10.9.21

SEF ocultou um milhão de euros que devia ter sido entregue a refugiados

Ana Dias Cordeiro, in Público on-line

Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não consegue explicar onde está parte das verbas recebidas da Comissão Europeia em 2018 e 2019 que se destinavam a mais de 400 refugiados. O director nacional adjunto responsável pela área das Finanças nesses dois anos cessou funções em Março de 2020.

Por cada refugiado que Portugal acolhe no quadro do Programa de Reinstalação, o Estado recebe 10 mil euros da Comissão Europeia. Este montante fixo pago por cada pessoa, designado por lump sums, está garantido aos países que acolhem refugiados desde 2016. É um valor que sai do orçamento da Comissão Europeia e se destina a ajudar os países, como Portugal, a concretizar o seu compromisso de garantir protecção internacional a refugiados.

No esquema de reinstalação implementado nos últimos cinco anos, Portugal e os Estados-membros que a ele aderiram receberam essa quantia por pessoa reinstalada. No caso de Portugal, o valor é transferido para o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que, por sua vez, o transfere para o Alto Comissariado para as Migrações (ACM). “O SEF é apenas um intermediário”, explica fonte desta instituição.

Mas nem sempre foi assim. Pelo menos em 2018 e 2019, o SEF recebia os 10 mil euros por pessoa reinstalada e apenas entregava 7500 euros ao ACM. Nesses dois anos, foram acolhidas no Programa de Reinstalação em Portugal pelo menos 409 pessoas a viver em campos de refugiados da Turquia e do Egipto depois de terem fugido de países como o Iraque, o Afeganistão ou a Síria.

Por serem 2500 euros por pessoa e terem sido reinstaladas 409 refugiados nesses dois anos, significa que o SEF terá recebido, do pacote das lump sums para o acolhimento, pelo menos 1.022.500 euros que não justifica oficialmente. Este valor é uma estimativa aproximada, uma vez que a transferência das verbas e a chegada dos refugiados podem não coincidir exactamente no tempo.

"As lump sum são utilizadas para dar resposta ao processo de preparação, acolhimento e integração inicial de pessoas refugiadas ao abrigo de programas de reinstalação" Gabinete da ministra Mariana Vieira da Silva

Transferências e protocolos

Nas primeiras respostas ao PÚBLICO dez dias após o envio das perguntas sobre o destino desse dinheiro, o SEF apenas dizia que “os processos de preparação, acolhimento e integração de pessoas refugiadas” levam esta instituição “a celebrar protocolos de cooperação (…) para garantir a melhor coordenação e apoio técnico operacional à implementação desses processos”. Sem mencionar valores, acrescentava que “para esse efeito, o SEF efectua transferências financeiras no âmbito dos referidos protocolos”.

A instituição tutelada pelo Ministério da Administração Interna (MAI) não esclarecia quais as acções de coordenação necessárias e os apoios aos “processos de preparação, acolhimento e integração dos refugiados”; e não clarificava quais os custos associados a cada um deles.

Só mais tarde, quando o SEF foi confrontado com o facto de o Tribunal de Contas ter em 2019 pedido explicações (e que não as obtivera) sobre o diferencial dos valores recebidos (10 mil euros por pessoa) e entregues para benefício dos refugiados (7500 euros por pessoa), o PÚBLICO soube oficiosamente que o registo desses valores ou não existe ou está a ser ocultado.

Às perguntas do PÚBLICO enviadas numa segunda fase, sobre as dúvidas do TdC, sobre se as mesmas tinham motivado a instauração de um inquérito interno para averiguar responsabilidades, e ainda sobre o destino das discrepâncias entre valores, o SEF não deu resposta.

Também nenhuma justificação para o desaparecimento dessas verbas foi dada na altura ao Tribunal de Contas.
Demissão “por motivos pessoais"

Quando foram detectados “os erros financeiros” e "as desconformidades", como lhe chamou o TdC no seu relatório de auditoria ao Fundo para o Asilo, Migração e Integração (FAMI), divulgado em Maio de 2020, José António Teixeira Pinheiro Moreira era o director-nacional adjunto do SEF, responsável pela área das Finanças.

O próprio disse ao PÚBLICO que, nessa qualidade, não era ele quem estabelecia as quantias a transferir para o ACM que depois iriam para as entidades de acolhimento. “O destino das lump sums era decidido no âmbito de protocolos assinados pelo director-nacional com orientações da tutela”, acrescentou José Moreira. E diz ser impossível não haver registo desses valores. “Todas as transferências ficam registadas. Só não há registo porque não querem explicar.”

