1.9.21

Pandemia do Norte, pandemia do Sul: as várias divisões da Europa que a covid mostrou

Maria João Guimarães, in Público on-line

Relatório do ECFR alerta para consequências do modo como cada país viveu a pandemia, e também para a diferenças dentro dos próprios países.

Em alguns países da Europa, a maioria viveu a pandemia da covid-19 com dificuldade, doenças graves, mortes de familiares ou amigos, e angústia económica. Outros não foram assim tão afectados. A diferença é clara entre os países do Sul e Leste europeu, por um lado, e da Europa Ocidental e do Norte, por outro, diz um relatório apoiado pela sondagem do European Council on Foreign Relations (ECFR), feita em 12 Estados-membros da União Europeia.

A divisão em relação ao que a pandemia provocou não é só geográfica, mas também geracional. Os jovens sentem-se mais afectados pela pandemia. E tendem a atribuir mais responsabilidades a terceiros por ela.


Estas são as duas grandes conclusões do relatório de Ivan Krastev e Mark Leonard, do ECFR, intitulado Europe’s invisible Divides: How covid-19 is polarising European politics (Divisões invisíveis da Europa: como a covid-19 está a polarizar a política europeia). Os dois especialistas em política externa sugerem que estas diferenças marcadas no modo como foi vivida a pandemia podem ter implicações duradouras em vários projectos centrais para a União Europeia: a liberdade de circulação, o futuro do plano de recuperação pan-europeu do bloco, e as suas relações com o resto do mundo (por exemplo com a diplomacia das vacinas), ou ajuda externa.

A maioria dos europeus (54%) sente que não foi “de todo” afectada pela pandemia do novo coronavírus, mas a média esconde as diferenças. Por exemplo, 72% dos dinamarqueses ou 65% dos alemães não foram “de todo” afectados pela covid-19, enquanto 61% dos inquiridos portugueses foram (31% apontaram consequências apenas económicas, e 30% de saúde). Apenas Espanha e Hungria (64% e 65%) têm uma percentagem mais alta do que Portugal.
 


Os autores classificaram como preocupante o fosso geracional que a sondagem revelou. Quase dois terços (64%) das pessoas com idade igual ou superior a 60 anos não sentiram que a crise as tenha afectado pessoalmente, enquanto a maioria dos menores de 30 anos (57%) disse ter tido problemas (económicos ou de saúde) por causa da pandemia.

A ideia de liberdade é também responsável por mais uma divisão. Questionados sobre quão livres se sentiam hoje, e quão livres se sentiam antes da pandemia, 22% disseram sentir-se livres hoje, e 64% antes da pandemia – ao contrário, 27% dos inquiridos disseram não se sentir livres (e apenas 7% disseram que não se sentiam livres há dois anos). Os autores afirmam que a questão pode ter relevância política quando muitos partidos ao centro têm defendido acção do governo e muitos populistas se tornaram libertários. Hungria e Espanha têm a maior percentagem de inquiridos que se sentem livres (41% e 31%), enquanto a Alemanha regista a maior percentagem dos que não se sentem livres, 49% – um caso interessante porque apesar de várias restrições, o confinamento no país (embora diferente em cada estado federado) não foi tão estrito como em outros.

Quanto à responsabilização pelo impacto que a crise tem, e pelos limites à liberdade, o relatório diz que há pessoas a apontar em várias direcções, mas que se notam dois grupos distintos entre quem tem um culpado definido. Num dos grupos, 43% dos que indicam um culpado, diz que a ameaça à liberdade vem sobretudo de governos e instituições, da China à Comissão Europeia, passando pelas multinacionais, ou pelo seu próprio governo. Noutro grupo, 48% de quem indica um culpado, acha que a ameaça vem do comportamento individual das outras pessoas (que não seguem as regras, que regressam de viagens por exemplo): Países Baixos (67%), Áustria (62%) e Portugal (61%) são aqueles em que esta perspectiva é maioritária.
 



O relatório divide os inquiridos em três grupos em relação ao que acham que são os motivos dos confinamentos. Os que confiam acham que a razão é limitar a disseminação do vírus, os acusadores acham que a maior motivação é dar ao Governo controlo sobre o público, e os desconfiados pensam que a razão é fazer crer que o governo está a controlar a situação.

