2.9.21

Voltar à rua não é opção numa Casa Partilhada feita para devolver a autonomia

André Borges Vieira e Nelson Garrido, in Público on-line

Mais de duas dezenas de concelhos aderiram a programas de casas provisórias partilhadas por pessoas em situação de sem-abrigo. Em Matosinhos o projecto arrancou em Março. Nos quatro apartamentos disponíveis, com capacidade para dez pessoas, estão oito, num universo de 40 pessoas do concelho que não têm um tecto.

Até há seis meses, José Almeida, de 56 anos, já não se lembrava de como era pernoitar debaixo de um tecto. Morava há 15 anos na rua, mas desde Abril deste ano voltou a sentir o conforto de viver num lar, graças ao projecto Casas Partilhadas, criado no âmbito da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), com adesão de mais de duas dezenas de concelhos de Norte a Sul do país.

Vivia debaixo de uma ponte, na zona de Sendim, à entrada do centro de Matosinhos. Agora, mora num rés-do-chão do Bairro da Biquinha, onde existem mais três casas destinadas a pessoas que passaram por situação semelhante.

Não vive sozinho. A morada provisória é partilhada com Manuel Raimundo, que tem apenas menos um ano do que ele. Mais do que colegas de casa, consideram-se já dois “irmãos” - há um passado ao qual não querem regressar que os une. Num T3 com cerca de 70 metros quadrados partilham uma cozinha e uma sala. Para cada um, têm um quarto e uma casa de banho. O terceiro quarto está desocupado, mas já lá dormiu outra pessoa que não se adaptou à nova realidade e optou por voltar à rua.

Para a rua não querem voltar nem José nem Manuel. Há muito que ambicionavam poder tornar a ter quatro paredes à sua volta. Não querem desperdiçar a oportunidade de se reerguerem. Este, sonham os dois, é um passo na direcção do próximo objectivo. Querem garantir um emprego que lhes devolva a autonomia. Só depois disso é que podem procurar residência definitiva.

Já antes tinham tentado pôr em prática o mesmo plano. Mas sem um tecto e sem todas as condições básicas para qualquer ser humano poder viver condignamente tornou-se mais difícil de concretizar. Em situações de entrevistas de emprego, assim que o potencial empregador tomava conhecimento da inexistência de uma morada, tanto num caso como no outro, as hipóteses de ficarem com o lugar tornavam-se mais reduzidas.

Manuel já teve uma vida “normal”, conta. “Tinha emprego, tinha carro, motas e uma boa casa”, recorda. De “um dia para o outro”, há 15 anos, tudo mudou, quando a sua esposa faleceu. O desgosto arrastou-o para as drogas. “Depois disso foi bater no fundo”, atira. Ficou sem nada. Perdeu a casa, o carro, as motas e deixou de ter condições de cuidar da filha, que foi morar com os avós.

Passou muitos dos últimos anos a viver nas ruas do Porto. Os mais recentes passou-os na Senhora da Hora, onde ficou a saber que o programa Casas Partilhadas ia arrancar, através de uma equipa que acompanha pessoas em situação de sem-abrigo. “Faltava pouco para o Natal” do ano passado quando pediu para ser um dos contemplados. Em Abril, um mês depois do projecto arrancar, mudou-se para o Bairro da Biquinha.

No mesmo dia, a 6 de Abril, mudava-se para a mesma casa José, que tem uma história semelhante. Também tinha uma casa, trabalho e jamais pensaria que um dia estaria a viver na rua. Trabalhou vários anos na Suíça, na construção civil. “Era trabalho casa, para poupar dinheiro”, recorda. Pouco depois de chegar a Portugal, um “problema familiar” levou-o a ficar “sem nada”. Todo o dinheiro que diz ter ganho “desapareceu”. Durante uns tempos, com o dinheiro que juntava a arrumar carros, conseguia alugar um pequeno apartamento no Porto. Pagava 270 euros. “Hoje nem um quarto consigo arrendar com esse dinheiro”, diz.

