1.2.23

Regiões mais pobres voltam a depender de fundos europeus para pagar formação avançada

Vitor Ferreira, in Público online

Norte, Centro e Alentejo vão pagar bolsas através das verbas regionais, enquanto Lisboa e Algarve, que não têm apoio europeu por serem mais ricas em PIB per capita, receberão do OE.

O Governo vai pagar formação avançada através de fundos comunitários nas regiões mais pobres do país (Norte, Centro e Alentejo) e através do Orçamento do Estado nas regiões mais ricas (Lisboa e Vale do Tejo e Algarve). Esta orientação consta nos programas do Portugal 2030 (PT 2030), já aprovados, e que remetem esse financiamento para os programas operacionais regionais (POR). Lisboa e Vale do Tejo (LVT) e Algarve, por terem um rendimento per capita já mais elevado, não podem receber fundos e receberão as verbas dos cofres do Estado.

A formação avançada é uma peça-chave no PT 2030, que deixa de fora o apoio a parques e estradas, mas diz apostar, por iniciativa do Governo, numa transformação da especialização da economia portuguesa, com a meta de criar nas empresas 25 mil novos empregos em Investigação e Desenvolvimento. E, com a meta de elevar o investimento em ciência dos actuais 1,69% para 3% do PIB (objectivo que não se cumpriu no PT 2020), a ministra da Ciência e Ensino Superior disse, em Novembro, que outra meta é atribuir metade das bolsas de doutoramento a investigadores que façam o seu trabalho em empresas até 2027.

Como vai essa factura ser repartida é a grande questão, e um tema delicado. No quadro comunitário anterior (PT 2020), parte da factura foi paga pelos fundos comunitários para as regiões mais pobres, como o Norte, que tem o PIB per capita mais baixo do continente, e o Centro, que compõe com o Norte a zona mais industrializada do país.

Em conjunto com o Alentejo, estas três regiões pagaram mais de 200 milhões de euros em bolsas de doutoramento, de pós-doutoramento e de cursos técnicos superiores profissionais (os chamados Ctesp). Mas quase ninguém fica satisfeito, nem mesmo o Algarve, cuja factura é paga pelo Estado central.

Como a orientação do passado é para manter, Norte, Centro e Alentejo continuarão dependentes dos fundos comunitários para apoiarem a recuperação do atraso, em termos de taxa de escolarização no ensino superior. Pelos dados da Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, Norte (40,4%) e Alentejo (28,3%) estavam, em 2021/22, abaixo da média nacional (41,4%). A excepção deste trio é o Centro, que já tinha uma taxa de 46%, ainda assim aquém do indicador da Área Metropolitana de Lisboa (49,9%).

Ao longo dos anos, muitas vozes questionaram o que poderia ter sido feito nas regiões se o dinheiro europeu que lhes foi destinado não substituísse o que, a nível regional, é visto como uma responsabilidade do Estado central, como a formação superior.

Na lógica do passado, que vai continuar no PT 2030, as verbas acrescidas que o Estado central diz estar a dar às regiões são para pagar os projectos "barrigas de aluguer", isto é, investimento público com impacto nacional que é transferido para os cofres das regiões.

Até a própria Comissão Europeia olha com insatisfação para este historial, que atravessa governos de diferentes cores – e que irá prolongar-se pelo menos durante o PT 2030 (negociado por um executivo do socialista António Costa e que arranca com outro executivo do mesmo António Costa). Ainda em Julho passado, a comissária Elisa Ferreira, que tutela os fundos de Coesão (e até é do mesmo partido do primeiro-ministro), foi à Guarda assinar o Acordo de Parceria do PT 2030 e dizer ao Governo português, olhos nos olhos, que as verbas da Europa “não devem substituir o investimento normal de um país”.

Dias depois, numa entrevista ao PÚBLICO, a mesma responsável europeia insistia na ideia de que o país tem de se libertar da dependência dos fundos europeus.

Mas este tema não se divide entre a opinião dos ricos e a dos pobres. Também o Algarve, que já não é uma região em desenvolvimento, fica descontente, porque não tem acesso a fundos europeus, apesar de ser a que tem a mais baixa taxa de escolarização no ensino superior (24,5%).

No quadro comunitário que termina este ano, "não havendo financiamento pelo Algarve 2020 para bolsas de doutoramento, de mestrado ou Ctesp, o financiamento foi assegurado pela Universidade do Algarve, através de contrapartida do Orçamento do Estado e das famílias", sublinha o presidente da CCDR-Algarve, José Apolinário, em declarações ao PÚBLICO.

