificou todos os actores dos 40 documentários. “Mais do que embaixadores formais, procuraram-se pessoas comuns com predisposição para falar”, diz o coordenador do projecto. Isilda, com 61 anos, sempre viveu naquela aldeia da Serra da Lousã, “uma aldeia simples mas onde é bom viver porque existe paz”, adianta a sexagenária.
Com pouco mais de 40 habitantes, a aldeia sofre com a desertificação humana. A própria Isilda sente, na pele, as consequências desse fenómeno. Para além das saudades dos filhos que migraram, refere, com nostalgia, as tradições que se vão perdendo e a socialização que é cada vez menor, por falta de gente. Porém, o turismo rural que foi surgindo tem animado um pouco a aldeia. Aos visitantes, Isilda tem dado workshops de pão e de queijo para, como diz, “que as crianças da cidade saibam que o pão que vêem na mesa não nasceu ali. Nasceu da terra, tudo vem da terra”.
E foi pela terra, pela montanha, pela natureza e pela tranquilidade que Pedro Pedrosa decidiu, há dez anos, instalar-se em Ferraria de S. João. O vizinho de Isilda é um dos promotores do turismo rural na aldeia. Aos 40 anos, após 20 anos a viver em Leiria e 20 em Lisboa, Pedro “queria sair da cidade. Era o momento, não adiava mais”, confessa ao PÚBLICO. Foram vários os motivos que o levaram a tomar essa decisão. “Na cidade tinha cada vez pior qualidade de vida”, adianta Pedro. A actividade profissional também permitia ao empresário trabalhar fora da cidade, “como permite a muitas pessoas, mas a maioria não dá o passo”, refere o próprio. Considera que existiu também uma “abertura das zonas do interior para receber novas pessoas, com incentivos económicos para a criação de empregos.” Em termos pessoais, Pedro salienta o facto de “querer que os filhos crescessem num lugar como aquele”.
“As estrelas alinharam-se no céu para vir para a aldeia. Foi uma sucessão de acontecimentos”, menciona o empresário. Comprara umas ruínas em Ferraria, tempos antes, sem sequer ter intenção de ir para lá viver. Quando decidiu sair da cidade, Pedro, que já trabalhava na área do turismo e viu na aldeia de xisto uma possibilidade. Sem quaisquer raízes familiares, foi em Ferraria que decidiu fixar-se. Pedro e a mulher transformaram a ruína para habitação própria, com a valência de Bed & Breakfast. Mais tarde, recuperaram mais três casas, tiveram os filhos e estabeleceram ali as raízes. Porém, o casal não vive apenas do turismo rural. A mulher é professora e Pedro tem uma empresa ligada ao turismo. Porém, o empresário acredita existirem muitas oportunidades de negócio no interior, “para não falar da possibilidade de, actualmente, se poder trabalhar remotamente”, argumenta. Os confinamentos foram a prova disso. Várias pessoas optaram por trabalhar, durante esses períodos, nas aldeias do interior.
As pessoas puxam pessoas
Para combater o despovoamento, Pedro considera que é necessário atrair gente com gente, porque as “pessoas puxam pessoas”, defende. Desvaloriza os incentivos financeiros e preconiza, “desde já, a criação de uma comunidade, com um número mínimo de pessoas. Essas pessoas, dentro dessa comunidade, vão criar sinergias, tanto económicas como sociais, que permitem que se ultrapassem os obstáculos naturais de sair de uma cidade e vir para o campo. Desde logo, a vida social, mas também a própria entre-ajuda. O próprio nível cultural - que as pessoas trazem e muitas vezes não existe no local - que permite interacções culturais, vida social, vida cultural, que de outro modo é impossível porque não há massa crítica.” Achou, por isso, o projecto Mapas-Pessoas interessante. Para Pedro, “tiveram o dom de vir ter com as pessoas e fazer coisas que costumam fazer nas cidades. Trabalharam a proximidade. As pessoas sentiram-se ouvidas, acompanhadas”.
Sentiram-se também vistas e retratadas. O programa Rostografia do Mapas-Natureza está a cartografar e documentar as gentes das aldeias do interior centro de Portugal. Tratam-se de “retratos a preto e branco, acompanhados por textos na primeira pessoa que lançam a debate ideias, projectos e esperanças de crianças, jovens e adultos residentes numa zona onde a beleza natural se preenche com a manutenção de práticas de vida em harmonia com o território”, refere o site do projecto. Miguel Vasco confere ao Rostografia uma filosofia mais casual do que ao Pessoas-Mapas já que é fruto de “breves encontros que registam os habitantes da comunidade.”
Tanto os documentários como os retratos têm sido apresentados, em primeira mão, nos lugares onde foram realizados. Os documentários “só vão para o site (do Mapas-Pessoas) e para as plataformas digitais (facebook, instagram e youtube) depois de projectados ao ar livre, no local”, revela Miguel Vasco. Já os retratos ficam afixados apenas nas localidades os fotografados habitam. “A ideia da proposta era também de podermos ir ali, àquela rua, e percebermos um pouco as caras que estão por detrás daquelas paredes, daquelas portas”, admite o coordenador do projecto. Para além dessa instalação fotográfica, são distribuídos postais com uma frase do retratado.
Quanto ao futuro do projecto, como confidenciou Miguel Vasco, a organização está a “equacionar formas de o poder levar mais além, explorar novos mapas, novos caminhos”.
O Mapas-Natureza contou com financiamento do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (Feder), através do Centro 2020 – Programa Operacional Regional do Centro.
De 3 a 5 de Setembro, a próxima paragem do Mapas-Pessoas é em Vouga - Caramulo.
Texto editado por Ana Fernandes