Mudou-se para a cidade vizinha por sentir-se mais seguro lá. Foi também em Matosinhos que ficou a conhecer o projecto que lhe permite agora viver numa casa.


Seis meses passaram desde que os dois receberam a chave do apartamento. Tiveram alguma dificuldade em adaptar-se a uma terceira pessoa com quem partilharam o espaço durante pouco tempo. Depois, “foi mais fácil”, diz José.

Conseguiram criar um sistema de forma a partilhar tarefas. Um faz as limpezas às terças-feiras e o outro aos sábados. “A casa está sempre assim limpa como está hoje”, garante Manuel. Já as refeições cada um prepara as suas. “O José cozinha mesmo. Eu como mais comida embalada já preparada”, atira, sublinhando ter sido um hábito com origem numa fase em que chegou a viver numa garagem abandonada. “Não é porque ele cozinha mal”, graceja.

Os dois têm os objectivos bem definidos. A prioridade de Manuel é voltar ao mercado de trabalho: “Envio vários currículos, mas ainda não tive respostas. Devem achar que sou velho demais para trabalhar, mas também sou novo demais para me reformar”. José faz “uns biscates” de construção civil, mas não tem emprego fixo. Actualmente, passa por um período de pouca actividade. “O empreiteiro para quem trabalhava tem as obras paradas”, explica. Outra meta traçada é conseguir construir uma vida a dois. “Conheci uma senhora e gostava de conseguir arranjar um espaço para viver com ela”, conta.

Voltar à rua não é opção

A preocupá-los está o facto de saberem que a casa onde vivem é provisória. Os primeiros seis meses (tempo mínimo definido para a estadia) estão a chegar ao fim. Conseguiram já garantir mais seis meses no mesmo apartamento (prazo máximo), mas a partir daí, de acordo com as regras, deixam de estar elegíveis para continuar a fazer parte do projecto. Porém, ainda estão longe de estar em condições de seguir a vida sem este apoio. A única fonte de rendimento de José são 180 euros que recebe do RSI, para o qual Manuel não está elegível por receber todos os meses 190 euros de subsídio de viuvez. Mas desse montante ainda subtraem cerca de 30 euros pelo valor da renda do espaço.

“Cada dia que passa fico preocupado”, afirma Manuel, que diz continuar a sonhar ainda viver na rua. José, como o colega com quem divide casa, diz ter o foco apontado para o dia em que voltará a ser autónomo. Mas teme chegar ao final de um ano de estadia sem conseguir atingir a meta. “Depois vou para onde?”, questiona.

“Acredito que no final do ano previsto para cada um dos utentes não deixaremos ninguém voltar à rua. Não é esperado que isso aconteça”, afirma Cláudia Nunes, assistente social do projecto. Apesar de em Matosinhos já existir um programa semelhante, mas não em exclusivo para pessoas em situação de sem-abrigo, este com início em Março ainda está em “afinação”.


Todas as situações, garante, serão articuladas com a MatosinhosHabit, empresa de habitação municipal que cedeu os apartamentos no Bairro da Biquinha. “Pretendemos que os utentes estejam sinalizados na empresa para que seja analisada a hipótese de lhes ser dada uma habitação permanente”, acrescenta. “Nalguns casos em que os utentes tenham boa convivência até se poderá equacionar no futuro arrendamento partilhado [em habitação social]”, sublinha.

Em Matosinhos há cerca de 40 pessoas em situação de sem-abrigo sinalizadas. No âmbito deste programa, oito pessoas estão alojadas em dois T2 e dois T3 com capacidade total para dez pessoas.

Ao fim de seis meses, Cláudia Nunes, que trabalha com uma equipa multidisciplinar de acompanhamento aos utentes, faz um balanço: “Alguma coisa foi acontecendo e algumas pessoas melhoraram a sua situação. Mas, efectivamente, talvez seja um prazo curto para desenvolvimento de algumas competências necessárias em pessoas que ficaram muito tempo em situação de sem-abrigo”.

