Ana Cristina Pereira, in Público on-line
Há quem fale em momento de viragem. Haverá pelo menos uma dúzia de candidatos ciganos a votos nas próximas eleições. Esta sexta-feira, uma campanha de apelo ao voto é lançada por ciganos para ciganos.
Mais um sinal de uma mudança que está a acontecer, ainda que devagar, no seio da maior minoria étnica nacional: uma campanha de apelo ao voto feita por ciganos para ciganos é lançada esta sexta-feira na Figueira da Foz: “O teu voto é importante!”
A campanha sai da Academia de Política Cigana, que decorre este fim-de-semana na Figueira da Foz. Essa formação bianual – que desde o final de 2017 tem vindo a ser organizada pelas associações Letras Nómadas e Ribaltambição, com o patrocínio do Conselho da Europa –procura estimular a participação política dos portugueses ciganos.
A iniciativa não se esgota nos vídeos partilhados nas redes sociais. Alguns farão campanha presencial em sítios estratégicos, como Moura ou Beja, onde o risco de eleição de candidatos da extrema-direita lhes parece elevado. E em cidades com forte concentração de pessoas ciganas, como Lisboa e Porto.
Quando tudo começou, Bruno Gonçalves, coordenador da academia, traçava objectivos a longo prazo. “Se tivermos aqui quatro ou cinco que possam aproximar-se de partidos e fazer parte das listas, já será uma grande vitória”, dizia. “Numa década, podemos ter os primeiros políticos nas autarquias, nas juntas, na Assembleia da República ou no Parlamento Europeu.”
Volvidos quatro anos, empenhando-se na busca, identifica uma dúzia de ciganos nas listas das autárquicas quase sempre em sítios não-elegíveis. A abertura nota-se mais no Bloco de Esquerda. “É triste que os principais partidos não tenham a coragem de integrar portugueses ciganos nas suas listas”, comenta. O Partido Socialista acolheu um ou outro. E várias pessoas assíduas na Academia de Política Cigana receberam convites que recusaram, “por receio de verem os contratos ou relações [laborais] prejudicados”. São facilitadores, mediadores.
Aprendizagem
Não haverá outra família como a de Maria Gil, de 49 anos de idade. Está numa lista para a Câmara do Porto. Um dos seus filhos, Salvador, numa lista para a assembleia municipal. E outro, Vicente, numa lista para a Câmara de Lisboa. Todos como independentes, em listas do BE.
“Estamos para nos inteirar, para começar a perceber os lugares a que pertencemos também”, salienta aquela activista, actriz, divorciada, mãe de quatro filhos. “Não adianta dizer que estamos nas listas porque temos um projecto pleno. Isto é recente, para nós, enquanto ciganos. Estamos numa fase embrionária. Estamos a aprender como nos podemos mobilizar nesses circuitos.”
Não quer dizer que o momento seja irrelevante, pelo contrário. “É um momento que marca uma passagem, um momento em que se projecta o interesse das pessoas ciganas em perceber como funcionam as estruturas e em envolver-se nelas”, salienta. Parece-lhe importante, sobretudo, haver jovens, como os filhos, gémeos, de 20 anos, a mostrar “vontade de participar”.
Maria Gil dá conta do pouco interesse que a política desperta na sociedade portuguesa em geral. “Não nos vemos como corpos políticos. A maior parte dos cidadãos fala nos políticos como um ‘eles’”, observa. “A revolução pela dignidade exige vermo-nos como parte de um corpo colectivo, de um corpo político.”
Guiomar Sousa, de 40 anos, concorre como independente, na lista do BE, à Câmara da Figueira da Foz. Quer ser mais do que um nome numa lista. “Posso trazer [à candidatura] a minha visão de mulher anti-racista, a minha história de vida, a minha experiência na área do trabalho. Como mulher racializada, posso sensibilizar.”
Trabalhou num projecto de integração laboral e está a fazer uma formação de técnica auxiliar de saúde. No seu entender, merece especial atenção o preço das rendas, atendendo ao diminuto valor dos salários. “Não se consegue aceder a habitação, ainda mais quando se pertence a uma minoria.” A empregabilidade é outra das suas grandes preocupações. Atendendo ao tecido produtivo local, as mulheres enfrentam dificuldade acrescida.
Valoriza a sua participação nas edições da Academia de Política Cigana, que têm decorrido em vários municípios. No seu entender, a iniciativa “tem vindo de ano para ano a lançar semente, a sensibilizar para a necessidade de as pessoas ciganas se interessarem pela política, para a importância de haver representatividade”.