Este alto quadro do SEF foi nomeado em Fevereiro de 2018 pelo ministro Eduardo Cabrita, que dois anos depois assinou o despacho da cessação onde dá “por finda, a seu pedido, a comissão de serviço”. José Moreira diz que a sua saída foi decidida por motivos pessoais.

A então directora-nacional do SEF, Cristina Gatões não comenta o caso, segundo informou o gabinete de imprensa, depois de o PÚBLICO pedir esclarecimentos sobre os motivos da saída de José Moreira.
Chefe de gabinetes ministeriais

Quando foi nomeado em comissão de serviço por um período de três anos para o cargo no SEF, José Moreira era inspector no TdC para onde entrara em 2012, mantendo-se como quadro desta instituição até hoje, mas sem exercer funções a partir de 2016.

De Janeiro de 2016 a Março de 2017, foi técnico especialista no gabinete do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Fernando Rocha Andrade, transitando depois para o gabinete do Secretário de Estado do Orçamento, à data João Leão, hoje ministro de Estado e das Finanças. Aí ficou apenas nove meses, até à sua nomeação para director nacional adjunto do SEF em Janeiro de 2018 pelo ministro da Administração Interna.

Quando cessou funções no SEF, em Março de 2020, regressou por pouco tempo ao TdC (onde se mantém como quadro) até ser nomeado em Agosto de 2020 pelo Secretário de Estado da Descentralização e da Administração Local, Jorge Botelho, para subdirector geral da Direcção das Autarquias Locais, cargo que ocupa actualmente.

No despacho publicado em Diário da República relativo a esta nomeação, a dispensa de concurso (exigido) para o cargo é justificada por ser “urgente proceder à designação em regime de substituição de novo titular de forma a assegurar o normal funcionamento do serviço até à realização do procedimento concursal” uma vez que o lugar tinha ficado vago. O mesmo tinha acontecido aquando da nomeação para a direcção do SEF em Fevereiro de 2018.

Depois do alerta dado pelo TdC para “as incongruências” entre as verbas recebidas da União Europeia e as transferidas para os beneficiários do Programa de Reinstalação, o SEF passou, a partir de 2020, a transferir a totalidade dos 10 mil euros para o Alto Comissariado para as Migrações (ACM), sob a tutela da Presidência do Conselho de Ministros​.

É o que garante o SEF que recusa, no entanto, dizer ao PÚBLICO qual a quantia que transferia antes de toda esta situação se verificar, ou seja, em 2016 e 2017.
Para onde vai o dinheiro agora?

Dos 10 mil euros que recebe por cada refugiado, o ACM transfere 7500 para as instituições de acolhimento, como por exemplo o Conselho Português para os Refugiados (CPR), a Cruz Vermelha Portuguesa ou a Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), que reúne uma centena de instituições anfitriãs. ​

"Só uma revisão profunda dos apoios pós-programa permite sustentar a disponibilidade de acolhimento que o Estado português tem manifestado ao longo dos últimos anos" André Costa Jorge - Coordenador da Plataforma de Apoio aos Refugiados

A Presidência do Conselho de Ministros explica que a restante verba (2500 euros por refugiado) não se destina ao acolhimento porque é gasta no âmbito de protocolos relacionados com a vinda dos refugiados​.

“As lump sums [assim se chama esta verba dada pela Comissão Europeia] são utilizadas para dar resposta ao processo de preparação, acolhimento e integração inicial de pessoas refugiadas ao abrigo de programas de reinstalação” sendo as instituições de acolhimento “um dos actores deste processo”, refere o gabinete de imprensa da PCM.

A Organização Internacional para as Migrações (OIM) recebe então dois mil euros por pessoa “nos termos dos protocolos em vigor”, acrescenta o gabinete da ministra Mariana Vieira da Silva. Há ainda 500 euros por refugiado reinstalado “para financiar parte dos custos associados a esses processos com as equipas de apoio multidisciplinar do ACM, como por exemplo tradutores, psicólogos e assistentes sociais”.

O PÚBLICO solicitou o acesso aos protocolos, mas o pedido foi recusado.

Também contactada, a OIM explicou que os acordos são celebrados com o SEF e com a Secretaria Geral do MAI de acordo com uma previsão dos custos de um projecto para promover a reinstalação de um determinado número de pessoas. Assim, os valores atribuídos à OIM são definidos para cada projecto e não por pessoa reinstalada, não são fixos e resultam de um contrato, disse fonte da agência das Nações Unidas. “Esses contratos não são públicos”, respondeu a mesma fonte, justificando assim não os poder facultar.