Cerca de 300 pessoas sem abrigo ganharam um tecto em casas partilhadas

Como em Matosinhos, há mais 21 concelhos com os quais o Governo firmou um protocolo para garantir um tecto a quem há muito não tem um. A meta deste programa, que integra a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, é tirar das ruas 1100 pessoas até ao final do ano. Como? Alojando-as em casas Housing First — para quem está há mais tempo na rua — ou em habitações partilhadas.

Até ao momento, esta resposta chegou a cerca de 300 pessoas, um número ainda longe da meta traçada até ao fim do ano.

Estas respostas de habitação são financiadas pela Segurança Social, às quais as instituições que trabalham na área se podem candidatar, ficando depois com a gestão das casas e acompanhamento dos utentes. A ideia é que quem ali é alojado seja seguido por equipas das áreas sociais, que apoiem na reintegração no mercado de trabalho ou mesmo nas tarefas mais simples da vida diária, entretanto perdidas pela vivência na rua.

Os últimos dados conhecidos, referentes a 2019, mostram que há cerca de 7100 pessoas em situação de sem-abrigo no país — um número que agrega as pessoas que estão sem tecto, que vivem nas ruas, e as que estão alojadas em albergues ou outras instituições. Mais de metade concentra-se no Porto e em Lisboa, ganhando ainda mais dimensão se alargarmos a busca às áreas metropolitanas.

Lisboa tem também um projecto semelhante às casas partilhadas de Matosinhos, mas de responsabilidade municipal. A câmara arrancou, no início do ano, com um projecto-piloto de apartamentos partilhados “de transição”, que se dirigem a pessoas que estão há pouco tempo na rua, ou na iminência de lá ir parar, e ali são acolhidas enquanto procuram emprego. A ideia é que não passem demasiado tempo na rua para que não percam hábitos e rotinas, de modo a não dificultar a sua reintegração.

Em Abril, o PÚBLICO visitou um dos quatro apartamentos deste projecto, para os quais havia já mais de 40 pessoas sinalizadas. Não foi possível conseguir um balanço deste programa até à publicação deste artigo.

É à associação Ares do Pinhal que compete a gestão destas casas, que são financiadas pela Câmara de Lisboa, no âmbito do Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem Abrigo. Para chegarem a esta resposta, os utentes têm de estar referenciados pela rede social existente na cidade, passando depois pela “triagem” das equipas da Ares do Pinhal.

A ideia é que permaneçam neste apartamento por cerca de seis meses, passando depois para outras casas onde vão ganhando mais autonomia. Enquanto vivem nos apartamentos de transição, estas pessoas são acompanhadas pelas equipas técnicas da associação, que vão trabalhando com eles a sua autonomização e reintegração na sociedade, seja no acesso a cuidados de saúde, a direitos de cidadania, ou na procura de emprego.

Já no âmbito do programa Housing First, destinado a quem está há mais tempo na rua, a Câmara de Lisboa diz que há 300 casas que estão “efectivamente” ocupadas. Entre Janeiro e Agosto de 2021, foram encaminhadas 41 pessoas em situação de sem abrigo, provenientes dos centros de alojamento de emergência municipais, para apartamentos partilhados, a maior parte financiados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, diz a autarquia em resposta ao PÚBLICO.

No Porto, o reforço do alojamento de longa duração é também uma das apostas na estratégia municipal para integração de pessoas em situação de sem-abrigo até 2023. No ano passado existiam no Porto oito habitações deste tipo – duas geridas pela Associação Benéfica e Previdente e seis pela Santa Casa da Misericórdia –, com capacidade para 17 pessoas. Até 2023, é objectivo do município duplicar a resposta e criar tecto para mais 17 utentes. Cristiana Faria Moreira