Apesar de apreciar o que ali aprende, esta mulher separada, com um filho de 20 anos e uma filha de 11, nunca se imaginara numa lista para a câmara. Os familiares “receberam bem a notícia”. “Sabem que é uma forma de tentar ajudar as pessoas ciganas e não-ciganas.”
Este fim-de-semana, Natanael Ribeiro fala na Academia com Guiomar. Este empregado fabril também está numa lista do BE, mas para a Junta de Freguesia de Tavarede. Para essa mesma junta, alheio a este movimento, está Fernando Lopes, estudante, na lista do PS.
Além da academia
Há vários candidatos ciganos que não passaram pela academia política. É o caso de Iuri Serrano, comerciante de automóveis, que figura na lista do PS à Junta de Freguesia de Alfragide, no município da Amadora. E o de Ricardo Maia, pastor evangélico, que integra a lista de um movimento independente, Nós, Cidadãos! Espinho. E o de Maria João Silveira, auxiliar de acção educativa, no movimento Nós, Cidadãos!, em Estremoz. E o de João de Torres, comerciante, na lista do movimento Unidos por Torres Vedras para a Junta de Freguesia de São Pedro Matacães. E o de António Pinto, auxiliar de saúde, na lista do BE à Assembleia Municipal de Viseu. E o de Bruna Silva, na lista do BE à União de Freguesias de Tomar.
“Pela política, sempre tive um bocadinho de interesse”, conta Bruna Silva, de 29 anos. “Agora, filiei-me. Tenho as minhas ideias. Nunca tinha pensado em entrar na política. Surgiu o convite. Pensei: porque não? Posso ser uma voz. Posso dar um bocadinho de mim. A minha comunidade não é muito bem-vista. Estando ali, acho que consigo fazer a ponte, mudar um bocadinho as coisas para melhor.”
Uma novidade, isto de ver a sua cara num cartaz. “É um bocadinho estranho. Não estou habituada.” Um estranho “bom”, esclarece Bruna. “Claro que há preconceito de alguns, mas a gente já está habituada a isso. Fazem comentários um bocadinho maldosos.”
Sente maior abertura na sociedade, mesmo assim. “É uma nova era que estamos a viver. Acho que as pessoas não-ciganas que estão a entrar na política também têm interesse na nossa vida quotidiana. Sei que o futuro dos meus filhos já vai ser diferente, já vai ser melhor.”
Está envolvida na comunidade. Já trabalhou como auxiliar de acção educativa, como cabeleireira, como monitora de um projecto Escolhas. O marido, esse trabalha na construção civil. Têm três filhos. Um rapaz de 12 anos, uma rapariga de oito e outra de dez meses.
Há um interesse fora das listas de candidaturas. Osvaldo Russo, de 31 anos, por exemplo, foi desafiado para apoiar as listas de vários partidos para a Câmara de Viseu. A estudar Direito de dia e a trabalhar como vigilante de noite, casado, com mulher e quatro filhos, não tem tempo para acções de rua, mas valoriza quem as integra. “Penso que é importante ter uma diversidade de pessoas nas listas. Se não participamos, nunca mais se combatem os problemas. Participando, mostramos que também queremos combater os problemas.” Nas últimas presidenciais, os portugueses ciganos já se mobilizaram mais do que nunca para votar.
Uma experiência em Buarcos e São Julião
Os exemplos de ciganos em cargos políticos eram muito poucos quando Bruno Gonçalves foi eleito pelo Bloco de Esquerda para a Assembleia de Freguesia de Buarcos e São Julião, na Figueira da Foz, em 2017. Havia Carlos Miguel, filho de um cigano e de uma não-cigana, antes presidente da Câmara de Torres Vedras, então secretário de Estado do Desenvolvimento Regional. E Idália Serrão, que teve um avô cigano, fora secretária de Estado da Reabilitação e era deputada. Os outros exemplos vinham de fora – de Espanha, sobretudo. “Não foi bem o que estava à espera”, diz. “Não posso dizer que tudo foi negativo, mas não gostei da experiência em si, pela dinâmica com que os partidos e as pessoas eleitas abordam os temas”, esclarece. “Parece que temos uma política velha para velhos. Não estou a falar de idade. Estavam muitos jovens até.” Acredita que na Assembleia da República seria diferente.