Mesada de 150 euros

Assim, apesar da verba de Bruxelas definir um valor de 10 mil euros por pessoa reinstalada, para os 18 meses da fase em que os refugiados têm direito a apoio, a instituição anfitriã recebe 7500 euros. Desse valor, cerca de três mil euros são para financiar uma mensalidade de 150 euros por pessoa; e os 4500 euros para os 18 meses são usados para pagar a renda de uma habitação e as despesas associadas.

“Nós não sabemos em concreto as despesas específicas a que é alocado este valor dos 2500 euros [que as instituições não recebem]. A OIM e a ACM é que podem contribuir para esse escrutínio”, diz Carmo Belford, jurista da PAR. O que mais a preocupa é o facto de apenas 40% desses 7500 euros irem para o beneficiário, através das mensalidades de 150 euros por pessoa durante 18 meses.

“Esse dinheiro é para os refugiados construírem o seu projecto de vida, para pouparem, mas é muito insuficiente. Enquanto isso, a instituição anfitriã é obrigada a gastar os 60% numa estrutura de acolhimento. O que nós defendemos é que estas lump sums devem ser utilizadas ao máximo na autonomização das pessoas.” E não estão a ser.
Integração em causa

O balanço negativo da integração está reflectido no Relatório do Observatório das Migrações de 2021 sobre o ano 2020: das 568 pessoas sinalizadas na fase final do acolhimento, depois da qual deixam de receber apoios, 41,4% não têm emprego, só 37% têm habitação autónoma, apenas 7,5% dominam a língua e só 12,7% são completamente autónomos.

“São dados que nos preocupam por causa da fragilidade das pessoas, que vêm com muitos traumas. Cada uma das famílias [acolhidas pela PAR] vem de contextos muito diversos. Não podemos esperar que toda a gente tenha o mesmo processo de integração em Portugal.”

O mecanismo de reinstalação resulta de um acordo entre os Estados-membros e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), para definir uma alternativa segura e legal para as deslocações irregulares e arriscadas de migrantes com necessidades de protecção internacional com destino à Europa, escreve o Observatório das Migrações.
Perfil de vulnerabilidade

No âmbito deste programa são reinstaladas, já com o estatuto de refugiado, pessoas ou famílias que foram acolhidas, de forma supostamente provisória, em campos de refugiados na Turquia e no Egipto, onde acabaram por permanecer vários anos em condições precárias depois de fugirem dos seus países. Quando saem dos campos é para se instalarem permanentemente no país de acolhimento. Porém, a sua capacidade de autonomia é limitada, diz André Costa Jorge, coordenador da PAR.

“Os refugiados reinstalados são seleccionados pela sua particular vulnerabilidade. A expectativa de uma autonomia no final de 18 meses não é adequada ao perfil de vulnerabilidade das pessoas seleccionadas para o acolhimento”, diz. "É urgente que sejam revistos os programas de reinstalação, de modo a prever mecanismos de apoio para o pós-programa, realisticamente adequados à vulnerabilidade que fundamenta a reinstalação.”

"Erros" apontados pelo Tribunal de Contas ficaram sem resposta

A diferença entre as verbas das lump sum recebidas de Bruxelas para o acolhimento dos refugiados e as que são transferidas para as entidades que garantem esse acolhimento foi um dos reparos à actuação do SEF feitos pelo Tribunal de Contas (TdC) em Maio de 2020.

Em 2019, o TdC pediu ao SEF para esclarecer o motivo por que as verbas recebidas da Comissão Europeia (10 mil euros por pessoa) eram diferentes das transferidas para as entidades beneficiárias (7500 euros por pessoa). Na auditoria ao Programa Nacional do Fundo para o Asilo, Migração e Integração (FAMI) relativa a 2019, é igualmente referido que o TdC pretendia ser informado sobre o destino dado às verbas resultantes desse diferencial, mas que o SEF não tinha prestado esclarecimentos.

Na auditoria, com críticas à gestão do dinheiro destinado aos refugiados, uma das recomendações dirigidas à Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI) prendia-se precisamente com a necessidade de “regulamentar a utilização dos recursos europeus afectos ao SEF”, por terem sido encontrados (num conjunto de projectos) “desconformidades” e “erros financeiros” no valor de 41.900 euros.

À questão de saber se as recomendações à SGMAI deram frutos nas questões relacionadas com o destino dado às verbas, entre outras, o TdC respondeu ao PÚBLICO que “no que respeita à correcção das insuficiências e à implementação das recomendações, o tribunal dispõe já de alguns dados posteriores à realização da auditoria, os quais, no entanto, se encontram ainda a ser analisados”.

E avisa: “Só esta revisão profunda do programa e dos apoios pós-programa permite sustentar a disponibilidade de acolhimento que o Estado português tem manifestado (felizmente) ao longo dos últimos anos.”