A maioria dos inquiridos pertence ao grupo dos que confiam (64%), enquanto 19% são desconfiados e 17% acusadores. Há grandes diferenças em alguns países, como a Polónia, o único em que os que confiam são uma minoria (38%), seguindo-se com números baixos a Bulgária (50%) e França (56%). Inversamente, estes países têm um grande número quer de desconfiados (34% na Polónia, 24% na Bulgária) e de acusadores (cerca de um quarto na Bulgária, Polónia e França).
 


Quem confia que o motivo foi impedir a circulação do vírus tende a ser quem foi afectado por doença ou morte de familiar, e ainda quem não foi afectado de nenhum modo. Na maioria dos países os que foram afectados apenas economicamente pela covid-19 são os que mais mostram cepticismo sobre as intenções do Governo – com excepções na Dinamarca, Portugal e Suécia.

O relatório termina com a ideia de que três países podem estar a emergir como arquétipos para a política pós-pandémica: Alemanha, Polónia, e França.

A Polónia é um exemplo de uma “democracia polarizada”, dizem os autores do relatório. A crise aumentou a divisão que já existia entre grupos. O país é que o tem a maior percentagem de inquiridos a achar que o Governo está a usar as restrições da pandemia para criar ilusão de controlo ou como justificação para controlo. E também que o Governo e outras instituições são responsáveis pelo impacto da pandemia nas suas vidas.

Já na Alemanha, uma “democracia de consenso”, não há oposição pública às restrições nem desconfiança sobre os seus motivos. “Mas o consenso superficial esconde grandes níveis de descontentamento”, dizem os autores: uma grande parte da população não se sente livre.

Finalmente, em França, na “democracia não-binária”, os principais partidos mudaram de modo marcado a sua filosofia política: o partido do Presidente Emmanuel Macron teve uma acção de intervenção e 89% dos seus apoiantes, que são sobretudo liberais, disseram que as restrições não foram suficientemente estritas. Ao contrário, apoiantes de Marine Le Pen, em geral mais autoritários, acham que não devia ter havido tantas restrições.

Ivan Krastev e Mark Leonard deixam uma nota de alerta: a próxima fase da crise pode levar a mais divisões tanto dentro dos países como entre os vários países europeus, que viveram a pandemia de modo muito diferente. Em termos de perspectiva futura, os autores chamam a atenção para a diferença que pode ser mais problemática: a divisão entre gerações. “Os governos por toda a Europa fizeram bem em salvar as vidas dos mais velhos”, escreveram os autores. “Mas chegou a altura de se focarem nos problemas dos mais novos.”

Portugal: inquiridos confiam no Governo e culpam comportamento individuais


Portugal destaca-se por estar no topo de países em que mais pessoas se sentiram afectadas pela pandemia: 61% dos inquiridos portugueses afirmam ter enfrentado desafios pessoais (31% económicos, e 30% de saúde). Apenas Espanha e Hungria (64% e 65%) têm uma percentagem mais alta do que Portugal.

O país está ainda entre os que mais confiam na motivação das medidas de confinamento, em 4.º lugar com 71% – logo a seguir à Dinamarca (77%), Suécia (76%, o país destacou-se por ter menos medidas mas ainda assim teve restrições, incluindo algumas bastantes estritas nos lares de idosos), e Países Baixos (76%).

Portugal está em quarto lugar entre os países que pensam que as restrições impostas foram proporcionais, embora já com uma maioria mais pequena, de 56% (o mesmo que a Bulgária e atrás da Dinamarca e da Hungria, onde 62% e 71% dos inquiridos acharam as medidas certas). Por outro lado, há uma percentagem muito significativa – 32% – que consideram que as medidas não foram suficientemente estritas – e o país está ainda entre os três com menos inquiridos a acharem que foram demasiado estritas (12%, atrás da Hungria, 9%, e Suécia, 6%).

Portugal é ainda um dos países que culpa claramente indivíduos pela crise da covid – 57% –, enquanto 37% culpam instituições ou governos, incluindo o do próprio país.