Como o Algarve está arredado dos fundos de Coesão, depende totalmente do financiamento nacional, público ou privado. "Essa opção de programação revelou-se errada", porque "não permitiu um maior crescimento da resposta regional ao desafio de elevação dos níveis de qualificação dos jovens", sustenta o mesmo representante regional, que dirigiu a JS nos anos 80 e mais tarde seria deputado e membro do Governo pelo PS.

O PÚBLICO questionou o Ministério do Planeamento, que tutela fundos comunitários, o da Coesão e o do Ensino Superior, ainda no Verão de 2022, quando foram publicadas as primeiras versões dos programas operacionais regionais (POR). Nenhum quis responder às perguntas.

Meses mais tarde, no final de 2022, os documentos foram colocados em consulta pública sem alteração neste tema. Entretanto já estão aprovados.

Esta orientação acontece noutros domínios, destacam representantes regionais ouvidos pelo PÚBLICO ao longo das últimas semanas. Nesses casos, o argumento "centralista" é o de que não importa de onde vem o cheque. O importante é que haja dinheiro.

Porém, regiões mais necessitadas vêem isto com outros olhos: o Estado devia assumir a mesma despesa que paga às regiões mais desenvolvidas, porque as apostas nacionais (como a qualificação académica) devem ser pagas num esforço nacional que, na realidade actual, se centraliza em LVT e no Algarve. E os fundos europeus regionais deveriam ser deixados para investimentos regionais adicionais.

Este é, aliás, um princípio basilar dos fundos europeus, como bem lembrou a comissária Elisa Ferreira, em Julho, na Guarda, perante todos aqueles membros do Governo, quando pediu respeito pelo princípio da adicionalidade.

Neste cenário, só mesmo os executivos da última década não mostraram descontentamentos. O número de diplomados tem vindo a subir, mas parte da despesa foi "desviada" dos orçamentos do Estado para os POR (Norte 2020, Centro 2020 e Alentejo 2020). Os governos dizem que estão a dar mais dinheiro às regiões, e salientam que o país tem mais diplomados, mas os cofres nacionais só pagam a factura de LVT e Algarve.

A CCDR-Norte, por exemplo, destinou mais de 121 milhões de euros através do Norte 2020. Cerca de metade (57 milhões) foi para os Ctesp, mais 12 milhões foram para equipamentos usados nestes cursos mais curtos de dupla certificação, e o restante foi para doutoramentos e pós-doutoramentos (43 milhões) e para o programa +Superior (8,8 milhões), que paga bolsas a estudantes do ensino superior em zonas do país que tenham menos densidade populacional

Na CCDR-Centro, canalizaram-se 57 milhões de euros para bolsas de doutoramento, abrangendo 1518 programas de doutoramento, e 45 milhões de euros para 402 cursos Ctesp, abrangendo praticamente 9000 alunos.

Na CCDR-Alentejo, foram gastos 13,9 milhões com os Ctesp e 2,7 milhões com programas doutorais. No PT 2030, o orçamento para Ctesp é de 16,9 milhões nesta região.

Ciência mais dependente dos fundos europeus

O orçamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) tem ficado cada vez mais dependente de fundos comunitários. O peso das verbas do Fundo Social Europeu (FSE) no dinheiro destinado às bolsas de doutoramento atribuídas por aquele organismo público mais do que duplicou nos últimos sete anos.

Em 2015, quando ainda estava a ser implementado o anterior programa de financiamento europeu, o Orçamento do Estado era directamente responsável por 81% do dinheiro usado para pagar aos cientistas. Os restantes 19% vinham de fundos comunitários. A distribuição de verbas foi variando ao longo dos últimos anos, fruto da mudança de quadro comunitário e do andamento da sua implementação.

À medida que o PT 2020 foi concretizado, acentuou-se o peso do dinheiro de Bruxelas. Em 2021, o último ano para o qual a FCT forneceu dados ao PÚBLICO, o Estado só assumia directamente 56% das verbas para as bolsas de doutoramento, vindo o restante orçamento de fundos europeus.

Em 2019 e 2020 essa dependência foi ainda mais notória e, pela primeira vez, o Orçamento do Estado não garantiu a maioria das verbas para as bolsas científicas, tendo os fundos comunitário coberto, respectivamente, 56% e 52% dos pagamentos.

A FCT recebeu quase 230 milhões de euros de fundos comunitários, entre 2015 e 2022. A maior fatia, de mais de 141 milhões de euros, veio do FSE, através do Programa Operacional Capital Humano, aos quais acresce uma contribuição de 88 milhões de euros dos Programas Operacionais Regionais do Norte, Centro e Alentejo. Samuel Silva